Amarelo

Ferdinando fechava os olhos e a beijava. Sentia em sua alma a força de um primeiro amor esquecido, amarelado pelas grandes tristezas em sua vida. E enquanto pensava, voltava a beijá-la, para poder esquecer que pensava. Pensar para quê? Não, de jeito algum. Naquele momento especial, ele pensava apenas em sentir. E sentia, pois esquecia de pensar. Entregava-se completamente, acariciando seus cabelos. Por um instante tocou em seus pequenos seios, sendo logo repelido como que com aquela mão repelidora ela falasse “acalma-te, temos tempo! ”, seguido por um olhar que lhe gemia “mas oh, meu querido! O eterno se torna breve diante de um amor como o nosso! ”. Porém ao findar de todas aquelas carícias, o implacável tempo tornar-se-ia o próprio senhor paradoxal do amor, separando-os.

Ferdinando fitava a janela de seu quarto. Era um dia ensolarado entregando-lhe um pálido céu azul de brigadeiro. Ele aprendera essa expressão com um amigo subordinado da aeronáutica. Isso não importava; o que importava é que estava um sol de rachar. Ferdinando não sentia o seu calor, pois estava em um confortável quarto com o condicionador de ar no máximo. Simplesmente não sentia calor. Só frio. A casa em que morava era infinita, três andares. Quase um prédio. Não que isso o fizesse mais feliz, até ouso dizer que o deixava mais triste. Muitas vezes à noite, quando descia até a cozinha para beber água, ele sentia o vazio causado pela imensa casa vazia. Andava e andava escutando o único som de seus próprios passos ecoando pelo chão, arrastando-se preguiçosamente, enquanto vislumbrava os macabros quadros de seus antepassados tentando enfeitar as paredes dos corredores. Não era isso que lhe causava o vazio. Veja só, ele pensava. “Do meu quarto até a cozinha eu gasto cerca de cinco minutos, no meu passo lento. É um longe tempo, de fato. E está tudo parcialmente aceso, digo, está bem escuro até! Então por que não aparece sequer um fantasminha pra me assustar? ”

Levantando-se, atravessou o quarto até alcançar sua mochila. Contou mais de uma vez seu dinheiro e o colocou no bolso da calça. Guardou o resto das roupas que havia separado, dentro de sua bolsa. Colocou-a nas costas e olhou despreocupadamente uma última vez para o aposento. Estava decidido a fugir. Quanto tempo levaria até que seus pais tomassem nota de seu sumiço? Três, quatro dias? Talvez até mais. “Que seja! ”, pensava choroso por dentro. “Espero que nem notem”. Desligou o condicionador de ar e rumou para a rua. Era preciso mudar de vida, ele sabia. Enquanto passava pelo corredor, olhava os mesmos antigos quadros de sempre, com um olhar de saudade. Prezava muito os olhares, pois julgava que eles falavam muito mais do que os sons confusos e repetitivos que sua débil língua era capaz de proferir. Parou diante do quadro de seu bisavô paterno e se postou a pensar na vida daquele velho, de cabelos brancos e chapéu-coco e de como ele a havia levado. Antigamente as coisas eram difíceis! “Ainda mais quando não se nascia em berço de ouro, como eu nasci”. Talvez essa seja a grande desvantagem em se ter de tudo. “Não se dá valor a nada! ”. Encostou sua mão na última porta de saída, já no jardim de casa, quando os cachorros começaram a latir. Eram dois grandes pastores, muito bem cuidados e de pelos aprumados. Comiam e viviam melhor do que muita gente por aí. Meteu então os fones de seu mp3 player nos ouvidos e atravessou a rua, que não estava movimentada. Decidiu caminhar. Caminhar, caminhar, caminhar, sem rumo, ao esmo. Nunca pudera fazer isso, pois considerava que vivia em uma prisão. Era muito invejado pelos amigos do colégio, de certo, e conquistava os olhares de quase todas as mocinhas de sua sala. Mas o esperto garoto sabia que não era a beleza o motivo dessas frivolidades, e sim o seu dinheiro. Afinal, quem não almeja uma vida na qual se pode comprar tudo? Muitas vezes pensava como seria sua vida quando crescesse. Para ele era impossível se imaginar rodeado de indóceis cidadãos vestidos como desnudos pinguis, fumando fedorentíssimos charutos (que diziam serem cubanos, olha!) e conversando sobre a queda da bolsa Nasdaq e o preço da arroba bovina. Não nascera para o confinamento, embora seus pais não notassem isso. Ferdinando possuía a alma livre! Não por ser jovem ou sonhador, mas por ser simplesmente ele mesmo! Por contentar-se e alegrar-se com o “ser” das pessoas, ao invés do desprezível “ter”. Ferdinando era voraz, comia tudo e a todos com os olhos, independente de suas pálpebras estarem cerradas ou não. Era antropofágico, pois ambicionava conhecer o homem ao seu extremo, apesar de não conhecer ao menos sua própria morada. Passara um bom tempo pensando nisso e já estava deveras afastado de sua casa. No auge de seus dezoito anos, nunca se afastara tanto assim de seu lar. E neste ínterim, o monocromático céu de brigadeiro tornara-se um feroz céu nublado, que agora derramava sobre si uma fina precipitação, tocando-lhe suavemente as maçãs do rosto. Sentia o toque da chuva. O frio nos ossos e o vento na face. Sentia o medo, ao notar aquela chuva transformando-se em uma verdadeira torrente, ao mesmo tempo em que as pessoas corriam risonhas pela calçada, buscando em desespero algum abrigo para não se molharem. Mas Ferdinando não ligava para isso. Ali naquele claro momento, tinha tudo o que precisava para ser feliz pelos próximos 3,25 minutos, que seria o tempo exato em que ele atravessaria a rua sem olhar para os dois lados, causando um auto-acidente com uma moto – o que o deixaria inconsciente por trinta e sete horas, cinquenta e dois minutos e trinta e dois segundos. O motoqueiro que o atropelou, antes de sair de casa deu um beijo em sua namorada e se dirigiu para a garagem, sem seu capacete. Ela então, notando que ele o havia esquecido, correu até a rua, alcançando-o poucos metros após o portão. No acidente, o motoqueiro, cujo nome era Jair, bateu violentamente a cabeça contra a vidraçaria de uma loja de sapatos. O sapateiro teve um prejuízo de mil e oitocentos reais, que não foram pagos por Jair. Ao levantar-se, Jair retirou da cabeça os restos mortais de seu capacete azul e deu graças a Deus por estar vivo e ter uma namorada como Amanda, que acabara de lhe salvar a vida, sem saber que se não tivesse se atrasado dois minutos e vinte e dois segundos próximo ao portão de sua casa para conversar com sua namorada e colocar o capacete trazido por ela, esse acidente jamais teria acontecido. Ele olhou então para a rua e viu um garoto branco, de cabelo curto, rodeado por curiosos. O garoto estava inconsciente, com a cabeça sangrando levemente. Jair pegou sua moto e saiu em disparada, antes que fosse denunciado. Mas Ferdinando não sabia nada disso. E tão pouco lhe importava que se não estivesse com os olhos fechados e o volume no máximo, teria evitado esse acidente. Tudo o que recorda é ter sentido uma forte pancada e ao reabrir os olhos, encarar um quarto que definitivamente não era o seu.

