O saguão era enorme. Lembrava as demais rodoviárias, mas tinha o dobro do tamanho, era impossível ver onde terminava. Milhares de pessoas chegavam a todo o tempo, trazida por grandes ônibus de dois andares, e por alguns de apenas um andar, mas que eram compridos, e com suas duas partes ligadas por uma espécie de mola.

O saguão transmitia paz àquelas pessoas. Todas elas com olhares esperançosos, sorrisos em seus rostos brandos, vestindo roupas de tonalidades claras, e todas, sem exceções, com seus olhares vidrados no enorme portão de grades amareladas e reluzentes, pintadas de ouro. Era uma visão linda. O saguão era realmente impressionante.

Ali perto, isolada em um canto mais vazio, uma senhora de cabelos curtos, muito brancos e encaracolados, parecia um pouco mais ansiosa que os demais presentes. Ela esfregava suas pequenas mãos, e se equilibrava na ponta de seus rechonchudos pés, tentando enxergar além da multidão. Seu nome era Isabel. Idosa, com mais ou menos um metro e cinquenta e oito de altura, usava um grande vestido de cor azul-claro, e que reluzia contra a luz que vinha do portão. Em seu semblante, um sorriso tímido indo contra a impaciência de seus olhos que circulavam por todos os cantos.

Foi então que ela escutou algo. O autofalante chiou, e uma canção familiar começou a tocar ao fundo. Tentou escutar melhor esticando seu pescoço, mas as pessoas ao redor não paravam de falar. Estavam todas alegres demais para fazer silêncio naquele momento. Tentou se concentrar, e enfim conseguiu reconhecer a canção. Na verdade, já parecia saber de qual se tratava, mas conseguira ouvir um verso. Seus olhos se encheram d’água. Era “Sá Marina”, na voz de Wilson Simonal. Isabel respirou fundo, fechou os olhos e cantarolou por alguns instantes a música. Suas lágrimas começaram a rolar dos olhos, e ela se sentiu bem. Aquilo era um sinal. Aquela bela canção era um aviso.

Ao seu lado, encostado na parede de ladrilhos brancos e limpos, um senhor a observava. Era magro, alto, usava uma calça comprida de cor bege, e uma blusa do clube de futebol carioca América. O vermelho da blusa contrastava com todas as cores claras das vestimentas no saguão, mas ele parecia pouco ligar. Ele sorriu para Isabel, e apontou para cima, tentando mostrar a canção. Uma confirmação de que aquela música era um aviso.

- Ela está vindo! – sussurrou ele.

Isabel fechou os olhos, e algumas outras lágrimas caíram. Com suas mãos gordinhas e já idosas, ela esfregou o rosto, e sorriu. A música continuou, as pessoas continuavam chegando. Algumas sorridentes, outras chorando, mas todas tinham a mesma reação ao encontrar seus conhecidos. Todas corriam para um abraço terno, um abraço indescritível que transbordava amor e paz. O carinho ali presente inundava o local com esse amor, algo contagiante, assim como a saudade que ia sendo dissolvida naqueles abraços. Uma força única que se tornava inexplicável para quem não pudesse estar ali presenciando aquilo. Era algo divino. Era o amor na forma mais pura existente.

Isabel se aproximou lentamente do homem com a blusa do América, mas sem tirar os olhos do grande portão dourado.

- Ela está demorando, Orlando. Será que...

- Calma, Isa! Calma, vai! – pediu apertando levemente os ombros da esposa.– Lembre-se de onde estamos. Ela está apenas atrasada!

- Mas sempre fora tão pontual! Lembra? Sempre chegava quase duas horas antes dos compromissos! Tão pontual, minha filha...

- Era coisa da cabeça dela, você bem sabe! Faz anos que não a vemos! Anos mesmo! Deve estar sendo uma mudança drástica para nossa menina. Todo o medo, a insegurança e claro, aquela solidão no momento exato da partida maltratam muito. Se acalme, vai! Calma, amor! Você ouviu a música! – pediu Orlando dando um beijo na testa de sua esposa, e depois lhe limpando as lágrimas.

