DEIXA QUE EU CONTO - MANUTENÇÃO PREVENTIVA

Mais uma vez entramos no carro em silêncio, tínhamos menos de um ano de relacionamento e o desgaste era equivalente a um casamento de mais de vinte anos. Meus pensamentos corriam mais rápido que as paralelas da estrada; vi-me entrando novamente naquela igreja de braços dados com meu pai, todos me olhando pasmados, talvez com a beleza do vestido, alguns, eu pude ver, pareciam emocionados, as solteironas aproveitando para chorar sem pudor à sua solidão. Meus olhos também se encheram, quando avistei aquele homem que prometia ser o homem da minha vida – e foi, ou é?

Flertamos por um ano, namoramos por quatro anos, noivamos mais um, planejamos tudo detalhadamente, fizemos uma espécie de contrato, cheio de clausuras que podiam ser alteradas e outras que não se podia mexer, tudo acordado entre nós. Divertíamo-nos muito no começo de nosso namoro, até chegar o casamento; chegávamos a conversar por horas ao telefone, tínhamos tanto assunto que criamos um tipo de marca texto imaginário, que usávamos para lembrar o ponto onde paramos o assunto do dia anterior; e é por isso que hoje esse silêncio machuca tanto.

Comecei a prestar atenção no barulho do motor do carro, na violência que o vento agride quando é contrariado pelos carros que vem de frente ao nosso. Cada engrenagem do veiculo me distraia. Voltei pra noite de núpcias, nos hospedamos num hotel de classe média em Fernando de Noronha, simpático até a hospedagem, tirando o excesso de gentileza das camareiras, eu daria mais uma estrela pra unir as três que possuíam. Voltando para a poltrona do nosso carro, passei a pensar no que poderia estar dando errado na nossa relação: Sou uma mulher comum, nem feia nem exuberante, tenho um gênio difícil às vezes, talvez por ter tido educação meio relapsa, fui meio autodidata nesse quesito, creio que soube me educar, analisando o comportamento alheio. Sou ciumenta, mais consigo disfarçar, já cheirei roupas antes de lavar, mas me senti tão ridícula que passei a fingir que estava vendo se estavam mesmo sujas e comecei a dizer isso pra mim mesma.

Nossos dias estavam passando sem que nos falássemos até a hora de retornar ao lar. Os e-mails com declarações, com citações de poetas, com elogios ás performances da noite anterior, que me faziam correr pra minha mesa, antes mesmo de cumprimentar meus colegas da repartição, e abrir caixa de e-mails e ver se havia o meu destinatário mais esperado, muito mais que as exaustivas malas diretas dos fornecedores, eles foram ficando mais raros. As mensagens, tão raras que agora tenho que ir à busca para encontrar alguma pra me entregar a nostalgia. Eu sempre respondi a todos, depois passei a escrevê-los, até que foram rareando as respostas e nunca mais nos correspondemos por e-mail, nem se quer um ”bom dia, meu amor”. Dávamo-nos “uma boa noite”, (seco) ás vezes, antes de apoiarmos as costas um do outro.

Então chegávamos a nossa casa, depois de um dia cansativo para ambos, nos prendíamos na rotina noturna, a que antecede o adormecer, como se a noite fosse feita religiosamente para isso: adormecer. Ele passeia por todos os canais da tv, sem se ater a nenhum, acho que faz isso pra disfarçar a viagem que sua mente faz, sabe lá Deus para qual destino, daria uma boa quantia pelos seus pensamentos, quando ainda tinha curiosidade. Hoje eu faço essa viagem constantemente então vi que não está em lugar algum, se não pensando em tudo e nada ao mesmo tempo, como faço normalmente, (dedução apenas).

Eu cheguei à conclusão que ele não sabe que nosso amor está em coma, em coma induzido por nós.

Então eu passei o dia ensaiando como eu contaria isso pra ele, como eu daria essa notícia, de que forma eu abordaria este assunto para despertar o interesse dele em me ouvir. Homens já não gostam, desde o berço, de discutir o relacionamento. Antes até brigávamos, fazíamos dramalhões mexicanos, pedíamos desculpas simultaneamente, bebíamos lágrimas um do outro no beijo, até que as brigas foram ficando tão vergonhosas que passamos a evitar, para não nos ridicularizarmos perante o outro.

Nesse dia eu perdi a hora do trabalho e resolvi ficar em casa o dia todo, ele saiu cedo como sempre e não se despediu, percebi que tinha partido para trabalhar quando saí do banheiro, e senti o vento vir atravessar o corredor, vindo da porta que ele não se deu ao trabalho de fechar. -eu sentia uma ânsia de ser feliz, mais sentia que algo ia me podando, toda vez que um raminho de alegria brotava nos lábios. Não sei em que altos do nosso contrato estavam o tópico que dizia que não podíamos ficar felizes ao mesmo tempo. Comecei a perceber que ele não ficava feliz quando eu estava, mas quando por qualquer motivo (tpm) eu estava meio triste, ele me aparecia eufórico, até marcava partida de futebol com os amigos, cantarola no banheiro e ria sem censura, assistindo Mister Bean, francamente, sem ofensa, parecia mesmo provocação.

