aMoREs ImPeRFeiToS

Ainda jovem aprendi a arte da jardinagem. Aprendi a escolher as sementes, cuidar da terra, matar a sede do gérmen para que ele vingasse, educar o broto até que ele amadurecesse em flor, e quando enfim um botão surgisse, era necessário todo um carinho para que desabrochasse. Quando, enfim, rompiam as cores e o perfume era hora de colher; e metido a botânico fazia eu os vasos e buquês, ramalhetes diversos contendo a mais singela beleza das flores. Então, colocava-se uma embalagem, uma marca e um telefone. Vendas! O comércio se apresentava sorrindo como o gato de Alice, seduzindo com o argumento de que é preciso ganhar a vida. E a vida foi sendo ganha de flor em flor. Uma loja, uma floricultura, uma empresa de renome. Pessoas, dinheiro, administração, publicidade, burocracia, negócios... Flores!

Logo formou-se a Amores Imperfeitos. Com o sucesso da minha empresa em todos os lugares se via escrito em letras garrafais AMORES IMPERFEITOS; amores imperfeitos aqui, amores imperfeitos ali, uma explosão de amores imperfeitos, nos comerciais, nos jornais, nos outdoors, era uma explosão de amores imperfeitos, amores imperfeitos, amores imperfeitos... Quando eu quis colocar esse nome na minha floricultura dividi as opiniões de publicitários, marqueteiros, administradores e especialistas da área; alguns defendiam ser totalmente contraditório tal nome para uma marca em que a missão era fazer dos momentos mais especiais da vida das pessoas ainda mais especiais - era fazer do presente um presente, mas com flores. Afinal no nascimento as mães e os bebês recém chegados ao mundo ganhavam um colorido se recebiam flores, nos aniversários, nos pedidos de namoro, noivado, no próprio casamento formando o buquê da noiva, que fazia a felicidade das donzelas que ainda sonhavam encontrar um príncipe quando a noiva enfim o atirava no ar para quem tivesse sorte agarrar, até o dia da morte onde somos cobertos por elas, fazem coroas de flores, e nossos entes queridos as levam e a depositam sobre nosso túmulo em todos os dias de finados ou quando nos vão visitar para matar a saudade acreditando que ainda estamos ali. Flores estão presentes do nascimento até a morte. São imparciais e incoerentes, tanto quanto o nome que escolhi. E a vida é um estado de amor ágape, porém imperfeito, ininteligível. A outra parte dos profissionais me apoiaram quando lancei no ar essa minha filosofia, e disse que isso despertaria desconforto e curiosidade, o que era uma boa estratégia. Mas fosse ou não uma boa estratégia, minha teimosia faria com que eu pudesse colocar o tal nome com o qual cismei.

Ainda mais incoerente era fazer da flor amor-perfeito o carro-chefe da empresa, sendo ela parte do logotipo, e tornando-se até um mascote muito famoso, principalmente entre as crianças. Mas isso tudo era a área de marketing que decidia por mim. Porque para mim tanto fazia fazer das rosas, dos cravos, das margaridas, das violetas ou seja lá qual fosse a protagonista das campanhas. No entanto, o sucesso foi feliz com os esforços profissionais; empresas compravam amores-perfeitos para enfeitar seus estabelecimentos e ou eventos, pois diziam que ela representava os bons frutos dados pelo trabalho; até a gastronomia a consumia para enfeitar e compor pratos, já que é comestível. É, seja amores-perfeitos ou imperfeitos, são estes comestíveis, e havia quem se interessasse só nessa pragmática. Quanto ao nome das flores e da marca, mudado pelo prefixo de negação in, foi aceito sem maiores esforços graças a força da publicidade. Em pouco tempo já não tinha mais quase ninguém que pensasse que amores imperfeitos um dia foram perfeitos. Um investimento de peso fez arraigar na cultura aquele mero prefixo in, sem nem perceberem a alteração de seu significado. Acostumaram-se.