Isabel repetiu a última frase do marido em voz baixa. “Você ouviu a música”. Sim, ela havia escutado “Sá Marina”. Só podia ser um sinal. Não existiriam coincidências ali. Tudo era exatamente como devia ser. Desde o princípio. Antes de todas as decisões. O peso das preocupações, o medo, as dúvidas, a angústia, tudo seria explicado. Todo o mistério. A sensação de paz, os reencontros mais que esperados, os trabalhos que seriam exercidos para sua evolução, e também como forma de ajudar aos demais. Tudo era exatamente como devia ser. No tempo exato. E ali, o tempo não existia.

Então a canção parou, o saguão começou a se esvaziar. Foi se esvaziando. Esvaziando. Pessoas saindo de mãos dadas rumo às estradas cercadas de árvores carregadas de frutos, e caminhos de terra que cheiravam aos mais agradáveis aromas do campo. O sorriso de Isabel sumiu.

- É... Acho que ela não vem. Não foi a hora dela chegar, Orlando. Será que nos enganamos?

Foi aí que Orlando repetiu o gesto de antes. Apontou novamente, agora para frente, e com um sorriso um pouco mais largo. Isabel virou-se atônita. Seus olhos foram cegos pela claridade da luz que emanava do último ônibus, porém, logo que se recuperaram e puderam enxergar, ela sorriu e caiu num choro de alegria incontrolável. A silhueta foi ganhando forma. Era sua filha.

- Mamãe? É... É mesmo a senhora? – perguntou a mulher ainda perdida no local que acabara de chegar. – Cê ouviu, Mamãe? Tava tocando Sá Marina!

As duas se abraçaram emocionadas. Orlando se aproximou e as abraçou com seus longos e magros braços. Os três choravam deixando toda saudade e tristeza de lado. Estavam juntos novamente. As pessoas ao redor, aquelas poucas que sobraram, sorriam contagiadas por tamanha felicidade. Era possível ver um enorme círculo de luz clara e viva ao redor do trio.

- Demorou, mas chegou, Fatinha! A última foi a primeira! – brincou Orlando, se referindo ao fato dela ser sua filha caçula.

- Orlando! Isso não é hora de brincadeiras! Fátima ainda tá confusa com isso tudo! Comporte-se!

- Isso aqui é lindo, pai! Meu Deus! Parece o Auto da Compadecida! Num parece, mãe? Tão lindo! Eu sempre chorava quando a Nossa Senhora aparecia...

Os três se abraçaram novamente. Fátima segurou a mão de cada um e iniciaram uma caminhada. Mais a frente, ela os soltou e caiu ajoelhada chorando. Não sentia dor, ou tristeza. Era algo bom, uma saudade misturada com uma paz interior, só que a saudade era forte.

- E todos os outros! O bebê? Sinto tanta saudade dele. Como gostava de pentear meus cabelos. E meus irmãos. Pararam de brigar?... Meus sobrinhos... Um deles faz teatro, a outra quer estudar, sabe?

Isabel ajudou a se levantar.

- Eles estão bem, Fátima. Você mudou suas vidas, e será... Ou melhor, e é muito amada por todos. Só que precisou seguir. Às vezes, mais pra frente, poderá visita-los, ajuda-los... Mas precisa se purificar. Ainda tens toques de vícios de sua vida. Estamos a caminho da casa da cura. Lá todos te ajudarão. Sua tia Dora não vê a hora de te receber por lá. Todos estão muito felizes com sua chegada.

- Mais tratamento? Mais hospitais? Acabei de passar meses em cima de uma cama, não aguento mais!

Orlando se intrometeu entre as duas.

- Encare como um SPA, minha filha.  Tratamento VIP, um grande clube, música deliciosa. Eles vão cuidar de ti, limpar sua aura, energizar sua luz. Sua vida foi sofrida, meu amor. Trouxe consigo muita energia negativa, mas não é sua culpa. Você precisava. Você é um ser amável de luz. E tem tudo para evoluir tal como! E não somos nós que estamos dizendo, amor. – comentou Orlando apontando agora para cima.