Como ele já havia mesmo ido trabalhar, achei por bem, mandar um recadinho via sms, advertindo-o que eu tinha um assunto importante para conversar, assim que ele retornasse pra casa, não sei se tive sucesso na mensagem por que não obtive resposta alguma.

Sabe que tamanho desinteresse já me vez pensar se eu não estaria sendo passada para trás, se meu marido não estava tendo algum caso com uma colega do trabalho, ou uma amiga do passado não se fez presente por esses meses? Mas se fosse isso mesmo, ele realmente estaria sendo meticuloso, pois nunca que vi indícios nenhum de outra mulher; chega do trabalho pontualmente, nunca soube de nenhum boato que denegrisse seu comportamento como homem casado, fora de casa, muito ao contrário, na festa de comemoração de cinco anos de funcionamento de sua empresa, vários comentários de como o meu marido era sério, e comedido, não compartilhava de assuntos relacionados a mulheres e não dava ousadia para as mais atiradas. Essa noticia me deu um ânimo e quando chegamos a casa aquela noite até ensaiei um contato mais ousado que unir as minhas costas á dele, isso faz pouco mais que duas semanas atrás.

Quando ele entrou em casa aquela noite, eu estava olhando o movimento das folhas da árvore enorme, que fica em frente à casa da vizinha mais antiga do bairro, segundo a mesma bate no peito e declara a todos que lhe escutam por um minuto que seja, aliais já inicia uma conversa assim: - Eu que sou a moradora mais antiga desde bairro...Pensei que ele chegou à melhor hora, que eu estava fascinada pela coreografia que o vento obrigava os galhos executarem.- Coisa linda é o verde!

Quando eu me virei para cumprimenta-lo, com a mesma frieza que já era habitual entre nós, ele me avisou, atropelando as palavras, que teria que tomar um banho e um analgésico, porque o dia tinha sido tão fatigante quanto os doze trabalhos de Hércules, sendo isso uma tarefa só, que era acompanhar todo o fechamento do mês, de todos os setores da indústria, isso na companhia do diretor geral. Respeitei suas necessidades e fui para o quarto preparar todo o aparato que precisaria para concluir nossa conversa. Fui colocando na mala minhas roupas, busquei na cozinha uma sacola para comportar meus tênis de caminhada (quando eu tinha alegria para caminhar ouvindo minhas músicas preferidas e apreciando o verde do parque). A residência já era dele quando vimos de Fernando de Noronha, e encontramos tudo tão minunciosamente organizado, pela minha sogra, que viu que teria mesmo que me tolerar e resolver aderir ao lema: “não pode, una-se,” talvez ela já tivesse mesmo previsto que seria assim o final. Consegui organizar tudo em tempo recorde, e amontoei tudo próximo ao sofá da sala- Vocês devem estar se perguntando: Cadê o choro? Como alguém consegue retirar todos os seus pertences, de junto ao do seu companheiro, sem verter nenhuma lágrima? (é que o paletó dele não enlaçava mais o meu vestido e seus sapatos não podem pisar os meus, porque estão sempre fora do lugar) Engana-se se pensam que a atitude não foi chorada, paguei parcelado ao longo desse ano que se completaria assim que os ponteiros se unissem á meia noite.

Quando ele retornou à sala, ficou visivelmente surpreso.

- Vai viajar amor? – A negócios?

-Não, estou indo embora! Eu percebi que nosso casamento já acabou há algum tempo e precisava te contar isso, porque você parece tão centrado em si que nem se deu conta. Sabe que na noite passada, eu não dormi em casa? Cheguei bem cedo e fui usar o banheiro da sala, escutei quando você cruzou o corredor, tropeçando em tudo, arrumou-se correndo e partiu, mas uma vez sem se despedir, sem me procurar para fazer isso. Não pense que saí para te trair ou coisa do tipo, se bem que você não iria descobrir tão cedo, eu tinha os cabelos longos, cortei na altura das orelhas e você parece não ter visto diferença alguma, fora outra coisa menos explicita. Tudo foi ficando dispensável no nosso relacionamento, inclusive o toque, e o único que mantínhamos, eu pude ver que não lhe faz diferença também. Não quero mais servir de costas quentes de ninguém. Você fica com o apartamento, e eu fico com o carro, volto para casa que dividia com meu pai. (Vi antes de fechar a porta, que ele chorou, sentou no sofá e ergueu a cabeça no encosto, mais não conseguiu me dizer uma palavra se quer, não fiquei surpresa com isso).

Cinco dias depois, meu carro deu um sinalzinho de defeito, percebi a diferença no ronco do motor, dei o diagnóstico ao mecânico que não teve oportunidade de inventar nada á mais que do que desgaste no tensor da correia dentada. Fiz a troca das peças imediatamente, antes que se rompesse a correia e o prejuízo fosse maior.

Anna Lima
Enviado por Anna Lima em 08/06/2015
Código do texto: T5270049
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