854-ENSINA-ME BEIJAR -
Nos anos ginasiais a inocência da infância que me faziam um garoto tímido foi pouco a pouco sendo perdida. Convivendo com garotos da minha idade de onze anos e alguns mais velhos, numa ocasião em que um ou dois anos de diferença representavam muito, o aprendizado de coisas antes jamais imaginadas, foi acontecendo de forma normal.
Começou a descoberta do sexo e das possibilidades próprias da meninice. O olhar para as meninas já era diferente e se havia uma reciprocidade, se a garota olhasse de volta, então se prenunciava que chamávamos de flêrte, ou uma possibilidade de namoro.
No ginásio, de freqüência exclusiva para meninos, administrado por irmãos Lassalistas, assuntos como meninas, namoro e afins estavam implicitamente proibidos. E para evitar que os colegas mais velhos, das segunda, terceira e quarta séries nos transmitissem ou nos ensinassem “coisas impróprias”, os alunos da primeira série eram segregados no pátio do recreio. Havia o pátio dos menores, área pequena em que os cinqüenta e poucos garotos pouco espaço tinham para os minutos de intervalos entre as classes.
Como já disse, eu era muito tímido e por qualquer coisa que me envergonhasse, meu rosto claro ficava vermelho como pimenta madura. O que foi passando com o tempo, pois aos poucos ia me acostumando com as “gozações” e apelidos pejorativos.
Aos doze anos fiquei conhecendo, por um feliz acaso, uma garota que me despertou estranhas sensações. Dina morava em outra cidade e veio passar as ferias de julho com sua irmã, casada e nossa vizinha. Magra e alta parecia ser mais velha do que eu, e mostrava-se bem mais avançada, tantos nas maneiras como nos assuntos. Falava desembaraçadamente com a irmã e os mais velhos; gostava de dançar e ir ao cinema. Viajou sozinha de sua cidade (por trem) até Paraíso. Tudo isto era bem diferente para as garotas que eu conhecia: as vizinhas, primas e as ex-colegas do grupo escolar.
Logo ficamos amigos. Dina sorria muito e seus olhares eram significativos, intensos e constantes. Animei-me. Já tinha uma mesada e comprei para ela uma revista de novidades, “Carioca”, que vinha com muitas notícias dos artistas de rádio. Ela gostou e me agradeceu com um abraço. Fiquei vermelho e ela me animou:
— Não precisa ficar com vergonha, Toninho — Ela não me chamava de Tonico, meu apelido familiar. E prosseguiu
— Vamos ler juntos, se você quiser.
E como queria! Ficar ao seu lado era o que eu mais desejava, sentindo o cheirinho bom de seus cabelos.
Pensei que poderíamos ser namorados, mas nada lhe falei a respeito.
E então, veio a tragédia: Dina começou a namorar um colega do ginásio!
Foi um namoro que aconteceu já no final de suas férias, acho que foi coisa de uma semana antes de ela partir. Mas fiquei num despeito danado.
Não desanimei. Na tarde em que ela embarcou no trem, de volta para sua terra, fui à estação da estrada de ferro para despedir-me. Lá estava a irmã, que gostava de mim e acho que via com bons olhos nossa amizade.
Eu já tinha me munido do endereço de Dina e prometi-lhe:
— Vou lhe escrever uma cartinha, ta bom?
— Sim, quero receber suas cartas, Dina respondeu, abanando as mãos na despedida.
Naquele segundo semestre de 1949 trocamos cartas. De pura amizade, nada mais sério.
No final do ano, ela veio de novo passar as férias em Paraíso. De novo flertava comigo e ia namorar o tal colega que agora eu olhava com reserva.
Então, era assim: pelas tardes a gente se encontrava, conversava sobre o que nós dois gostávamos e à noite ela ia à Praça da Matriz para flertar com o meu “rival”.
Até que numa tarde muito quente, meu atrevimento chegou ao máximo. Depois de muita conversa fiada, eu disse francamente que gostava dela e queria namorá-la.
— Ah, mas você sabe, eu estou namorando o Ricardinho. – Ela me respondeu, assim, na bucha.
Não me dei pó vencido e falei o que jamais havia pretendido dizer:
— Então, já que você não quer me namorar, pelo menos, me ensina a beijar.
Surpresa, ela não respondeu com palavras.
— Hã!
Já que havia chegado àquele ponto, não recuei. Fui prá frente.
— É. Eu nunca beijei uma garota. Você bem que podia me ensinar.
Estávamos sentados na soleira do alpendre da casa de sua irmã, bem ao rés da rua. Ela me respondeu:
— Você nem sabe se eu sei beijar...
Pensei rápido: Ela não disse não. Quer dizer que pode ser que...
— Ara! Você já namora o... o... já faz tempo, de certo que beija ele, e ele também te beija.
A resposta dela foi surpreendente:
— Aqui não dá. Vamos lá prá dentro de casa.
— E Dora, sua irmã? Taí dentro?
— Não. Ela saiu; Foi fazer uma visita. Acho que demora.
Subimos os degraus, entramos na casa e fomos até a sala de jantar. Sentamos numa poltrona macia e então Dina, com toda a delicadeza, disse:
— É assim, ó...
E bem beijou no rosto.
Não era bem o que eu pensava. Senti que minha cara estava vermelha e suada, e seus lábios roçaram de leve pela bochecha.
Decepcionado, não tive coragem para mais nada. Saí correndo, tropecei nas cadeiras, passei pela porta e fui para casa.
No dia seguinte, bem de manhã, fui procurá-la.
— Vim te pedir desculpas, eu não pensei...
— Bobinho — ela me respondeu com aquele sorriso brejeiro e balançando a cabeça. — Eu estava brincando.
E me puxando prá dentro da sala, me abraçou com força e me beijou na boca. Um beijinho suave, mas agora, sim, era um beijo de verdade.
Eu quis prolongar aquela sensação, mas ela logo escapou. dizendo:
— Pronto, agora podemos conversar.
Atarantado, não sabia o que dizer. E ela com naturalidade, prosseguiu:
— Ontem fui ao cinema com Dora. Quando as luzes se apagaram, “ele” veio sentar na cadeira ao meu lado.
Sai correndo de novo da sala. Desta vez para nunca mais voltar.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 29 de agosto de 2014.
Conto # 854 da Série Milistórias