Gotinhas de Lavanda
Era o 13, parador, que vinha chegando. E a gente se animava. Méier. Na plataforma da estação não havia muita gente. Talvez 8 e quinze ou um pouco mais que isso. O jogo começava às 9 e não era muito importante. Além do mais, de noite sempre ia menos gente. O que só era diferente quando se tratava de um “clássico”, como os mais velhos diziam. Que não era o caso de hoje.
O trem praticamente vazio. Ocupamos logo o primeiro banco que vimos, paralelo à uma das laterais, e começamos a “zoação”. Na época não devia ser esse o nome que usávamos. Mas brincávamos uns com os outros. Nossos amigos e meu irmão, rapazes ainda, e eu o mais novo. Talvez com 14 anos ou um pouco mais do que a gente levava no bolso: 11 cruzeiros, 2 para o trem e 9 para a Geral do Maracanã. Devia ser essa a moeda da época. Pagávamos apenas a ida, 2,00, porque na volta contávamos com aberturas que sempre havia nos muros da linha férrea.
No meio das brincadeiras havia espaço para os improvisados comentaristas esportivos. Discutíamos as escalações das equipes, o sistema de jogo, se seria retranca ou mais ofensivo, bolas altas na área do adversário... praticamente o que se continua fazendo. Havia um técnico conhecido pelo apelido de “Feiticeiro” que eu sabia, apesar de mais novo, que não tinha tanto poder assim. Pois quando jogávamos contra o Mané das pernas tortas, me tremia todo com os seus avanços pela ponta direita, rezando para que ele perdesse logo a bola ou alguém o derrubasse. Sabia que seriam grandes as chances de gol do adversário.
Logo que chegamos à bilheteria, entramos na pequena fila em frente a um dos guichês. Em jogos à noite entre times “pequenos” contra os “grandes” as filas normalmente eram pequenas.
Foi fácil notar a menina à nossa frente ao lado de um homem que os mais velhos chamariam de meia-idade. Loura, um pouco mais alta que eu, aparentando 15 ou 16 anos, para mim mais bonita do que era ao vê-la enrolada com a bandeira do nosso clube. Era natural que se sobressaísse entre o preto e o vermelho de nossa bandeira. Embora cena provavelmente pouco comum à época, meu irmão e nossos amigos não deram muita importância à lourinha, além de certos olhares reveladores de uma surpresa inicial. Possivelmente por acharem-na muito criança. Ideia que certamente faziam de mim.
Mas eu não. Seguia cada movimento dela a partir do instante em que a vi. Apesar de não me descuidar das conversas à minha volta, fazendo qualquer intervenção que eles julgariam boba e só não me “encarnariam” mais porque meu irmão estava ali.
Percebi o carinho que era tratada pelo homem ao seu lado e a retribuição por ela oferecida. Não pude ver os ombros cobertos pela bandeira, mas era indiscutível a sinuosidade do corpo e a grossura das pernas que a calça comprida clara escondia.
Quando pai e filha – era o que imaginava – pararam no carrinho da Kibon, lamentei não ter dinheiro para comprar também um sorvete. Não iria pedir ao meu irmão. Não costumava fazer isso. Mas retardei o que pude os passos para que o grupo se retardasse também e pudéssemos acompanhar a lourinha que torcia pelo meu time.
No estádio, subimos a pequena rampa de acesso à Geral e eles se distanciaram um pouco. Mas logo os alcançamos, pois aquela rápida subida sempre nos enchia de excitação ou nos deixava ansiosos. Era o que eu pensava que todos sentissem quando nos deparávamos de repente com o gramado verdinho todo iluminado, ali tão perto da gente.
Depois de terem comprado o sorvete, pude perceber que ela também me notara. Os olhares disfarçados que trocávamos a partir de então, aparentemente não percebidos pelo pai dela e pelos do meu grupo, possivelmente foi o que nos manteve todos próximos na Geral.
Com quinze minutos de jogo, nosso “meia-esquerda”, como dizíamos, na intermediária, dribla um, dribla outro e ao driblar o terceiro sofre falta violenta, pouco antes de entrar na grande área. O nosso negro franzino, ocupante da “meia-direita” (hoje meio de campo) é encarregado da cobrança e coloca a bola “na última gaveta”, como alardearia o locutor esportivo da ocasião.
Fanáticos torcedores, eu entre eles, vibramos intensamente. Meu irmão, certamente sem o perceber, abraça com efusão o possível pai da lourinha, fazendo o mesmo depois com cada um dos nossos quatro amigos. O que nos dá a chance de nos olharmos, ela e eu, mais detidamente.
- Puxa, até que enfim!
- Legal. Mas ainda está no início, ela me responde.
- É que a gente vinha atacando sempre. O gol tinha que sair.
- Sabia que o Moacyr ia faturar essa, meu irmão intervém.
- Ele bate muito bem. Sempre foi muito bom. Tanto que foi convocado como titular para a seleção, comenta o homem ao lado da lourinha.
- Isso mesmo, concorda meu irmão. Olha, não repara não, o guri aí é o caçula da família.
- E a menina é minha filha. Somos todos da mesma família de torcedores.
Tudo isso sem ninguém tirar os olhos do gramado.
- Moramos no Méier, meu irmão continua.
- E nós em Maria da Graça, o pai dela responde.
Do que me aproveito para perguntar a ela:
- Vocês vêm sempre ao Maracanã?
- Meu pai prefere à noite. Ele trabalha nos fins de semana.
No intervalo, o pai dela e o meu irmão foram ao bar. Trouxeram cerveja pra todos e refrigerantes pra nós dois.
- Estudo na Isabel Mendes, no Méier. E você?
- Estou indo pra lá esse ano.
Meu coração deu pulos quando escutei a resposta dela. O ano estava começando. Certamente nos encontraríamos mais vezes.
- Será que vamos estar da mesma sala?, arrisquei a pergunta.
- Pode ser, aquele sorriso de indefectíveis ironia e beleza. Que elas se atraem ou nos atraem.
Quando terminamos todos com a bebida, anunciei que devolveria os cascos. O bar era ali perto.
- Vou te ajudar. Posso pai?
Na volta do bar, antes de nos juntarmos ao grupo, ela pegou-me pela mão e, procurando o refúgio de uma reentrância lateral, beijou-me suavemente a boca. Gelei. Mas não deu tempo de fazer nada. Muito menos no que pensar. Pois ela logo puxou-me e fomos nos juntar ao grupo.
Durante todo o tempo do jogo passei esquecido. Mas ao apito final, quando olhei pro lado, ela e o pai já tinham saído.
Hoje, depois de tantos anos, separações de um lado e do outro, nos reencontramos. Colocamos duas gotinhas de óleo de lavanda no travesseiro para que o sono seja melhor. Mas não ousamos ou fazemos questão de lembrar daquele jogo.
Rio, 17/05/2014