O bilhete II
Paulo era daquelas pessoas que viviam entre tantas outras e pouco, ou nada, notavam sua presença. Avesso a badalações e agitações de qualquer espécie, sentia-se como uma jubarte bailando no espaço terreno: inacessível, distante, esfinge.
Na escola, onde já estudava havia 8 anos, era conhecido como Paulo. Ponto. Apenas como Paulo, o que, em sua opinião, já era informação suficiente. Olhava tudo como um visitante olha a Monalisa no Louvre. Havia uma distância entre ele e os demais seres humanos que o condecorava como alguém estranho. Ou esquisito, como alguns diziam.
Educação Física era sua tortura chinesa pessoal. De origem asiática, seus avós eram japoneses, não tinha a mínima disciplina para qualquer tipo de esporte, não se dava bem com tecnologias. Detestava correr, odiava contatos físicos, ainda mais aqueles umedecidos pelo suor fétido de adolescente. Paulo tinha obsessão pela sua higiene corporal. Jamais alguém o vira transpirando ou com qualquer indício de suor. O que ele fazia para não suar como aqueles adolescentes estúpidos a humanidade jamais saberá.
Era uma esfinge. Uma esfinge bonita. Cabelos lisos, aquela displicência capilar dos cabelos lisos e atrevidos dos japoneses, olhos puxados como quem força a vista para ver a luz do dia, altura mediana. Mãos pequenas. Tinha mãos pequenas e detestava isso. Herdou o nome de seu avô e detestava isso também. Não gostava de nome algum. Chegou a pensar em não ter nome nenhum e que cada um o chamasse como quisesse, o que faria dele uma eterna interrogação e o livraria de ter que responder a qualquer chamado. Paulo era um rapaz que não gostava.
Perdia-se em horas de leitura. Lia com compulsão Augusto dos Anjos, o seu poeta maior. O seu poeta perfeito e devastador. Sentia-se um incompreendido assim como a poesia do seu poeta predileto também era. As palavras que dos Anjos usava era, para Paulo, a síntese perfeita da sensação de não-estar, de não-pertencer a qualquer lugar, qualquer canto. Rabiscando nas folhas do final do caderno, sonhou em ter escrito na sua lápide:
“Jaz, aqui, um profundissimamente hipocondríaco homem que padeceu do mal da humanidade: a existência”
Riu daquela bobagem e desistiu de ideia, já que tinha a certeza que morreria queimado flambando alguma carne nobre (tinha certo prazer na gastronomia solitária) e cinzas não se juntam, conclui seu insight filosófico.
As semanas de aula iam passando até que um dia, sem mais nem menos, viu um bilhete em sua mochila. Dobrado com disciplina, jogado de qualquer jeito, mas de modo a ser propositalmente percebido por ele. Abriu. No bilhete: te amo. Seu rosto ficou chicoteado de vergonha e uma sensação estranha. Quem teria sido a autora daquele bilhete? Dobrou-o novamente, com toda a discrição do planeta, e fingiu para si mesmo que nada havia acontecido. Passou o restante da aula observando qualquer movimentação suspeita, mas nada. Temeu pela possibilidade de Biro descobrir aquele bilhete e transformá-lo em alvo de chacota. Isso ele não suportaria. A chacota. Não foi capaz de perceber nada.
Chegou em casa e, no seu quarto, pegou novamente o bilhete: te amo. Quem o amaria? Quem seria capaz de gostar de um rapaz que, naquela escola, abriu a boca raríssimas vezes e de comportamento esnobe com o resto dos alunos? Era mistério demais para um bilhete. Segurava-o com o coração batendo: alguém o amava. Mas quem?
O semestre chegou ao fim sem descobrir nada. E todos os dias abria o bilhete, discretamente, e lia: te amo. Olhava para todos e não conseguia imaginar. Até que, findo o semestre, entrou de férias e passou os dias com aquela tortura, aquele silêncio, aquele calor. Seus pais o comunicaram que iriam se mudar de cidade e que se organizasse e que fizesse tudo rápido e que a mudança seria em questão de dias e que ele não reclamasse. Pouco se importava com a mudança. Sua dor era não saber quem havia mandado aquele bilhete. Quem o amava.
Foi embora daquela cidade. Mas seu coração alimentava apenas um desejo. Que aquele bilhete tivesse sido mandando por Biro, a única pessoa que Paulo desejaria de verdade amar e sentir o suor umedecendo sua pele. Era Biro seu oposto perfeito e quem desejava ser, e ter. Mas ele um dia...
Paulo viveu aquele mistério por anos. E na sua lápide sonhou em ter escrito:
“... te amo.”