O cuscuz chegou!
Uma noite chuvosa, com certeza mais chuvoso está meu coração, por mais uma vez perder um seminário da faculdade particular de ciências da computação, isso para fazer o meu papel social de marido perfeito, não tenho culpa se a universidade pública continua em greve. A porta se abre e ela entra primeiro, simpatia é seu nome, estava em um vestido branco de cetim com estampas florais, uma sandália e bolsa Arezzo de cor amarela combinando com as flores da estampa de sua roupa, perfume francês coco mademoiselle, indiscutivelmente uma mulher elegante. Eu como sempre blusa gola polo, na cor verde clara, calça jeans e sapato social preto combinando com o cinto. Somos recepcionados por Marília Guerra, que é doutora em psicologia, me deparo com aquela sala imensa, sentados no sofá de veludo cor cinza, o anfitrião, doutor em história, Mauro Guerra e ao seu lado o doutor em psicologia, Ricardo Collar. Todos muito bem vestidos, prefiro não entrar nos detalhes do figurino, assim me sinto melhor, eles bebiam vinho, com certeza era português.
- Sejam bem-vindos! - exclamou Marília com um belo sorriso.
- Obrigada querida! Boa noite a todos - disse Valentina como sempre sorrindo.
- Vinho para o brinde - falei em voz alta, elevando a garrafa que Valentina comprou em Portugal na nossa última viagem, uma bebida regional de marca Pacato. Por fim, a entreguei para Marília.
- Obrigada, você como sempre um cavalheiro - disse a anfitriã, roucamente.
Nesse momento percebi que Valentina e Ricardo trocaram olhares. Isso me doeu profundamente, pensei o que ele tem, será o doutorado ou a beleza? Em sete anos de casados ela tinha acabado de ser aprovada para o doutorado em psicologia, por isso estávamos ali, para comemorar com amigos o grande resultado, aliás mais um. Já eu, havia mudado de faculdade três vezes, depois de ser jubilado no curso de matemática da universidade pública, detalhe que não merece ser lembrado, e ainda era chamado na turma de doutores “o garoto da informática”, pois não passava disso, ela me bancava... apesar de ter dois empregos que nem de muito longe poderiam fornecer o alto padrão de vida de uma professora universitária e psicóloga altamente requisitada. A culpa era minha, confesso, começamos no mesmo nível, ela cresceu, eu estagnei. Quando caminhávamos para nos sentar surgiu dona Flor, a
empregada do lar, trazia algo para os petiscos, isto me pareceu algo combinado, quando:
Mauro: - O cuscuz chegou! Praticamente gritou.
Ricardo: - Oba! Isso no mesmo tom de voz do colega.
Todos riram e celebraram aquele terrível momento, inclusive eu, afinal sou um ótimo ator, digno do Oscar. Voltando ao momento tédio profundo... eu odiava aqueles pratinhos que eram servidos em pequenas porções, nas quais comíamos à moda americana, gosto logo do prato principal e de comer à mesa, mas pela ética social peguei um como todos, no intuito de me enturmar. Quando sentamos no sofá de três lugares de frente aos dois varões, os olhares dos amantes continuaram discretamente. Precisava quebrar aquele clima de paquera, então peguei na mão de Valentina e mordi forte.
Ela: - Aí, doeu! – disse toda dengosa.
Eu: - Aí não, amor doeu e foi pra doer. Mais lhe espera quando chegarmos em casa, falei isso como se nada tivesse acontecendo ao redor de nós dois.
Marília: - Nossa quanto desejo... risos.
Eu: - Mauro, porque você chama esse escondidinho de carne do sol e milho de cuscuz?
Mauro: - Pelo fato da massa inventada por dona Flor ser feita com cuscuz. Nossa secretária é muita criativa. Eu nunca havia comido antes nenhum escondidinho de milho.
Ricardo: - Muito menos eu, disse sorrindo.