Ferdinando Olhava para o que um dia fora um formoso teto branco, não passando agora de um velho e fubento amontoado de massa corrida mofada, provavelmente devido a infiltrações. Era inverno e no inverno sempre chovia mais. Sentou em sua cama, pousando os largos pés no úmido e gélido pavimento daquele estabelecimento desconhecido. Tocou seus lençóis e sua pele proferiu uma repulsa, em forma de arrepio, ao ser maltratada com o áspero grunhido daquele tecido rabugento, ao invés da gentil e suave carícia da seda com a qual estava habituada. Não que isso fosse um problema para o jovem Ferdinando. Seu espírito atingia um clímax nebulante naquela tarde que fustigava. Ascendia ao torpor com aquela nova mistura de sensações que se mesclavam com palavras em seu cérebro, na vã tentativa de formular uma frase para ser emitida pelos seus lábios. Tinha acabado de chover e o céu abria espaço temporário à um-outro-qualquer-belo-céu-de-brigadeiro lá fora, embora não fosse possível observar essa cena de dentro daquele quarto, onde as persianas das pequenas janelas permaneciam fechadas. Uma velha e enxuta enfermeira levantou-se de sua cadeira que se encontrava a vinte e seis passos de Ferdinando. Ela posou seu livro sobre uma carcomida escrivaninha e caminhou vagarosamente até a janela, levantando uma das persianas e observando o movimento lá fora. Ferdinando respirou fundo e olhou à sua volta; era aparentemente um pequeno quarto de hospital. Possuía uma atmosfera pesada, adornada com aquela luz calorenta de fim de tarde. A luz refratada pelas persianas se tornava amarela à medida que adentrava no quarto, banhando tudo com uma cor pálida e monótona. Ferdinando olhou todo aquele monocromatismo e olhou a si mesmo, possuído pelo mesmo tom do quarto, dando-se conta da magnificência daquele exato e breve momento. Poderia haver mil cores e quartos diferentes, mil possibilidades e fatos. Entretanto naquele específico aposento, era o amarelo que se fazia reinar sobre todas as demais cores e fenômenos interessantíssimos da natureza. Ele brilhava mais do que as estrelas, brilhava mais até mesmo que o barulhento ventilador de teto, imerso em uma dança tremulante para ventilar o quarto. O rapaz sentiu então um arrepio em sua coluna. Medo? Frio? Calor. Era uma gota de suor que nesse exato momento lhe escorria pelas costas. E tudo isso junto fez com que o garoto percebesse que a vida era feita de raios; cabia apenas a si mesmo emitir o seu correspondente trovão. Nem muito alto, para que não fosse falso, nem muito baixo, para não se tornar mesquinho. E então era só esperar o vento levar tudo embora e trazer assim o próximo raio.

