Amaro - Parto e Recomeço

Parte 1

Era madrugada quando cheguei à cidade de Parto. Não se ouvia nada além dos sons do silêncio e da minha ansiedade. Comigo trazia minhas poucas bagagens, a dor não curada, perseguidoras lembranças, muitas incertezas e uma imensa vontade de mudança.

Hoje, mais apaziguado, medito no fato de que o nome da cidade já sinalizava o que era a minha necessidade e o que haveria de ser a minha vida, a partir daquele dia. Parto sugere nascimento, o surgir de uma nova vida. Parto sugere despedida. A saída de um lugar para outro. Parto sugere repartir, compartilhar. Tudo isso era o que eu precisava. Abandonar os lugares e sentimentos antigos; nascer para uma nova fase, começar do zero; e partilhar desse novo eu com outras pessoas.

Não creio em coincidências. Mas o fato é que por algum motivo a vida me trouxe para este lugar.

A cidade mudou muito desde que eu a deixei de frequentar, aos dez anos, quando minha vó paterna falecera. Foram inúmeros fins de semana subindo e pulando das árvores do seu quintal. Sempre me encantei pela quantidade de pássaros que visitavam o jardim. A casa pequena parecia nos abraçar...

Na contramão do crescimento demográfico, econômico e da modernidade das construções, a casinha permaneceu igual - a não ser pelo maltrato do tempo.

Adentrei a velha casa como quem mergulha em si mesmo, na ânsia por se reencontrar. Assim como em mim, seu interior ainda abrigava coisas do passado, sem uso, empoeiradas, danificadas, mofadas... Mas, cheias de memórias. Difíceis de se desapegar. No entanto, foi uma das minhas primeiras atitudes. Caso contrário, o lugar seria inabitável. Tratei de por fora todos os móveis e utensílios. Tudo que se encontrava na casa - mesmo o que ainda pudesse ser reutilizado. Era tempo de novidade.

Foi cansativo, e me tomou quase todo o dia. No entanto, essa tarefa se revelou muito mais um exercício emocional do que físico. Era necessário - mas, doloroso - abrir mão de tantas memórias.

A segunda etapa foi escolher uma nova cor para tingir as velhas paredes. Muitas opções. Mas acredito que nenhuma delas seria tão significante quanto a cor branca. O branco da paz e da tranquilidade. O branco de uma página sem rascunhos ou textos definitivos; pronta para suportar uma nova história.

Enquanto pintava a primeira parede do quarto, ouvi de longe uma música que vinha invadindo os ambientes, partindo da casa ao lado. Era uma bela música - o que revelava o bom gosto musical de quem a colocara para tocar. Parece tolo dizer mas, inconscientemente, me pus a dançar e pintar, ao mesmo tempo. Quando dei por mim, riscava com os pés o chão do quarto e ritimava as pinceladas com os passos desajeitados de dança. Pareceria uma cena ridícula a quem tivesse o desprazer de vê-la. A mim, foi algo libertador.

Continua...

Marcos A. Sodré

Marcos Sodré
Enviado por Marcos Sodré em 19/06/2015
Código do texto: T5282750
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