Entre nós, a Lua e o Mar

A Lua derramava sua branquitude brilhante sobre as águas negras do mar noturno. Escorria pelas ondas sutis que vibravam na quietude escura. Ele encostava na grade de ferro e vidro que protegia os desavisados do pequeno penhasco que se debruçava sobre as águas. Ela estava ao lado dele, mas era como se não estivesse. Olhava para o mar e para a Lua e permanecia silenciosa como a noite.

Apesar de darem as costas, não ignoravam a enorme piscina de água aquecida e iluminada pela luz esverdeada que se calava naquela quinta-feira vazia. Aquele edifício era abrigo dos foragidos da cidade grande em finais de semana e feriados, não num dia útil da rotina.

Ele já beirava os 18 anos, já não morava no litoral, fora vencer na vida em São Paulo, na faculdade que tanto lutara para entrar. Mas não havia abandonado a adolescência praiana. Retornava de tempos em tempos para o apartamento onde os pais moravam e convidava os amigos da infância que permaneciam em sua cidade natal.

Mas ela não era uma amiga de infância. Era aquele primeiro ardor no peito, de olhos pesados ao som de músicas tristes, de letras de fossa e melodias angustiantes. Era o primeiro beijo, conquistado a duras penas alguns anos antes, por insistência dela, não dele, que tentou por semanas fugir daquele momento assustador até perder para a pressão dos amigos e da consciência.

Havia sido estranho. Lembrava dos rostos se aproximando, dos olhos fechados enquanto a boca se abria. Lembrava do calor da pele e do hálito, dos lábios molhados se tocando em algum momento daquele curto mas demorado movimento. Das línguas úmidas dançando desornadas. Dentes que trombavam. Amigos que zombavam nos dias que se seguiram, porque ficara claro para ela que aquele fora o primeiro dele.

Aquele peso o perseguiu pelos anos seguintes. Pelos poucos beijos que surgiram pelo caminho, a maioria com ela mesma. Passavam meses sem tocarem seus lábios até que um ou outro insistia na repetição e tudo acontecia de novo. Era sempre estranho, mas ele gostava. O peso das risadas sempre vinha à mente dele, mas ele continuava porque gostava.

O medo frequente naquela época era que ela pensasse que ele estava apaixonado. Era isso que acontecia nos primeiros beijos, não? A inocência acabava de joelhos diante da experiência. Ele não podia estar apaixonado, forte como se via, não podia estar apaixonado pela garota mais nova. Mais experiente, é verdade, mas mais nova. Não, ele não estava apaixonado, ele só queria repetir os beijos porque eram estranhos, mas bons.

Já fazia meses que não se beijavam naquela noite em que a Lua escorria pelas águas, talvez já fizesse mais de ano, e por isso a vontade dele era ainda maior que nos anos anteriores. Fazia mais de ano que não tocava os lábios de outra garota.

Permaneciam em silêncio, depois de horas jogando pingue-pongue e pebolim no salão de jogos daquele edifício vazio e silencioso, depois de horas de provocações e brincadeiras, de piadas e risadas, de disputas que valiam um selinho molhado se ela perdesse e, acredite, ela sempre perdia. Os lábios se tocavam úmidos a cada derrota mas aquilo não era um beijo, não poderia ser creditado como um beijo, ah, não, ninguém diria que aquilo era um. Mas o calor que acendia no peito e na pele, os arrepios que subiam pela nuca, a sensação de sentir a respiração dela rente ao seu rosto, de sentir a maciez daqueles lábios vermelhos, tudo aquilo o fazia perder o controle e querer segura-la pelos braços, agarrando os ombros da garota e trazendo o corpo dela para perto de si, recuperando os beijos breves que se perderam nos anos que passaram, nos anos em que ele não estava apaixonado, nos anos em que ela não estava apaixonada, nos anos em que escutavam músicas de fossa tristes, abraçados como amigos no chão da sala da avó dela, entrelaçados como amigos que eram, porque não estavam apaixonados.

Ela comentou da Lua. Ele comentou do mar. Ela disse que a noite estava perfeita e ele concordou. Ela aproximou a mão da dele, ambas postas sobre o parapeito. Ele manteve a dele parada, porque não estava apaixonado. Se ele repetisse o movimento dela, seria porque estava apaixonado, mas não estava.

Ela comentou do vento. Ele comentou do calor. Ela disse que era um momento perfeito e ele concordou. Ela jogou o corpo para perto do dele, ambos encostados sobre o parapeito. Ele se manteve parado, porque não estava apaixonado. Se ele repetisse o movimento dela, seria porque estava apaixonado, mas não estava.

Ela perguntou se ele estava namorando, disse que não. Ele repetiu a pergunta dela, respondeu o mesmo que ele.

A Lua se esticava no reflexo sobre o mar e o vento quente acariciava os cabelos louros dela. Os olhos claros se voltaram aos dele e entre os lábios vermelhos e molhados, que minutos antes os dele tocava nas brincadeiras de vitórias e derrotas, surgiram os pequenos dentes brancos que se sobrepunham uns sobre os outros. Era raro sair um sorriso dali, pela timidez dos dentes tortos. Ele não se importava com aquela imagem mas se perguntava se os encontrões dos dele com os dela não seriam por isso. Fazia anos que se questionava.

Ela disse que era hora de voltar para casa. Ele pediu que ficasse mais um pouco. Ela insistiu que era hora de voltar para casa. Ele disse que tudo bem.

Quando já estava sozinho no quarto, quando o momento perfeito já era memória, quando estava ouvindo as ondas que destruíam a branquitude da Lua, ele se perguntava por quê. Não estava apaixonado, não teria sido um problema inclinar o rosto e buscar um beijo, por isso se perguntava por quê. Ele tinha certeza que ela aproximara as mãos das dele, tinha certeza que inclinara o corpo na direção do dele, lembrava das palavras sobre a Lua, sobre o momento, sobre perfeição.

Mas ele sabia que o beijo dele não era perfeito e o que ele queria era que o beijo deles fosse. Ele sabia que ele não era perfeito e para não ter mais um momento que pesasse em sua consciência preferiu não ter nenhum. Preferiu deitar o corpo solitário naquele quarto escuro, enquanto o mar gritava pela janela, enquanto a música triste ecoava pelas paredes, enquanto, mais uma vez, ele deixava o momento passar.

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Daguito Rodrigues
Enviado por Daguito Rodrigues em 10/07/2015
Reeditado em 25/02/2016
Código do texto: T5306575
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