Sala de aula
Sonho meu, sonho meu
vai buscar quem mora
longe...
(Delcio Carvalho/ Yvonne Lara)
Levantou as duas mãos no ar como se segurasse batutas e comandasse uma orquestra. Os cabelos, em franja lisa, mesmo desalinharam, lambeu-o na testa, os olhos grandes de um castanho quase negro, exagerados, e a boca tão pequena. Diego não tinha nervos. Nem ficava vermelho. À frente da turma, sempre arregaçando mais as mangas do seu blusão de listras. As menininhas na frente davam risadinhas em cascatas, os rapazinhos ao fundo tagarelavam mais alto. Mas àquela suspensão de movimentos calaram-se mutuamente, e o silêncio foi tomando corpo de baixo para cima, deixando um eco preso a se debater como mariposa na luz lá no alto do telhado abobadado e empoeirado.
Era uma boa dezenas de cabeçorras meio tortas, olhos grandes ou puxados, orelhas grandes de abanos, bocas quase no queixo. Vermelhos ou pálidos, suados e ofegantes como que elétricos. Diego acostumava-se. Aos poucos sabia e decorava o nome de um e de outro. Chamava-os à sua mesa, ou ao quadro-negro verde, tornava repetir o pedido de silêncio aos que permaneciam sentados ou inquietos em seus bancos mexendo com o que estava ao lado.
Ah, tudo tinha que ser repetido, pedido, novamente pedido, às vezes gritado, em quase ameaça, alguma vez bastava um gesto frenético de quem segura batutas e comanda uma orquestra como desta feita, mas era como se só os meninos recomeçassem, dispersos, um grito agudo de garota, e retornava Diego, todo cabelo despenteado, a roupa empoeirada de giz. Desorganizavam-se, transtornavam-se, e a poeira subia, tênue, porem subia, entre alaridos, sutis ameaças, alguns gritos de palavra de ordem.
As semanas corriam assim. Entre sol, nuvens cobrindo o sol, chuva e chuviscos, aquela uma hora da tarde, de outra três, duas da tarde. A porta empenada fechava, entreabria, emperrava, abria. Os olhinhos vesgos e míopes procuravam os cantos das janelas - duas grandes - e outros sentavam-se sobre as mesas, os ensebados cadernos nos joelhos, fingindo que lhe dava atenção assim de costas mesmo.
_Pra frente, sentado na cadeira, Michel, ordenava, e era preciso reforçar com o coro de outros, nos tons finos quase histéricos, tornando tudo mais caótico.
Outro pendurava-se na grade da janela grande, gritava um nome lá para meio do pátio, enquanto a maioria não sossegava a matraca, os traseiros inquietos nos assentos, indo e vindo, cruzando-se, esbarrando-se entre gritos.
_Desce dai, Carlinhos, acudiu Diego impaciente, mas nem nervoso, bem segurando-o pela orelha grande de abano.
_Doeu, queixou-se, num tom encontrado infantil, o pequeno. Espoucou gargalhadas como fogos se estourando em cascatas. Foi preciso agir como o maestro que se descabela, o tom sem paciência, voltando ameaçador, soturno. As notas, as avaliações, e a vergonha daqueles cadernos ensebados, mesmo viviam se arrastando no chão, dependurando-se pelas portas ou pelas grades das janelas.
Suspirou profundamente, voltando à sua mesa, ao toque estridente do sinal, agitando os pequenos, pulando pelas mesas, empurrando cadeiras como cavalos desembestados doido para estar soltos ao pasto.
O texto no quadro rasurado por uma mão e outra que raspou apressada ali. Desdém deles, ou como mostrar que agora estavam livres, ninguém lhes mandava.
Abaixou um pouco a cabeça, no sempre arfar de exaustão, as duas mãos apoiando a cabeça inclinada, os cotovelos fincados sobre o compensado meio ruído da mesa, sentindo-se como quem enfim solta de um vagão de uma locomotiva em movimento, lotada, imprensado com outros passageiros, todos falando ao mesmo tempo, acotovelando-se.