Dois dias depois, Ferdinando estava sentado em uma mesa muito comprida, situada em um refeitório enorme. Ele dividia essa mesa com mais cinco pessoas. A mesa por sua vez, dividia o refeitório com mais doze de sua espécie, onde se sentavam outros setenta e oito jovens, divididos entre garotos e garotas. Existia ainda no país, vários Estados e milhares de Cidades como esta. Porém, em uma fração ultradecimal, os olhos do nosso protagonista se encontram com um outro par, de íris cor-de-mel, quase amarelos. E este par de olhos pertencia apenas à uma única garota. Havia muitas garotas no planeta, naquela época, que possuíam a mesma cor de olhos e muitas ainda que nasceriam. Só que esses olhos eram dessa garota e, apesar de semelhantes aos demais existentes, eram únicos. E isso mexeu com ele. E ao mexer-se com sigo mesmo, mexeu com ela. E os dois permaneceram ali, infinitamente separados por essa distância, mexendo um com o outro e provando de uma sensação pura, incapaz de ser comprada ou vendida. Ambos eram agora seres transcendentais, perfeitamente complacentes de seus deveres sentimentais, que os proibiam de mover os lábios - errar. Ao invés disso, declamavam com aquelas bolas flamejantes, que se encontravam de instânte em instânte, atirando gravetos e pequenas pedras na janela um do outro, poemas mudos e amores surdos. Nos primeiros minutos tudo não passava de uma brincadeira. Mas ao passar das horas, a falta daqueles olhares lhes causava medo. E a distância era um preço muito alto a se pagar. Um preço maior do que o infinito que os separava à princípio. Arrastaram-se por entre abismos escuros, ele e ela, neste anseio, nesta necessidade aplacante, por dias que não se cansavam de existir, intermináveis, até explodirem-se em um tímido e macio “oi”. Ferdinando havia estudado e decorado inúmeros poemas escaldantes e sabia recitá-los de tal maneira que dama alguma, faceando aquelas bochechas ruborizadas, não ruborizar-se-ia, apertandose-lhe a garganta e gemendo como uma loba no cio, desejando ser copulada pela própria lua cheia, de tamanha febre e amor. Mas não foi isso o que a atraiu. Foi um simples “oi”, entregue sagazmente na sacada de uma escada, ao entardecer sob uma luz amarelada. De que valeria Shakespeares e Vinicius’ naquele momento? Ela não conhecia nada disso. Não sabia palavras muito complicadas, nem Crisálidas, nem epirogênese. Ao invés disso sabia algo mais importante; olhar. E olhava. Olhava-o como as mulheres dos livros que Ferdinando lia. Olhava-o como uma meretriz que se dava a todos, e como uma dona de casa fiel e assídua nos deveres do lar. E isso livro algum seria capaz de ensinar. Livros de nada adiantariam em uma situação real como aquela. Ele era um rapaz bem instruído, ótimo aluno e leitor. Ela, uma maria-ninguém, que mal tocara nos livros devido à falta de tempo, tomada pelas obrigações naquele orfanato. No entanto ela possuía muito mais coisas a lhe ensinar do que ele a ela. Toques, carícias sutis, beijos inflamados e tudo além da cúpula do conhecido.

E lá estava ela, plantada diante dele. Os que ali transitavam encontravam apenas uma menininha sem graça, magrela e pequena, enfiada num vestido velho e mixuruca. Mas Ferdinando não. Ferdinando contemplava uma Deusa, cujos cabelos de ébano encaracolados eram as sobras da mesma espuma que criara Ceres. Sua pele morena o fazia tremer ao olhar. Suas mãos pequeninas! Menores até mesmo que os raios de sol, que os pingos da chuva fina. E era por causa disso tudo que o garoto ainda se segurava de pé. Era por olhos cor-de-mel lacrimosos, abundantes, manhosos. Ah!, era por ela, para poder apertar-lhe contra o tórax e murmurar “eu te amo”’s abafados. Mas o carro negro de seu pai, que havia finalmente o encontrado, não sabia amar. Não sabia esperar, nem distinguia rosa de amarelo. O último esforço daqueles corações eufóricos foi manter uma promessa, conhecedora por ambos da sua real impossibilidade de ser cumprida. “Eu voltarei, querida, e vou te tirar desse lugar”, disse-lhe com os olhos. E ela por sua vez, inundada de luz, observou. Ferdinando subiu no corcel negro e repousou as mãos sobre a cabeça agitada. Em um êxtase sombrio, os dois sorveram as próprias lágrimas, em uma tentativa desesperada de aplacar aquela dor, num momento maior até mesmo que Deus.

Trinta e cinco anos mais tarde, cruzariam os olhares novamente, em uma fila de supermercado. Ela era caixa e ele cliente. Ferdinando pagou suas compras com um cheque amarelo, de amarelos Reais e centavos.

Apesar de tudo, não se renconheceram.