Joãozinho que não foi, voltou
Ah, Carlinhos! Quem foi que te sujou desse jeito, hein? Venha cá, vou dar um jeito nisso. O Jorginho já está limpo, não quer ficar igual ele? Quer sim, tenho certeza! Olha que feio! Quanta sujeira saindo no pano! Tenha paciência, filhinho, já estou acabando. Adoro cuidar de vocês. Adoro! Faço tudo com carinho, como se fosse mãe, porque eu amo vocês todos. Talquinho, agora! Nenê vai ficar cheiroso! Mais um pouquinho, o que é que custa? Ah, bem melhor. Bem melhor, não acha? Só falta o Graciliano...
- Dona Emília - chegou como um fantasma e me pregou um tremendo susto, a bendita.
- Ai, Sebastiana! Quer me matar do coração!?
- Desculpa, dona Emília, é que achei gozado...
- Achou o quê gozado? - notou Graciliano em minhas mãos e fez pergunta desviando o assunto.
- A senhora tava passando talco nos livros? - não tinha nada para fazer e resolveu me vigiar.
- Talco! Sim! - expus teoria que criei naquele exato momento - é ótimo para a conservação das páginas. Descoberta recente.
- Caramba... cada coisa... - me olhou com cara de quem se esforça para não desmentir - Ó, deixaram esse livro na mesa.
A faxineira pôs à minha frente um exemplar da primeira tiragem de Sagarana, do Guimarães Rosa. Mil novecentos e quarenta e seis. Lombada e cantos em couro. Apesar das páginas amareladas e da idade, o livro estava bem conservado. Minhas mãos trêmulas. Joãozinho, meu Deus! Primeira edição, meu Deus! Uma peça rara! Onde mais neste país seria possível encontrar tal tesouro?
- Você disse que deixaram sobre a mesa?
- Sim, senhora. Foi aquele homem de chapéu cinza bonito que vem aqui de manhã e de tarde. Parece que eu vi ele tirando de dentro do casaco.
- Que estranho... vou consultar - me voltei para o computador. Os exemplares que tínhamos do Sagarana eram de edições recentes. Bem inferiores por sinal, impressas em papel cuja qualidade desmerecem a riqueza da obra. Apesar de ver o carimbo da biblioteca nas primeiras páginas - carimbo aliás, com fontes diferentes, nunca tinha visto assim por aqui - o citado volume não estava cadastrado. Olhei sem ação para Sebastiana.
- E então, dona Emília?
- Não sei o que aconteceu. Quem foi mesmo que trouxe?
- Lembra daquele homem que a senhora deu bronca uma vez porque tava lendo em voz alta na mesa?
- Seu Liberato?
- Ele mesmo!
Repreendi-o porque a regra na biblioteca é bem clara. Silêncio absoluto. Não fosse a presença de vários outros leitores naquele dia, eu, ao invés de ordenar silêncio, pediria que continuasse. Que continuasse! "A princípio não te vi: não soube que ias comigo, até que as tuas raízes atravessaram o meu peito, se uniram aos fios do meu sangue, falaram pela minha boca, floresceram comigo". Não esqueço das palavras. Seu Liberato se desculpou, dizendo que não resistiu à tentação de repetir em voz alta aquelas belas linhas criadas por Neruda. Esperei à mesa da cozinha o chá esfriar, escutando um de meus LPs dos Bee Gees. Me peguei pensando nestes acontecimentos, daquele dia e também o de hoje. Acordei de madrugada com uma ideia. Primeira coisa que farei amanhã de manhã.
Se eu soubesse que o fichário estava empoeirado desse jeito, teria limpado há mais tempo. É serviço que eu mesmo faria, não tenho coragem de pedir para mais ninguém. Nada que ofereça ao arquivo morto risco de sofrer algum dano. Eu estava certa, aquele velho Sagarana é da época das fichas! Foi emprestado e devolvido última vez em outubro de mil novecentos e oitenta e quatro! Era da época que eu, mocinha no colégio, conhecia e me apaixonava por Guimarães Rosa nas aulas de Literatura. Mais nenhum registro de empréstimo! E de repente seu Liberato apareceu com ele! Deve ter no mínimo...
- Dona Emília! - dei um pulo e por pouco não caí da cadeira.
- AI, SEBASTIANA! Mas será o Benedito?! Chama de longe, mulher! Chega de mansinho! Desse jeito eu morro aqui, caramba!
- Mas eu cheguei de mansinho, dona Emília! Desculpa! Primeiro bom dia, né? Vamos falar bom dia porque senão o dia não vinga.
- Bom dia. Por que chegou assim tão de repente?