Aqueles olhos estrábicos fitavam-no assim próximo, aquela emanação de manteiga rançosa que vinha dele, magro, pequeno, cabeçudo, pálido como papel reciclado, as orelhas enormes sobressaindo dos cabelos secos e bagunçados de sem-tesoura. Diego levantou a cabeça, os olhos fitos a perceber o rapazinho. Sorriu-lhe sem pergunta.
_ O sinhor tá cum dor de cabeça, perguntou gago e fanho.
Diego meneou a cabeça negativamente, um sorriso sutil de paz, o queixo um pouco erguido mantendo o conservado sinal de autoridade. Aquele nariz enorme do garoto escorria sempre, descendo a coriza para os lábios gretados, secos, mas ele levava o dorso da mão ali secando. Diego tentou conter a careta, mas saiu espontânea. Acudiu com um lenço, que tirou da sua bolsa sobre a mesa.
_Use isso, Renato, disse como ordem, e o garoto pegou com uma mão como que ressequida nos braços raquíticos, mas ficou olhando o lenço perfumado como um objeto estranho a frente dos olhos enviesados.
Diego tomou-lhe da mão com energia, assoou-lhe o nariz com veemência, mostrando como se faz. Ele apenas se crispou um pouco, rindo vacilante a abaixar e fugir o olhar que se encabulava.
_Fique pra você, Renato, limpe direito este nariz, disse com tom enérgico o professor ao se levantar, catando as suas pastas, vendo que o garoto o oferecia o lenço sujo de volta.
Ele tinha ouvido dizer que lenço eram coisas de meninas, mas guardou aquele, embora maculado pela sua coriza em parte, pois o professor apertara-lhe o nariz assoando, mas boa parte do quadriculado azul e branco do lenço tinha algum perfume teimoso e bom. A rua era estreita da escola a sua casa, alargava-se mais lá adiante onde passavam carros, coletivos. Renato andava pelo meio-fio, tolhido, a mochila presa num ombro só. Encardida, esgarçada, quase puída, ele tumultuava além de cadernos ali. Papéis velhos rasgados, sacos de salgadinhos secos vazios, envelopes suados e melados de chicletes. Afastava-se dos outros, Michel, Carlinhos, Tony, meninos magricelas, raquíticos ou gordinhos, mas decididos com os pés no chão e varando a rua como animais livres. Apartava-se das meninas também, que lhe ria da cara como ria dos outros que se aproximavam atrevidos como se fossem já homens feitos.
Era bom aquele professor. Gritava como os outros, mas não tinha carranca como dona Cleyde, e quem soprasse um pio...
Ele era bom, perfumado, parecia sempre mais alto do que era realmente. Renato o buscava com olhos, durante o recreio, em outras janelas, às vezes o encontrando no refeitório da criançada junto com as meninas maiores do ultimo ano do fundamental, rindo, divertindo-se com elas ou divertindo elas. Renato não imaginava. Tayane tinha-lhe horror, menino feio, dizia-lhe mesmo na cara, mostrando-lhe a língua, com os olhos repuxados ainda mais esticados. O mais feio de todos!
No espelho baço e desbotado do banheiro, ele se fitava, fingindo que lavava as mãos, deixando a água escorrer, pensando por vago momento o que dona Soraya falava, falava sobre a importância de lavar as mãos toda vez que usasse o banheiro. O nariz sempre escorria, os olhos vesgos se desencontrando nas órbitas. O professor passava entre as fileiras de carteiras, em meio a balbúrdia de sempre, e Renato sentia-lhe o perfume. Ele parecia olhar a todos de cima, mesmo afinal estava de pé, mas que seus olhos, aquela testa coberta pela franja, certos olhos, oblíquos, sorriso que o garoto não tinha definição. Aliás, o garoto reconhecia em todos apenas o mesmo muro intransponível. No professor Diego era o mesmo. Mas acontecia que quando ele falava áspero, qualquer coisa doía mais forte em Renato. Como vidro que rachasse dentro de si e ficasse cortando e sangrando.
