Para esquecer
Augusto aumentou o som do toca-fitas do carro. Música do Zezé di Camargo & Luciano. A dupla preferida dele e da esposa. E agora, favorita de Helena também. Passou em frente a casa e, apesar da velocidade, avistou o vulto quase meteórico de alguém que trajava vestido florido. Certificou-se, assim, de quem estava no alpendre. Ela o viu. Estacionou na esquina, em frente o terreno baldio, como combinado e não desligou o motor. Se aparecesse alguém, tiraria o pente do porta-luvas para disfarçar, arrumando o cabelo. Ela vinha discretamente. O perfume chegou primeiro. Adocicado, combinava com as delicadas flores da estampa do vestido. Entrou no carro e partiram.
Só na rua seguinte, uma vicinal, arriscaram um beijo. Foram para trás das árvores da chácara de seu Totonho e Augusto estendeu a mão no banco de trás para apanhar os dois copos gelados. Entregou um para a garota, apaixonada por ele e por sorvete de flocos.
- Não gosto assim.
- Pensei que gostasse de flocos.
- Não, tô falando de nós!
- Eu sei, amorzinho, mas isso vai se resolver.
- Três meses já que a gente tá junto. Você prometeu que ia separar logo.
- Não é fácil assim, Helena, tenho que ir aos poucos. O Tiaguinho acabou de fazer três anos.
- Tá, mas quando vai acontecer?
- Você tem que ter paciência, eu tô dando um jeito.
- Ontem lá em casa, minha mãe tava conversando com a minha tia. Falou que só vai me deixar casar quando eu tiver dezoito.
- É mesmo?
- Dezoito! Ela tá louca, achando que eu ia esperar três anos.
- Hum.
- A gente tem que juntar e ir embora, Augusto. Se ficar aqui, o povo depena. Aí eu vou ficar chutada pro resto da vida.
- Sim, amorzinho, a gente vai se casar e ir morar numa cidade grande. Eu já te falei.
- Bom mesmo. Promessa é dívida. Tô de saco cheio de ter que fazer serviço de casa. Isso não é vida. Quero ser secretária.
- Vai ser uma secretária excelente!
Augusto beijou Helena. "Eu vou ficar guardado no teu coração", ela disse, ao mesmo tempo que a dupla cantava. "Já está", observou o amante.
A sacola tremeu na mão de Helena. Alface e cenouras, laranjas, também o abacaxi tremeram em consequência. Escutou e não acreditou. Falavam de Augusto, quando ela passou em frente o bar. "Foi embora. Deixou esposa e filho. Saiu da cidade". Está feito. Helena voltou para casa. Tremeu almoçando. Tremeu no banho. Na rede, tremeu. Se vissem de longe, pensariam se tratar de febre. Tremeu no dia seguinte. E no outro. Augusto cumpriu a promessa. Agora era aguardar. A menina aguardou por anos. O amante, porém, não retornou.
* * * * *
Augusto está de volta. Há vinte anos, dias depois de chegar à capital, conheceu Irene. Moça baiana de personalidade forte e que, jovem ainda, trabalhava, pagava as contas, comprava a própria comida e a própria cerveja. E pagava os próprios bailes. Primeira mulher de quem ouviu falar tamanha autonomia. A paixão foi consequência natural. Saíam para beber, saíam para ir ao cinema, davam voltas no parque enorme do centro, iam comer, iam comer-se. Se aguentaram por anos. Depois de Irene vieram outras moças. E nos últimos tempos estava sozinho. Desimpedido.
Não teve que pedir permissão a ninguém, tampouco avisar que voltaria à terra por uns dias. Na cabeça, duas perguntas. Se deveria procurar o filho e se Helena estava casada. Veio de ônibus. Ficou com receio, mesmo vinte anos depois, de reconhecerem o corcel. Ele próprio, Augusto pensava, não reconheceriam. Envelheceu demais e virou outro. A metamorfose provocada pela vida solta na cidade grande. A primeira parada é no bar do Deoclécio. Lugar onde Gustinho comprava balas, depois cadernos. Naquele bar, experimentou a primeira cerveja. E onde, nos últimos dias antes de partir, tomava uns tragos da garrafa de Velho Barreiro da casa. Não sabia se o dono ainda estava vivo. E lá chegando descobriu que seu Deoclécio estava sossegado em casa, descansando e enfrentando a velhice. Em seu lugar, no balcão, quase a mesma figura. Osvaldo, o filho. Este, surpreso com a chegada do amigo de infância, vai até a porta dar-lhe um abraço.