Hoje, eu aqui, engravatado, dono de uma empresa ornamentada por flores de laranjeira, dentes de leão, hibiscos, onze-horas, lavandas, girassóis, orquídeas, bonsais... e minha vida só é florida assim, em níveis rasos. Pois, há muito tempo, logo quando comecei a vender flores logo me apaixonei, só que o amor não correspondido me fez murchar como as plantas que não são cuidadas. Montei uma estufa de esperanças em mim, até que um dia uma tempestade destruiu tudo aquilo que eu tinha cultivado, primeiro estilhaçando vidros, destruindo toda a estrutura, para enfim ir matando as flores. Depois disso tirei toda poesia da minha vida, taxei meu coração de idiota, porque ele tava achando que era intestino, e só fazia merda. Ah, eu e minha mania de fazer trocadilhos, e isso me irritava... eu mesmo fazia, eu mesmo nutria antipatia da minha falta de criatividade; quem dera eu fosse um pouco mais poético, porém repito: - tirei toda poesia da minha vida. E ainda há quem diga que essa minha perda de estribeiras, essa constante e intensa autocrítica é um charme, por ser algo espontâneo acaba sendo também encantador. Mas não acredito em elogios, não sei lidar com eles, há sempre uma desconfiança de que sejam mentiras ou deboches. Pois cedo eu descobri que a vida é feita de deboches. E sempre acham que estão puxando meu saco, projetando o sucesso da empresa em mim. Status e aparências são o que importam. Sorrisos amarelos, mostra de dentes, apertos de mãos, tapinha nas costas. Aquilo me sugava. Eram vampiros para mim e não sabiam. Eu ficava exausto, sem energia.

Certa vez quando ainda havia em meu íntimo um pouco de esperança de que um dia pudesse realizar meus sonhos passionais vi se aproximando no horizonte um temporal. E impotente só me restava rezar para que meus jardins não fossem destruídos pela chuva forte. A cada trovoada meu coração estremecia também como um trovão. Era a vida debochando de mim, testando meus medos e coragens. A cada relâmpago no céu brilhava em meus olhos a angústia de ser fraco, de não ter poções ou feitiços ou rezas ou alguma proteção ou fortaleza. A cada raio que rasgava o céu azul, me rasgava também por dentro a agonia de ser homem. Assim como o céu negro e cheio de nuvens carregadas começava a ficar de tal modo também o meu interior quando me desiludi traído pelos sentimentos. E eu me martirizava me perguntando se seria eu o idiota de ter acreditado em meus sentimentos puros, ou nos sentimentos vis de quem amei. Era a vida, insistindo em debochar, em parodiar histórias que eram para ser bonitas, dava esse ar blague a chuvas que eram para regar sementes, e não destruir as flores, arrancando-as pela raiz. Mas nunca é demais reforçar que a vida é feita de deboches, de esperanças e de tapas na cara; coisa tosca.

Ás vezes penso ser como as onze horas, disciplinadas e cheias de personalidade, tenho lembranças de um carrinho-de-mão cheio das onze horas que minha avó possuía em seu jardim, achava aquelas plantinhas com aspecto frágil incríveis, pois logo vi que eram fortes e resolutas, eu as tinha subestimado por sua aparência, outras horas deveria ser como os girassóis e procurar olhar sempre para onde ainda tenha algum vestígio de luz, e fazer das minhas sementes alimento para os pássaros, ser símbolo de fortuna, ou ainda como a malmequer, auto suficiente até no nome, indiferente as negativas que surgirem no caminho, mas estou mais para cacto, quero distância de outros corpos, sou independente, me viro bem sozinho, me valorizo.

Enfim, não sou cravo nem rosa, mas saí despedaçado e machucado... (e mais uma vez cheio de antipatia por meus trocadilhos) então, resolvi deixar de simplesmente ser um floricultor e fazer negócio, as flores não podiam me dá amor, mas podiam me dá dinheiro. Era um pseudo amor, um amor imperfeito, o único que eu consegui cultivar; e o que a maioria das pessoas sabem cultivar e colher, e nem sabem que essa flor, que nem existe é uma planta venenosa, carnívora até. E eu as vendo. Eu vendo incoerência, vendo inexistência, vendo automatismo, mas chamam isso de sucesso, mesmo se for artificial. E digo com um sorriso forçado lhe apresentando um buquê cheio de clichês: - flores para uma flor! Ah, essas almas penadas... coitadas! Compram flores, compram amores imperfeitos, quando deveriam plantá-los e lhes desejarem a perfeição.

Rodrigo Amoreira
Enviado por Rodrigo Amoreira em 15/10/2015
Código do texto: T5415539
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