Déjà Vú - pArtE 4 / ETERNAS ÚLTIMAS CARTAS - Contos

Mali acordou bem disposta, se espichou na cama e ouviu o velho corpo respondendo. Crac,crac, crac. Nhec, nhec. O som familiar do corpo aquecendo os motores para religar todas as partes e fazê-la levantar da cama rangedora e idosa como ela.

Veio então a lembrança da sua caixinha de madeira, com seus tesouros: as cartas guardadas. Onde estariam? Resolveu procurá-las, tinha uma vaga idéia de onde havia guardado. Seria no quartinho da bagunça? Ei-la intacta e empoeirada, implorando por uma alma misericordiosa que a resgatasse do caos e desordem do cômodo. Mali pegou-a e abriu, não tinha cadeado. Quem iria quer saber dos velhos amores de uma senhora de 52 anos? Os filhos a muito tempo haviam saído de casa. Moravam ali apenas ela, Brotinho - o cachorro e Chocolate - o gato. O velho trio, literalmente. Apanhou uma carta de dentro e leu, uma das tantas e quilométricas cartas que enviou a Gonçalo.

"Essa é minha última tentativa.

Sei que já houve, no mínimo, umas duas dezenas de últimas vezes de tudo que diz respeito a nós.

O que posso fazer? Sou refém voluntária de seus caprichos e também dos meus.

Me debato, brigo, emburro, prometo que não volto, mas sempre acabo retornando, submissa e dócil, como se nada houvesse passado. Não deixo que vire passado. Volto como se não tivesse dito coisas que no instante que saíram de minha boca, já me causaram profundo arrependimento.

Pode me chamar de cara de pau, e sou mesmo sem vergonha - no bom sentido, e às vezes no mal também. Aceito e concordo, reconheço essa minha falha de caráter, esse meu hábito de não cumprir minhas juras de te deixar em paz, de nunca mais olhar na sua cara, se é que amar sem medidas e bom senso pode ser considerado uma falha de caráter.

Mas a verdade é que não consigo ver nenhum motivo para não me desculpar pela enésima vez, se sei que você já me perdoou no seu coração, se sei que você quer tanto quanto eu fazer as pazes, mesmo que eu não seja capaz de ficar tranqüila por muito tempo. É justo que eu, a parte briguenta e brava dê o primeiro passo para a reconciliação, já que dei o primeiro passo para o fim, disso que agora quase não existe. O que somos? Ainda somos? Até hoje não sei explicar.

É sempre assim, indo e vindo, e cada volta é um reinício. Sempre voltamos a ser não sei o quê e nem por quê. Não há lugar no mundo para nós, ou um lugar onde possamos ser nós - sem esse nó todo, mas ainda assim somos um vício recíproco, a doença e a cura um do outro.

Você merece a paz que me pede e não sei ter e nem dou a você. Você merece uma pessoa calma e serena e acima de tudo você merece amor, e isso... Isso jorra de mim e você bem sabe.

Nenhuma outra será capaz de te dar de forma tão intensa e apaixonada, tão forte que as vezes machuca, mas essas dores só nos fazem mais resistentes, a vida também vai tentar nos machucar.

Eu sou assim, sempre fui, pareço um furacão, onde passo deixo os destroços, e depois surge um dia lindo e claro, quase uma afronta ao nível da destruição deixada. Me pergunto até quando você vai agüentar isso, peço a Deus que seja eternamente. Como você mesmo disse, sou selvagem e você ama isso. Estar comigo é acima de tudo um exercício de paciência e amor, minha maior prova de seu afeto é você ainda perder seu tempo comigo, me ouvindo, sorrindo, pedindo para eu ficar.

Não sei quem é mais louco, você ou eu, creio que ao final - somos, e ai está minha resposta: somos loucos um pelo outro, só isso. Simples e complicado, sem explicações aparentes e lógicas.

Ainda quero dar um nome ao nosso complexo caso.

Não esquece que te amo, e guarde para sempre um pedaço do seu coração para mim. Não precisa ser grande, pode ser bem pequenininho, mas neste pedaço nunca coloque mais ninguém. Eu vou cobrar.

Beijos te amo. Nos vemos no meu sonho ou no seu?

Mali "

Ela só sorriu relendo. Muita água tinha passado debaixo da ponte depois desse dia.

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