Fátima sorriu e o abraçou. Depois, começou a tossir. Levou a mão ao peito. Parecia se lembrar de algo.

- Acho que ainda estou doente. Não é?

- Não filha. Mas seu corpo deixou marcas em sua alma. Tudo que precisa é desse acompanhamento. Posso dizer que está viciada em seus hábitos pouco saudáveis de sua vida lá embaixo. Agora é o processo de desintoxicação. Tem gente para te ajudar. Muitas pessoas aqui vivem só para isso. Distribuir cura e amor. Ah, e adivinhe! Eles servem salgadinhos e refrigerante enquanto isso. Temos queijo Cheddar!

Fátima sorriu, porém seu olhar fixou-se no grande portão que se afastava.

- Um dia... Um dia posso mesmo visita-los? Falar com eles? Sinto falta do bebê...

- Claro que sim! Não creio que poderá falar com eles. Não diretamente, né? – respondeu Orlando.

- É. Eles podem achar que sou uma alma penada. Odiava filmes de terror! Meu sobrinho adorava. Às vezes eu via com ele, e num conseguia dormir. Horripilante! Isola!... Ué, não tem madeira pra eu bater três vezes!

- Supertições, Fátima! Deixa disso! Tem-se essa visão errada dessa passagem. Tudo só melhora. Somente os incrédulos ou confusos acabam por serem confundidos com seres de luz negra. Todos nós termos o dom do amor, perdão e compaixão. Precisamos apenas trabalha-los. A vida continua, e temos até Cheddar! – explicou Isabel beijando a testa de sua filha.

Os três então se abraçaram novamente. Mais um abraço após décadas de separação. Fátima sentia uma calma inexplicável. Algo totalmente diferente de outras ocasiões, quando tinha pensamentos repetitivos, onde tinha medo e insegurança na maior parte do tempo. Agora, sentia-se desprendida. Estava com aqueles que ela amou acima de tudo. Que não deixava de pensar ou colocar nas orações um só dia que fosse.

Enquanto Isabel e Orlando iam à frente cumprimentando as pessoas, e apresentando Fátima à elas. A recém-chegada pensava naqueles que havia deixado para trás. Em como sentia que desperdiçara uma vida inteira, por se dedicar a vícios, pensamentos agressivos e dúvidas sobre a verdade sobre as coisas. Não sentia arrependimento ali. Lembrava-se de como era esse sentimento, mas era como se estivesse bloqueado em seu coração. Algo extraordinário. Sentia apenas alegria, paz, muito amor, assim como a saudade. A saudade que agora tomaria seu peito, e que em breve poderia ser diluída em forma de abraços ao longe, conselhos durante o sono, e tentativa de guiar aqueles que mais amava para longe dos problemas. Sonhava agora que em breve, sabe-se lá o que o breve significasse ali, estaria de novo rodeada por todos eles, bebendo refrigerante, assistindo televisão, e degustando queijo Cheddar derretido. Exatamente como nos velhos tempos. Exatamente como tentava fazer quando incessantemente tentava uni-los. Ao final, quando partiu, Fátima conseguiu marcar e unir sua família. E após fazer isso, após chegar onde chegou, conseguiu viver. Melhor ainda, Fátima, depois de tantos anos sofrendo em um mundo criado por sua mente, conseguiu se sentir viva.

Seus parentes sentem sua falta, mas todos sabem o quão especial ela foi. O quão linda foi sua história. O quão guerreira e ser humano Fátima foi, enquanto esteve entre eles. Sua partida não muda em nada a admiração. Muito pelo contrário, coloca-a em um pedestal, num altar. Uma pessoa fantástica, que apenas distribuiu amor e nunca pareceu pedir nada em troca.

Saudades.

 
FIM

Para minha tia,madrinha, e pessoa que fez de minha infância e adolescência um lugar melhor, FÁTIMA VELLOSO.
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 29/09/2015
Reeditado em 21/10/2015
Código do texto: T5399057
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