"Você não saiu da fase da garatuja", dizia a vozinha sonsa do professor Diego quando dirigia a palavra a Renato. Garatuja, garatuja, ficou ecoando em sua cabeça como dobre de sino repetindo, fazendo-lhe cócegas, rindo sozinho. Doido, gritava-lhe uma menina de olhos repuxados estirando-lhe a língua. Sacudia os ombros tolhidos como que concordando. E pelas bordas do caderno as garatujas se revestiam mais, entortavam, eram códigos indecodificáveis. Segredos. Dava a chance de que se decifrasse. A mãe não olhava seus cadernos, o pai sumira do mundo, a avó só brigava com a mãe, os outros professores nem perdiam mais tempo, os colegas apenas esbarravam nele como se ele coisa que atravancasse. Diego dizia, o indicador certeiro, mas os olhos tão se virando claros nas órbitas: Garatujas!
O ambulante desceu do ônibus quase com ele ainda em movimento, agradecendo como se cantasse, ramalhete de flores artificiais nas mãos. Renato parara por causa do veículo a sua frente, cruzando, mas agora o homem o olhava, e olhava os outros.
_Uma rosa pra mamãe, meu rapazinho...
Difícil. Aproximação. A pequena flor de celofane lhe custara o único real em moeda perdido em seu bolso, que surrupiara de cima da mesinha da televisão ao cochilo da mãe. Comprava sempre chicletes. Doces, quando conseguia surrupiar notas frescas e azuis de dois reais.
Sentia uma coisa nova, o peito arfando como que se lhe faltasse ar, em meio ao tumulto dos garotos e garotas que se atropelavam entrando, rumando para a fila do almoço. Longa e tumultuada. Apitos do inspetor tentando por ordem. Poeira amarela e seca. Desviou-se, cosendo pelas paredes de tintas gastas, novamente rabiscadas, enfiou-se naquele corredor mais estreito, entre salas mais austeras, portas cerradas, tosses secas vindo detrás dessas; aquela entreaberta, veio risada, outra, outra. Um rosto redondo que identificou sendo de mulher. Era dona Cleyde, bem a sua frente, braços cruzados na altura do peito, os sapatos fechados, a calça jeans, aquele coque preso com uma caneta no alto do cocoruto.
_Aqui não é o caminho não, garoto - disse seca na voz e na tosse que logo se seguiu.
Segurava a flor na ponta do dedo, o queixo baixo, as orelhas pontudas de abano, os olhos se procurando nas órbitas, o nariz escorrendo. Escorria, escorria, o gosto salgado vindo a boca quando passou a língua. A carranca impassível da mulher.
_O professor Diego tá aí - perguntou finalmente, mas tão baixinho, que a mulher não ouvira, em meio ao eco da algaravia do tumulto vindo da cantina. Hein, hein, ela era a careta de ouvidos apurados.
_O...Pro...fe'sô Di..Di...e...go - conseguiu repetir arquejante, como histérico, ficando vermelho, tendo cuidado com a florzinha de caule e corolas de um colorido da mesma matéria.
_Diego Charles, Diego Charles, gritou ali da porta num ar de enfado.
E como ela sumiu e apareceu ele assim tão de repente? Fazia-se sério, uma mão no queixo, um ar de talvez se perguntar naquele franzir de cenho, as sobrancelhas se juntando, a franja oculta, lambida para trás.
_Pra mim - admirou-se de súbito Diego, surpreendido, abrindo o rosto num sorriso sem compreensão ao ver a mão mirrada e seca do garoto o estendendo a florzinha mísera. Pegou-a, olhou-a com aprovável encanto e voltou-se para o garoto de olhos baixos de novo, um riso de rosto vermelho ou acobreado.
