Ausência 


(Do meu blog "Histórias")


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Quando ela dormia, ele passava horas olhando para suas pálpebras fechadas, tentando adivinhar com quem ela sonhava. Cabeça apoiada no antebraço, acendia a luz fraca do abajur e desfrutava do momento, o único, em que ele tinha certeza de que ela lhe pertencia totalmente.
 
As coisas não andavam bem naqueles últimos anos. A distância entre eles tornara-se um poço sem fundo, cuja borda alargava-se a cada dia, e ele não sabia o que fazer, como construir pontes que os mantivessem unidos. À noite, após o jantar, assistiam a um filme na sala de estar. Mãos dadas, corações distantes. Ele suspeitava que ela o traía - andava misteriosa e calada ultimamente. Ela nem pensava nada... apenas prestava atenção ao que se passava na tela colorida, totalmente ausente da presença dele.
 
Alguns laços, mesmo sendo fortes, não resistem a repetidos puxões, ela pensava. E ele já puxara demais. Agora, qualquer coisa que ele lhe fizesse, seria indiferente. Poderia até mesmo estar dormindo com outras mulheres, e ela não se importaria. 
 
Lembrava-se das vezes em que o seguira no passado, ardendo de ciúmes, e das provas que conseguira recolher da traição dele: Um bilhete meio-rasgado e amarrotado na lata de lixo do banheiro, a tinta da caneta borrada, onde se lia: "...noite muito agradável... vamos repetir... e um número de telefone ilegível com final 43." Lembrou-se de ter ficado horas tentando decifrar a mensagem borrada, e vasculhou o celular dele e o velho caderno de telefones procurando por um número com final 43, mas não encontrara nada. Ele jurou que tratava-se de um dos fornecedores que conhecera em sua última viagem de negócios de quem ficara amigo. Mas quando ela quis saber seu nome e de onde ele era, ele desconversou e mostrou-se ofendido pela falta de confiança dela.
 
Outra das 'provas' jamais completamente provada, fora um fio de cabelo loiro e longuíssimo no encosto do carro. Ao sentar-se, ela deparou com aquele fio brilhoso e claro contrastando com o forro preto do encosto, e puxou-o devagar, enquanto ele fingia estar mexendo no rádio. Ao perguntar a quem pertencia o fio, ele apenas fez cara de desentendido, dizendo que provavelmente, entrara com o vento pela janela aberta.
 
Houve também uma ocasião na qual alguém telefonara enquanto ele estava no banho, e ela atendeu seu celular; não disse nada, e uma voz feminina do outro lado da linha repetiu o nome dele três vezes antes de desligar. Ela olhou o número e ligou de volta, mas deu ocupado - e toda vez que ela tentava, mesmo de outros números, dava sinal de ocupado. Com certeza, o número fora desativado. Ele alegou que provavelmente era de alguém tentando vender alguma coisa.
 
Havia também os perfumes que soltavam-se dele quando ele passava; eram suaves, mas ela conhecia o cheiro dele, e sabia que aquele perfume alienígena não pertencia a ela ou a ele. Ao perguntar quem tinha aquele cheiro, ele encolhera os ombros e fingira lembrar-se de repente que encontrara uma velha amiga de faculdade que o cumprimentara com um abraço. Mas o cheiro às vezes reaparecia, muito suave, quase imperceptível.
 
Ela não era dada a escândalos e interrogatórios; quando sentia que ele lhe mentia, calava-se e fechava uma porta: distanciava-se, recolhendo-se em um mundinho pessoal do qual ele participava cada vez menos.
 
Ele tentava abraçá-la, mas ela alegava cansaço ou dor de cabeça. Sempre havia uma desculpa para que ele não a tocasse. Evitava os beijos dele, pois ficava imaginando a quem aquela boca poderia ter beijado, e onde... passou a sentir por ele uma repulsa física.
 
Ele de nada suspeitava. Perguntava a si mesmo onde errara. Em que momento do caminho ele deixara que ela se afastasse dele? Sempre fora capaz de manejar muito bem as suas escapadas, e tinha certeza absoluta de que ela não desconfiava de nada. Fora discreto, sem faltar-lhe com o respeito que ela merecia.
 
A verdade é que ele não conseguia imaginar aquela casa sem a presença dela. Todos os seus dias eram vividos por ela. As outras nada significavam. Ela era o significado de tudo o que ele fazia e desejava. Assim, passou a sofrer de pavor: um medo enorme de perdê-la. O medo crescia durante a noite, tomando proporções monstruosas na escuridão. Passou a não mais conseguir dormir, e precisou tomar remédios. Emagrecia a olhos vistos. Só ela não reparava, perdida que estava em seu próprio mundo indevassável onde ninguém poderia feri-la. 
 
Quando ele tentava falar-lhe de sua dor (mas jamais dos motivos daquela dor), ela ouvia compassivamente, e não respondia; apenas dizia que ele deveria fazer análise. 
 
Ela deslizava pela casa sem fazer muito barulho, tentando evitar entrar em algum cômodo se ele estivesse nele. Parada à porta, olhava antes de entrar; se o visse, não o fazia. Ele agonizava pela presença dela, a presença que ela retirava a cada dia um pouco mais.
 
Um dia, enquanto ela arrumava um álbum de fotografias, envolta em lembranças dos tempos em que ambos se conheciam, o telefone tocou. Era alguém de um hospital que dizia que seu marido sofrera um acidente, e que ele estava bem; mas infelizmente, sua filha não resistira aos ferimentos e falecera.
 
Filha?! 
 
Ela desligou o telefone em transe. "Ele estava bem." A voz fria da mulher ao telefone não parava de ecoar em sua cabeça.
 
Ela fez as malas devagar. Antes de sair, olhou para o apartamento vazio uma última vez.
 
Ela saiu para o ar fresco da avenida onde de repente as buzinas dos carros pareciam música, e os vários tons cinzentos dos prédios e muros pareciam em perfeita harmonia com o negro brilhante do asfalto. Ergueu o rosto para as gotas de chuva e sorriu. Ela estava livre. Ela estava vingada. 
 
 Ela estava bem.


 
Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 03/06/2015
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