Meu último amor
Adoro minhas caminhadas nas tarde de inverno. O vento frio no rosto sempre me foi estimulante. Quantos anos se passaram, e continuo gostando desses passeios, o sussurrar das folhas de árvores seculares agitadas pelo brisa, o som dos passos na calçada de pedras, o ruído de um carro ao longe. Conheço cada irregularidade do passeio como se fosse minha casa. Talvez esse seja o momento mais meu. É andando que concateno minhas ideias ou apenas deixo a mente voar em devaneios. Do passado indelével aos futuros prováveis ou possíveis. Sempre preferi os segundos.
Meu primeiro casamento foi com quinze anos. Eu andava por essas ruas vendendo flores. Naquele tempo o frio não era companheiro. Fui nessa esquina que Emílio me conheceu. À tarde, já anoitecendo, cruzava encapotado e levava uma rosa. Tinha cinquenta e cinco anos e eu o achava o homem mais elegante do mundo, o que nem seria elogio levando em conta meu diminuto conhecimento do mundo. Seu perfume impregnava as notas que pagavam a flor. Um dia ele me trouxe alguns casacos e quando questionado, disse que a dona das roupas não as usaria mais, e desse dia em diante ele não mais passou para comprar flores. Quase trinta dias se passaram e ele apareceu novamente. Comprou todas as flores que eu tinha e me convidou a tomar um café no bar da esquina. Naquele tempo a avenida não tinha o movimento de hoje. O bar estava vazio e o garçom serviu um bem vindo café com leite e um pão com queijo. Emilio falava de sua vida, seu trabalho como funcionário público, do sofrimento que foi a doença de sua esposa até o seu falecimento. As vezes enxugava disfarçadamente uma lágrima. Isso se repetiu por alguns tempo até que ele me levou para sua casa. Nosso casamento foi simples, mas eu me sentia como a Cinderela. Não apenas por me tirar da rua, mas Emilio foi muito mais que um marido. Foi meu professor, me ensinou a dançar e com ele tomei gosto por literatura; todo dia, delicadamente para não me vexar, ensinava algo sobre etiqueta. Tinha para comigo a atitude protetora de um pai. Confidenciava e ouvia meus segredos com a zelo do melhor amigo. E me amou de forma lasciva e sensual, como um libertino, me ensinando prazeres que eu jamais imaginara. Me fez retornar aos estudos e meu maior desgosto foi ele não ter-me visto com o diploma de letras. Morreu seis meses antes.
Tive mais dois casamentos, não foram os amores perfeitos, mas foram bons maridos, apesar da impossibilidade masculina de ser fiel. Foram passageiros em minha vida. Não quero dar a impressão de pouca importância, foram momentos felizes sim, apenas mais breves. Foi depois das duas separações que percebi a necessidade de cuidar de mim e que a companhia era boa entretanto opcional, e a felicidade não estava a ela vinculada. Sentia muitas saudades de Emilio. Economicamente estável, minha vida seguia numa calmaria exasperante. Já a alguns anos vivo só. Obviamente tive alguns relacionamentos passageiros, nada de importante. Levava a vida recatada de uma balzaquiana virtuosa. Até reencontrar Francisco.
Meu primeiro grande amor. Além de Emilio, apenas Francisco teve importância na minha vida. Sequer imaginava que estivesse vivo, mas estava, e como estava. Reapareceu em minha vida com a impetuosidade de um furacão. O garoto franzino que me defendia quando criança transformara-se num homem maduro e charmoso. Quase não o reconheci. A calvície frontal emoldurada pela têmpora branca lhe dava um glamour especial.
Eu corria atravessando a rua, tentando equilibrar a sombrinha, as compras e não me molhar com a chuva torrencial quando alguém me chamou pelo nome. Derrubei o pacote que carregava ao vê-lo. Nos encaramos na chuva e o tempo parou. Gotas geladas não nos atingiam naqueles momentos mágicos que me remetiam a minha infância e adolescência.
Quando sua mão tocou em meu ombro, um choque percorreu meu corpo. Revivi as mesmas sensações que sentira ao despertar mulher. O contato de nossas peles sempre teve esse efeito arrasador. Seus beijos me esquentavam tanto que nem mesmo o frio externo podia resfriar. Nosso reencontro foi tórrido e efêmero. O fato dele estar casado não me importou num primeiro instante, todavia deixou clara a impossibilidade de continuidade. Nos amamos como jovens apaixonados durante um final de semana. Sem bilhete, sem avisos, ele simplesmente desapareceu. Em outros tempos isso me abalaria, hoje não. Fiquei triste sem dúvida, mas não perdi o chão, como na morte de Emílio. Decepcionada, nem tanto pelo fato em si, mas por ser com ele, alguém que eu tinha em alta estima apesar de tantos anos afastados. Só a idade nos dá o crescimento pessoal para suportar com dignidade uma desilusão amorosa. Depois dele não queria mais amores. Não queria mais sofrer. Mas... eu não sou assim. Eu preciso amar como respirar. Contudo, também aprendi que amor não se procura, encontra-se. Quando menos se espera, ele nos atropela, queiramos ou não. E foi exatamente isso que aconteceu.
Era um sábado cinza. Sem pressa eu fazia minha caminhada vespertina, as lojas começavam a fechar e a luminosidade do dia se esvaia. Por uma vitrine eu o vi. Seu porte era clássico, como um nobre. Nossos olhares se cruzaram. Seus olhos transmitiam tudo que eu queria, a paz, o carinho, a confiança. Tinha certeza que olhos como aqueles jamais me trairiam. O amor foi imediato. Naquele instante, como um feitiço, eu estava apaixonada. Ele seria meu, nada no mundo se interporia entre nós. Nem imaginava seu nome, mas a raça era óbvia: era um setter irlandês.