- Gustinho! Não acredito que é você! Por onde andou, rapaz?
- Pelo mundão... como é que você está, meu querido? E a família?
- Todo mundo bem! Por que nunca mais veio?
- Vida difícil, companheiro. Queria ter vindo antes, não deu, infelizmente.
Osvaldo quase fez a pergunta que sempre faz a todos os amigos de infância e juventude que vão embora e retornam tempos depois: "casou?". Mas lembra-se de que o amigo já tinha família. Augusto é quem fez mais perguntas. Quis saber dos primos do amigo, perguntou do seu Nestor açougueiro, se a festa de agosto ainda era boa como a de antigamente e finalmente perguntou sobre Helena.
- Ela tá por aí. Não foi embora não.
- Está casada?
- Casou faz tempo e separou faz uns três anos.
- Não tá com ninguém?
- Olha, amigo... - hesita, demora antes de responder - nunca vi com ninguém não.
Diante das detalhadas perguntas, Osvaldo confirma os boatos da época. Augusto diz ao amigo que vai dar uma volta e que volta mais tarde para continuar o papo. Ao sair do bar e ir até a esquina, reconhece Helena sentada na praça. Percebe de longe que, mesmo depois de tanto tempo, ela manteve o gosto por vestidos floridos . Augusto é capaz de jurar que sente o perfume de longe. Aproveita a vitrine da loja de sapatos para disfarçar e lá se detém por alguns minutos, para ter certeza de que ela não espera por ninguém. Vai até a sorveteria, três casas depois, e solicita um copo médio, sabor flocos. Faria uma surpresa.
Sai da sorveteria ao mesmo tempo que Helena se levanta. Ia indo embora. Augusto segue a mulher. Ela dobra a esquina em direção a uma rua quieta. Ele chega também à esquina e a perde de vista. Passa em frente um portão aberto e escuta o barulho de um beijo prolongado. Vê na área da casa Helena com um rapaz. Eles interrompem o afago porque o percebem ao portão. Augusto vê que se trata de um homem mais novo, muito parecido com ele próprio aos vinte e poucos anos. E se dá conta de que a mulher beijava seu filho. Helena o reconhece e fica boquiaberta. Não tem coragem de pronunciar o nome dele na frente do rapaz. "Você o conhece?", pergunta o jovem. Augusto, com as mãos trêmulas, segura-se ao portão. Dá meia volta e vai embora em passos apressados. "Quem é ele?", insiste Tiago. Helena pede para que espere na casa e vai atrás do antigo amante.
Agora longe do jovem, ela chama Augusto pelo nome. "Eu te amava". Ele acelerado, ela também. "Eu te esperei". A idade já não é a mesma e a mulher demonstra o cansaço pela voz. "Ainda te amo se quer saber!", diz, quase correndo. "Seu filho se parece muito com você, por isso eu estava com ele". Augusto se vira e pára, olhando para ela, que tenta um último e sincero apelo. "Como é bom te ver de novo... eu estava com saudade!". Joga o sorvete contra o rosto de Helena. Ela cobre com as mãos o rosto. Ele segue caminhando. O copo continuava na mão. Passa pela praça e contorna a fonte com o copo virado, chacoalhando-o, jogando o que restou sobre a água . Conserva-o, vazio. Volta ao bar de Osvaldo e o surpreende ao pedir a garrafa de Velho Barreiro, revivendo o antigo hábito. O amigo põe sobre a mesa a garrafa e um copo. Augusto ignora o copo de vidro e preenche até a metade o copo onde estava o sorvete. Em seguida, dá uma golada amarga na mistura.