Detesto admitir, Ricardo é mais bonito que eu, ele deveria ter 1,89 de altura, eu tenho 1,78. De que vale só a minha altura, uma vez ouvi minha sogra falando que eu era como camarão, só prestava o corpo. Pior que é verdade, sou orelhudo, branco, peso 80 quilos, cabelo duro e sou a cara do meu pai, feio de doer. Fato que tentava compensar com a simpatia. O doutor em psicologia era moreno claríssimo quase branco, cabelos lisos, olhos cor de mel, dentes branquíssimos (será se faz clareamento?) e corpo atlético, tem algum defeito? Saindo dos meus pensamentos e voltando à conversa falei:
-Tenho que concordar.
Valentina: - Estou muito feliz por vocês fazerem parte de mais essa conquista da minha, aliás de nossas vidas, falou pegando na minha mão, só sorri.
Mauro: -Você merece querida, é uma mulher esforçada, eu e Marília estamos aqui para lhe apoiar em tudo que precisar.
Ricardo: - Eu também, absolutamente tudo.
Eu: - Ficamos imensamente gratos, agora só não sei quem escolho para padrinho do nosso primeiro filho.
Marília: - Amiga, você está grávida?
-Só depois do doutorado... ela olhou para mim com o olhar de reprovação e continuou: querido já falamos sobre isso, sabe que agora não temos tempo, nem eu e nem muito menos você, amado.
Ricardo: -Valentina, você será uma perfeita mãe. É uma mulher rara, sabe realizar todos os papéis sociais muito bem.
Eu: - Sim todos, e merece todos esses confetes, disse.
Mauro: - É, se o esposo diz isso, devo assinar em baixo, creio que a conhece muito bem, não é meu caro?
Minha garganta deu um nó, seria aquela pergunta uma indireta, então creio que aqui neste apartamento de alto luxo, que mais parece uma loja de decoração de tão perfeito, não havia ninguém inocente sobre o caso de minha esposa e Ricardo. E eu seria então o que? O famoso corno cuscuz, como fui recepcionado, um homem sem dignidade, que sabia das traições dela e abafava, não, não era o primeiro caso. Como fiquei sem palavras sorri concordando com um gesto na cabeça.
Marília: - Vamos jantar? Já estou com muita fome.
Valentina: Nos desculpe pela demora, sei que nos atrasamos, esse transito de Fortaleza só piora a cada dia.
Ricardo: - Verdade, por isso acabei vindo de táxi, dirigir me estressa muito. Não existe respeito nem regras nas ruas.
Eu: - Amo, dirigir é um dos meus maiores prazeres - exclamei como quem triunfa, sou melhor que ele em alguma coisa.
Ricardo: - O meu maior prazer é a leitura, depois a música - então ele se virou pegou uma bolsa que estava do seu lado em uma dessas mesas decorativas e retirou dela uma gaita, falou e voz suave - senhores vejo que a mesa está muito bem posta por dona Flor, mas lhes peço um minuto para expressar minha gratidão por esse convite. Mauro acenou com um gesto positivo, assim tocou um ritmo de música country americana. Quando terminou aplausos e assobios.
Marília: - Bravo!
Valentina: - Perfeito demais, estou sem palavras.
Mauro: Parabéns Ricardo, você é dez!
Eu: - Estou com fome - falei porque não tinha o que dizer – risos.
O jantar continuou, prefiro me deter até aqui, pois posso garantir a noite não estava prazerosa pelo menos para mim. Pior não é apenas ciúmes nem suposições. Já fazem dois meses que sei desse caso extraconjugal de minha esposa, e não é o primeiro, também não vai ser o último. Como eu sei? Sim, sou o garoto da informática, invadi o e-mail dela. Não sou como Bentinho em Dom Casmurro, que até hoje existem controversas sobre a traição de Capitu. Acredito que já me rendi a essa situação, afinal aquele era meu mundo, meus amigos, meu papel na sociedade. Será se algo pode me salvar desta sentença, quem sabe outro amor ou Jesus (o Deus do impossível pregado por meus primos evangélicos)? Se preciso de fé não sei, talvez me amar primeiro, só que ela era minha deusa, meu amor a minha vida.