Coube-lhe aquele afago rápido nos cabelos rebeldes sem-tesoura.
_Obrigado, Renato, muito obrigado - disse até orgulhoso, Diego, numa voz mansa. O garoto bebia a sua voz, aspirava-lhe a emanação perfumada daquela aproximação. Tremia de leve nas pernas raquíticas.
_Vá, vá pegar o almoço, vai perder a hora da comida - apressou-se em dizer-lhe, Diego e ficou o olhando dali da porta, a rosa de celofane tão humilde e tola entre os dedos juntos aos olhos, vendo o garoto se afastar de um modo desconsertado, a mochila esgarçada e suja presa nas costas.
Tinha sobre a mesa de tampo de vidro, da sala de seu apartamento no terceiro andar, as pautas das ensebadas avaliações dos seus alunos. Como sujavam as folhas, os dedos sempre engordurados de salgadinhos e doces, ou mesmo meleca. Os garranchos arranjando respostas equivocadas e tolas, quase como os recados pichados sobre as paredes. Amanhã os encararia com a mesma tolerância que de todos os dias. Sem nenhuma esperança, mas com alguma fé. Entre as folhas ainda revolvidas, além do seu leptop aberto e ligado, a rosinha pendia sua corola triste, mal comportado seu caule, do mesmo material, dentro do copo de acrílico com aquelas canetas que ele quase nem usava mais. Os olhos sorriam arregalados, sentado sobre os pés na cadeira, procurando conforto. A noite lá fora, pela janela aberta, como oferecendo diversão. A chave jogada no cantinho da mesa, seus olhos se abaixaram, uma mão buscando uma folha, outra mão buscando outra folha, os olhos na planilha na tela do computador. Sentiu o beijo quente sobre seus cabelos, o cheiro suado. Levantou os olhos e sorriu para ele.
_Vou tomar um banho, rapidinho, mô - ouviu a voz viril já ao longe, a porta rangendo a se abrir e cerrar.
Diego suspirou, mordeu levemente os lábios, aquela folha na mão. A voz cantarolava firme, quente, o perfume de sabonete chegava até ali. O nosso sabonete, o nosso xampu, o nosso desodorante. Secretos. A observação nas janelas, pelas ruas, as curiosidades alheias. O diário na planilha. Numerais em vermelho. Naquela folha em sua mão, um risco vermelho de um ponto de interrogação enorme. Não tinha como entender aquela frase ou período. Nada. Garrancho sem elos. Como a fala entrecortada, a coriza no nariz, a cabeça enterrada nos ombros, entre as paredes sujas, em meio a poeira tênue, mas sempre, sempre, amarela. Assim mesmo a florzinha dizia tudo. E aproximou dos olhos a provinha de bordas maculadas pelos dedos sempre sujos, fez-se olhos míopes, mordeu o lábio inferior com fúria, todo inclinado. Meneou a cabeça, o rosto se abrindo num suspiro de desistência, relaxou as pernas expostas no short curto, coxas grossas, espreguiçando-as.
_Ai, ai, gemeu como se aproveitasse o beijo molhado do namorado bem na sua testa, entre a franja espalhada. Pegou a florzinha pelo caule delicadamente, erguendo-se num salto, aceitando as mãos fortes que o puxava pela cintura, rindo em cócegas, deixou-se arriar sobre o sofá, o outro por cima, o braço da mão que segurava a florzinha pendeu para o chão, ao impacto do remexer em cócegas de ataque das carícias, e a florzinha rolou da sua mão e caiu sobre o taco encerado. Abandonada.
Sobre a mesa, entre o computador ainda ligado, os papéis espalhados, o copo com canetas, a provinha de bordas ensebadas continuava com o ponto de interrogação grande e vermelho sobre aquela resposta em letras tortas e palavras tão apertadas uma na outra que aspirava ser ao menos uma frase.