NÃO TEM HORA, NEM LUGAR

Não era bonita, mas tinha um charme avassalador. Por onde passava, levantava poeira. Gostava de um forró bem dançado e rebolava sua saia curta cinematográficamente. Seu corpo tampouco era de miss, no entanto era desejada e cantavam-na em prosa e verso. Sabia-se sedutora e escondia a sua tristeza por detrás disso. Aos trinta e sete anos, ainda não havia casado nem tido filhos. Ela era a empregada do 71. Poucos sabiam seu nome e todos a chamavam de “Chica”, um apelido de infância.

Todas as semanas ia passear na Praça Benedito Calixto, lá na feira de antiguidades. Era seu lazer. Gostava de ver aquelas coisas lindas, brilhantes e absurdamente caras, serem expostas, amontoadas e negociadas. Lá tinha de tudo , barraca para todo gosto. Ela sabia que fazia parte das admirações locais. Passeava para ver e ser vista.

Um vendedor de livros usados, uma espécie de sebo ambulante, era apaixonado por ela. “Seu” Nelson, dono da barraca, sempre a cumprimentava elevando-se de seu banquinho e fazendo menção de tirar o chapéu. Puxava conversa e mostrava poesias e contos. A princípio, quando a conheceu, tentou até lhe vender alguma coisa. Quando viu que a moça era assídua frequentadora, passou a lhe emprestar alguns. Ela lia e devolvia, sempre com algum comentário, ocasião para conversa e interação. A Chica o tratava com respeito, mas após dois passos da barraca não se lembrava nem do dito, nem do “home”.

“Seu” Nelson, figura enigmática, não tinha passado, nem futuro. Vivia seus dias, um de cada vez. Dizem as más linguas que era um falido e que vendia a biblioteca de seu pai para comer. Era tudo que tinha. Morava na região e só vendia naquela praça, não frequentando nenhuma das outras feiras do gênero em São Paulo. Parecia beirar os oitenta, mas era puro desleixo, sobreposto às marcas da vida. Sua educação, no entanto, era excepcional. Falava vários idiomas e opinava sobre cultura críticamente. Falava o português de forma clara e inteligível, fato que o ajudava em muito, nas vendas e trocas que fazia.

A Chica já trabalhava para a dona Dita faziam quase vinte anos. Uma senhora de idade avançada e, ultimamente, bastante doente. Tinha uma filha e uma nora, ambas arrogantes e insuportáveis, que vez ou outra vinham dar palpite, trazer compras e algum dinheiro. Pagavam as contas e o salário da Chica, sempre com atraso e irritação. No dia em que a dona Dita se foi desta para melhor, com certeza, elas nem sequer apareceram. Vieram os homens da Funerária e o filho, que nem reconheceu a empregada. Dois dias depois, a Chica foi despedida e lhe deram uma semana para sair do apartamento.

A notícia correu o bairro. “Seu” Nelson, assim que soube se ofereceu para ajudar. A Chica, que não tinha aonde cair morta, aceitou, mas para trabalhar. Tiraram os livros do quarto de empregada e ela se mudou para o apartamento, com duas malas e um enorme urso de pelúcia, que tinha um coração vermelho no peito. “Nossa, quanta poeira! Cruz credo!”

A vida seguiu, com “Seu” Nelson feliz, pela proximidade, e Chica por continuar no bairro. Por uns dois meses, um arrumou a vida do outro, até que o coração do “velho” parou. Foi como se ele não tivesse aguentado tanta emoção, de ficar olhando aquela mulher mais do que uma vez por semana. Todo dia, foi demais. O porteiro ajudou a chamar a ambulância, mas “Seu” Nelson morreu no caminho. A Chica desesperou-se: “se a notícia espalha, estou frita”... “vão pensar que eu dou azar e nunca mais arrumo emprego”. Sentou em uma pilha de livros para chorar. Afinal, desgraça pouca era bobagem. “O que vai ser de mim, sem ninguém, sem emprego?”, pensou, quando escutou o barulho de chave abrindo a porta. Apavorada, levantou-se, ficou qual estátua e viu um homem, na casa dos quarenta, razoávelmente bem vestido entrar. O cidadão fechou a porta e nem notou sua presença, foi logo colocando as chaves sobre um móvel e a pasta sobre a poltrona. Quando ia tirar o casaco deu um pulo para trás e, assustado, perguntou: “Quem é você?”. “Sou a Chica, empregada do “Seu Nerso”. “Meu pai não tinha empregada! ... nunca vi você”. “Pois é, o senhor nunca veio aqui, pode perguntar na portaria”.

Após as devidas apresentações e explicações, conversaram por uma meia hora até que deu fome nos dois. A Chica foi fazer almoço e pensou em caprichar para ver se fisgava o “home”, afinal o estômago costuma ser um dos órgãos mais sensíveis nos preparos do amor, e ela como boa solteira já sabia bem disso. A verdade é que, até hoje, nunca tinha funcionado, pelo menos não com ela. Realmente, a comida estava uma delícia e Jorge ficou admirado do tratamento que seu pai recebeu em seus últimos dias. Checou a geladeira, a despensa e não cansava de elogiar. “Olha, é Francisca, né?...”Chica!”...”então, é que eu e minha esposa estamos precisando de uma cozinheira lá no nosso restaurante e você está altamente qualificada e, com certeza, vai ganhar mais do que ganhava aqui”. A Chica não cabia em si de tanta alegria e foi logo perguntando: “Mas onde fica?”...”o restaurante?”...”é”...”no centro”. Tudo de ruim. Como ia fazer para trabalhar no centro, sair do bairro. Não conhecia nada em São Paulo, fora Pinheiros e uma ou outra coisa, daquelas mais importantes, como o Parque do Ibirapuera, aonde fora uma ou duas vezes nesses anos todos. Procurou argumentar, mas não tinha como. Ou era, ou não era. “Olha, nos fundos do restaurante tem um quartinho que está vago, eu falo com a Eulália, e você pode ficar por lá, até arrumar coisa melhor”. ”Eulália?” ... “minha esposa...” ... “ah”. Assim estava bom e a Chica foi.

O trabalho no restaurante não era fácil, mas ela tirou de letra e logo nas primeiras semanas iluminou toda a região do Pátio do Colégio. Ela levou aquele seu famoso modo de ser e rápidamente passou a fazer parte da paisagem. Pura alegria, contagiando a todos, incluindo os clientes da casa que notaram a melhora do tempêro e começaram a elogiar, querer conhecer. Jorge, que não era bobo nem nada, pelo menos pensava ser esperto, foi logo cortando as asas, com medo de lhe roubarem a cozinheira. “A concorrência é fogo e não se pode dar mole”. Ainda mais, depois que a fila aumentou por conta do tempêro e da própria Chica.

Tudo era “Céu de Brigadeiro” até o dia em que Jorge chegou do banco e encontrou no lugar da esposa, que deveria estar no caixa, um singelo bilhete preso na registradora, assinado conjuntamente pela Chica e pela Eulália: “Querido, nos apaixonamos e vamos morar juntas. Você é uma pessoa boa e vai encontrar quem goste de você e cuide das suas coisas. Te queremos bem. Até...”

Ocirema Solrac
Enviado por Ocirema Solrac em 21/06/2007
Reeditado em 27/12/2011
Código do texto: T535468
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