- Seu Liberato já tá aí.
Tinha dia que madrugava, o homem. Reparei que possuía vários fedoras, todos cinza, uns mais claros, outros escuros. Podia fazer sol, ficar nublado, chover, e até mesmo durante a noite, não deixava de usar chapéu. Das costeletas para cima, não imaginava como era o cabelo dele.
- Bom dia, dona Emília. Como está? - elegante, inteligente e muito educado. Não acreditava que tinha roubado a biblioteca.
- Bom dia, seu Liberato, estou bem, obrigada. Por acaso foi o senhor que trouxe ontem um livro antigo do Guimarães Rosa? - baixou os olhos e ficou em silêncio. Percebendo que ele não ia falar, continuei - uma pessoa me falou que parece ter visto o senhor deixando este livro sobre a mesa. Ele voltou os olhos para mim.
- Sim, eu trouxe de volta.
- Eu vi o carimbo da biblioteca, mas não encontrei no cadastro. Quando o senhor pegou?
- Há cerca de trinta anos.
- Trinta anos? O senhor ficou com o livro por todo esse tempo? - estava falando em voz alta até notar leitores me olhando.
- Trinta. Aproximadamente.
- Por que devolveu só agora? - voltei a falar baixo.
- Porque justamente há alguns dias encontrei o livro no quartinho de despejo lá de casa.
- Não me diga! - meu tom de voz mudou sem que eu quisesse.
- Pois é, todos os que peguei, com exceção deste aí, devolvi cerca de três, quatro meses depois.
- Mas como assim? O usuário só pode ficar com o livro por no máximo quinze dias!
- Você está se referindo ao empréstimo formal. Levei desta biblioteca diversos títulos sem qualquer funcionário notar.
- Seu Liberato!
- Veja, dona Emília, duas semanas é um prazo curto. Minha leitura é demorada. Repito parágrafos, volto capítulos para compreender melhor. Leio trechos que mais gostei em voz alta. Tiro cópias para enviar aos amigos desde a época do envelope. Eu não conseguiria fazer nada disso em duas semanas. Estava nos últimos dias de faculdade, quase mudando para a capital, já com proposta de emprego, e acabei levando comigo.
- Então é por isso que algumas vezes procurei por títulos sem encontrá-los nas prateleiras. Deviam estar com o senhor!
- Certamente.
- Sabe de quanto seria a multa por atraso na devolução?
- Deixe-me ver... - recostou-se na cadeira com o sossego inabalado do início da conversa e calculou - dez centavos por dia... daria pouco mais de mil reais.
- Isso mesmo, seu Liberato. E saiba que o senhor teve sorte. Este livro não está cadastrado. Encontrei registro somente no antigo fichário.
- Sorte mesmo, dona Emília. Que bom.
- Ainda tem algum livro na casa do senhor?
- Nenhum. Todos devolvidos - sorriu, muito leve, o seu Liberato. E lembrei das outras vezes que ele sorriu para mim. Lembrei também das vezes que eu o surpreendi me olhando. Deve ter sido nestas horas que ele escondeu os livros sob a roupa.
- Menos mal, seu Liberato. Menos mal - ele sorria. Eu não.
- Então estou isento de taxas?
- Está sim, mas vou pedir para o senhor não fazer mais isso. Além do risco do senhor ter problemas, pode também prejudicar os funcionários da biblioteca.
- Não creio que a falta de um ou outro volume iria fazer estrago tão grande assim.
- Por favor, seu Liberato, estou pedindo.
- Pois então está prometido. Com licença. Volto já - cortou a conversa e saiu tranquilamente pela porta principal. Que menina que roubava livros, que nada! Temos o seu Liberato aqui na cidade! Mais tarde vou reunir os funcionários e pedir para que fiquem de olho toda vez que ele vier até a biblioteca! E voltou. Lá vinha ele olhando para mim, caminhando para cá. Sinal nenhum de arrependimento. Como pode? Trouxe uma rosa na mão e me entregou. "Obrigado, querida", disse, sempre sorrindo. Tirou o chapéu numa reverência e pela primeira vez vi seus cabelos grisalhos bem penteados. "Já vou indo. Tenha um ótimo dia". Ele! Seu Liberato, que levava escondido livros da biblioteca. Inteligente, charmoso, sempre presente nos espetáculos teatrais da cidade, lançamentos de livros, visitas de bandas, orquestras e companhias de dança. Um peregrino da cultura. E ousado! Levava escondido livros da biblioteca! No fim das contas, uma característica fascinante. Revirei na tela do computador e encontrei o cadastro do seu Liberato. Para minha sorte, tem o telefone dele.