818-AS ESTAÇÕES DO NOSSO AMOR-versão com sonetos

Ano de 1954 – fevereiro a novembro

O Verão, com os dias quentes entremeados por pancadas ocasionais de chuva, já ia terminando quando começamos namorar. As noites eram agradavelmente cálidas, já prenunciando o Outono, propícias aos nossos encontros, que ensejava uma passada pela Sorveteria Spósito a fim de saborear uma taça de sorvete ou um espumone que só a Dona Santina Spósito sabia preparar.

Em algumas noites fomos surpreendidos pela chuva e então, Enny e eu, na alegria plena de jovens enamorados, gostávamos de andar pelas ruas, sob um guarda-chuva ou sombrinha, aconchegados e felizes. O brilho das calçadas molhadas refletia-se nos seus olhos ternos, irradiantes de felicidade.

Durante o Carnaval, ela fez o retiro espiritual, que se realizava no Instituto Monsenhor Felipe e onde passou todos os quatro dias. Para mim não foi difícil a sua ausência, pois houve treinamento intensivo no Tiro de Guerra e não sobraria tempo para namorar.

As mudanças de estação eram mais pronunciadas em nosso Paraíso, talvez por se situar a quase mil metros de altitude e estar em uma região montanhosa. Assim, passou o Verão e entrou o Outono. Os dias tornavam-se mais frescos, havia períodos de chuvas que iam por dias e noites — os tempos da “chuva invernada”. As noites já mais frias pediam agasalhos leves. Enny, elegante, usava saias justas e casaquinhos de ban-lon, que lhe assentavam bem.

As festas religiosas eram mais um motivo para estarmos juntos. Acompanhamos devotamente as procissões e cerimônias da Semana Santa. Nas noites frias, caminhávamos lado a lado, portando velas e ela usando véu branco, então obrigatório para moças solteiras. O povo comparecia em massa e a gente era forçada a caminhar bem juntinhos, o que para mim era outro tipo de devoção.

No dia três de maio, celebrando a Festa de Santa Cruz, havia missa no curtume do seu pai, que se orgulhava do nome tradicional: Curtume Santa Cruz e comemorava com alegria. Após a missa, o café para os participantes, com fartura de quitandas e variedades de salgadinhos. E nós dois lá estávamos, sempre juntos, felizes e orgulhosos de nossa felicidade.

Os meses de junho e julho eram muito frios. Das festas juninas, dona Carolina —a tia Carolina de todos nós —celebrava o dia, ou melhor, a noite de São João, com oração do terço, seguida de fogueira no quintal e farta mesa de doces, quitandas e salgados, todos próprios daquela festividade. Uma beleza de festa, que ficava ainda mais bonita com os olhos brilhantes e os sorrisos meigos de Enny, ao meu lado.

O frio de Julho convidava mais a permanecermos em casa. Passávamos as tardes de domingo na casa de Enny, ouvindo músicas executadas ao piano pela Edna ou de discos long-play tocados na moderna radiola. Ou simplesmente conversando – aquelas infindáveis conversas de jovens enamorados.

Finalizando o Inverno, o mês de Agosto apresentava-se ventoso e poeirento. As ruas não eram calçadas e a ventania levantava nuvens de pó. Acontecia então a Festa de Nossa Senhora da Abadia. À novena das dezenove às vinte horas seguia-se a parte divertida da festa: barracas de leilão, de correio elegante, de tiro ao alvo, de pesca, de maçã do amor, de troca de recadinhos pelo alto falante e o bar.

Enny saia da Escola às nove horas da noite. Eu a esperava para subirmos até a praça da Igreja de Nossa Senhora da Abadia. De longe, a gente podia ver as luzes um pouco esmaecidas pela poeira levantada com o footing dos freqüentadores. Naquele ano o professor de violão Pascoal Ianuzzi havia organizado um coral de mocinhas para cantar no bar da festa. Eram cerca de vinte cantoras-mirins interpretando as novidades musicais, como Índia, Que Será, Amapola, ou as tradicionais Saudades do Matão, Canção da Despedida, entre outras. Sentados à mesa do bar, ou andando entre as barracas, Enny e eu passávamos as horas mergulhados em felicidade.

A Primavera desabrochava com força: os pés de ipês se cobriam de flores amarelas que em dois ou três dias caiam todas. Com uma pequena máquina fotográfica eu procurava captar fotos de Enny rodeada de tanta beleza.

Tombado setembro, os dias de outubro passaram céleres. Rumo a novembro, rumo ao dia de minha partida, com data marcada.

O amor, através das estações, enchia nossas vidas. Para traduzir a intensidade de nosso amor, fazíamos poesia. Enny colocou em versos o que é “Querer Bem”:

QUERER BEM

Querer bem é guardar dentro d´alma, escondida

Como um relicário, a lembrança de alguém.

É sonhar acordada, é ter suspensa a vida,

Num olhar que nem sabe o encanto que ela tem!

É aquela crença forte e nunca desmentida

Naquele que se espera e que talvez não venha

E aquela dor atroz e sempre incompreendida

Que a gente vai sofrendo e não conta a ninguém!

Querer bem é perdoar o que ninguém perdoa

Melodia do céu que dentro d´alma soa

Evangelho de luz que o coração ensina!

É a vontade de ver feliz quem nos maltrata

A esperança que anima, a dúvida que mata,

É a saudade, depois, quando tudo termina.

A réplica foi o soneto que escrevi, cujo título remetia ao mês de maio, quando Enny faz aniversário.

SONETO DE MAIO

Longos tormentos, grandes desencantos

Pesadelos, vigílias e penares

Enchiam minha vida e eram tantos

Que a minha angústia andava pelos ares.

Povoando o silêncio com meus prantos

E os meus dias, mesquinhos e vulgares

De alegria, presságios e quebrantos.

Vieram, depois, idílios e cantares.

Vieram cantares quando apareceste

Vindos das praias e dos roseirais

Transformando os minutos em canções.

A noite se dissolveu, amanheceste

Manhãs de muitos e claros florais

Sonhos, mistério e cintilações.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 20 de dezembro de 2013

Conto # 818 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/06/2015
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