Um Dia Qualquer
Gritaria. Conversas em voz alta. Bagunça.
Em meio ao movimento, os dois se esbarram. Sorriem. Ele segue o mesmo rumo dela, em direção a fila. Talvez seja coincidência. E é realmente uma surpresa, para ela, quando se senta e percebe que está ao lado dele. Arruma o cinto, confere. Fecha a grade, confere.
Frio no estômago. Mãos suando. As dele.
- Oi!
- Oi. – Ela Responde. É quase um sussurro.
- Você não se lembra de mim, não é? – Ele começa a ficar vermelho, se esforça para ser ouvido em meio ao tumulto.
- O quê? Eu não...
Ele repete, fala mais alto. Ela sorri e abaixa a cabeça. Um minuto de silêncio em meio ao barulho. Ela observa.
- Você... Você tem medo de altura, não tem?
- Por que você acha isso? – Pergunta, em tom de descaso. A garota ri antes de dar a resposta.
- Porque suas mãos estão grudadas na grade de proteção desde o momento em que pôde alcançá-las.
Ele imediatamente focalizou as próprias mãos, olhou-as com espanto, como tomando consciência do que fazia, e soltou o ferro no mesmo instante, batendo, então, suas mãos na calça, para limpá-las do que quer que fosse que as havia sujado: poeira, ferrugem, vergonha...
Sentiram um tranco. O equipamento havia chegado ao topo. Encararam-se de novo. Embora já soubessem o que aconteceria naquele instante, deram-se ao luxo de levar um susto, quando foram tomados por uma abrupta impressão de não existir qualquer amarra que permitisse aos seus corpos alcançarem terra firme de forma segura. Num ultimo suspiro antes do desespero, a moça deixou uma frase estridente solta no ar:
- Curta o passeio!
Ele praguejou a ironia na voz dela, ao perceber a rapidez com a qual se aproximavam do chão.
Ora que, naquele instante, fizeram-se felizes os surdos por poderem gritar sem críticas constrangedoras, fizeram-se satisfeitas as senhorinhas por estarem com tudo "em cima" e os senhorezinhos, pelo compromisso com as aventuras da vida estar ainda "de pé". Fizeram-se contentes também as fulanas de cabelo naturalmente escorrido, os fãs do Supla e as crianças.
A moça, por sua vez, ensurdecia o colega com a mesma intensidade que ele se esgoelava ladeira abaixo, a diferença que, enquanto ela urgia “- Uhuuuullll!”, ele gritava “- AAAAAAHHHHH!”
Ao chegarem à base e descerem do brinquedo, os dois ainda sob efeito da adrenalina soltaram um "- Nossa..." que parecia até combinado, porém suas motivações eram completamente opostas. A exclamação dele se fazia na gostosa sensação de perceber um solo consistente sob seus pés. E a dela, era referente aos cabelos arrepiados e emaranhados que viu no reflexo da tela do celular.
Na ansiedade e esperança de uma paquera bem sucedida, ele a encarou, em um ato inédito de coragem. Ela estava a apenas um passo de seu toque. O rapaz levou a mão como que por instinto ao cabelo da garota, arrumando e acalentando os fios agitados e esparsos. Ele seria um herói de si mesmo, iria convidá-la para sair! A menina fitou, com um sorriso, suas feições dedicadas, porém, em seguida, abaixou a cabeça em um sinal de constrangimento ou pudor ou...
Com uma confusão evidente no rosto e a mão suspensa no ar, ele percebeu seu sonho afastar-se. Mas antes que algo pudesse ser dito ou explicado, uma figura seis centímetros mais alta que ele esbarrou com força em seu ombro, tomando lugar à sua frente e envolvendo a garota num abraço apertado.
O rapaz entreabriu a boca, paralisado por um instante. Numa súbita reação de derrota, então, retrocedeu alguns passos, desfazendo o mesmo caminho que, acreditava ele, nunca deveria ter seguido. A garota lançou um olhar inquieto por sobre os braços do homem, em direção àquele que há um minuto fora sua companhia aventureira. Contudo, ao buscar seu alvo, fixou os olhos em uma silhueta de costas, que, a cada batida do coração estando um metro mais longe, friamente se despedia.
A realidade se apresentava tão crua como um peru em véspera de Natal. Sim, aquele era um dia qualquer, como foi ontem e como será amanhã. Nada mais.
Na segunda-feira, ele escolheu dentre suas melhores camisas, uma em algodão, na cor cinza-tempestade, combinando com a tonalidade daquele céu frequentemente chuvoso, e encaminhou-se sorridente ao trabalho.
Embora o que havia acontecido martelasse em sua cabeça, ele tentava se convencer da certeza de que todos os dias pessoas entram e saem da sua vida, como aquela de domingo à noite. Afinal, qual era a estúpida convicção que ele tinha investido em um encontro de cinco minutos? Se ela não recordava-se dele antes, agora é que não se lembraria...
Ele se consolava com a ideia de que teria tanta gente para atender quanto fosse necessário para distraí-lo desses pensamentos importunos. De resto, era só questão de tempo. E não foi muito diferente do esperado, mesmo que ele, sem querer, procurasse no semblante de cada cliente algo que se assemelhasse a ela.
Kendra Hintze
02.04.2015