813-AMOR DE NAMORADOS- Cap. de "Amor sem Limites"

Agora me dou conta de quão diferente foi o namoro que vivemos, Enny e eu. Escrevo de uma época — meados do século passado — quando os costumes e as normas sociais regulavam com rigidez a vida das pessoas e principalmente, dos adolescentes e dos jovens. Estava estatuído que o respeito e a obediência aos mais idosos, o rigor no cumprimento dos deveres, compromissos e horários eram fundamentais para o relacionamento da família e da sociedade.

Passamos por cima do flêrte, a troca de olhares significativos que em Paraíso era praticado enquanto moços e moças davam voltas ao redor da Praça da Matriz, nas noites de sábados e domingos.

Quando finalmente criei coragem, ofereci meu amor à Enny e pedi-lhe para ser seu namorado.

Simples assim.

Nosso namoro seguiu os parâmetros de então: encontrávamos nas noites em que Enny dava aulas na Escola de Comércio, nos fins de semanas, e em ocasiões especiais: festas de aniversários de parentes e amigos, casamentos ou batizados, tudo dentro dos limites de um namoro formal.

Quando nos tornamos namorados, eu já freqüentava a casa de seus pais. Dona Alice me dedicava atenção e carinho, enquanto seu Alípio, homem rigoroso, impunha-se por falar pouco. Mas falava claramente e em bom tom quando era preciso.

Na primeira noite em que nos demoramos meia hora a mais por termos dado algumas voltas pela praça central, ele nos esperava no alpendre da sua nova e imponente casa. Não eram nem dez horas da noite e ele foi explicito:

— A hora de minha filha chegar em casa é nove e meia!

Os toques entre nós dois eram raros. Não andávamos sequer de mãos dadas. Abraços apenas quando havia um cumprimento especial, como, por exemplo, no dia do aniversário, na formatura ou outra ocasião importante. Nos bailes, no Clube Paraisense ou na Liga Operária, onde todo mundo dançava mais ou menos agarradinho, mantínhamos uma distância respeitável. Nas sessões de cinema havia sempre uma “vela”, e nós raramente ficávamos a sós.

Beijos, nem pensar!

Aos domingos, costumávamos visitar Dona Francisca, avó de Enny, uma senhora suave e delicada, cabelos brancos e olhar vivo, que me tratava como se fora também seu neto.

Edna, irmã de Enny era professora de piano e promovia tardes dominicais de músicas executadas por ela ou por seus alunos. Eu aplaudia muito as execuções das músicas de Ketelby (“Num Mercado Persa”, “Nos Jardins de um Templo Chinês” ou “No Santuário do Coração”). Em outras tardes, dançávamos na ampla sala de visitas, ao som das orquestras de Glenn Miller, Silvio Mazzuca ou Roberto Inglês, em discos de 78 rpm. na moderna eletrola automática para 12 discos.

Eu me esmerava em presentes e declarações de amor. No dia de seu aniversário, vinte de maio, dei-lhe um presente especial: o Long-Play Álbum de Valsas de Strauss, na esmerada interpretação da orquestra de Mantovani. A dedicatória foi muito singela e significativa: “Para você sonhar, rainha de meus sonhos. Ternamente... Gobbinho”.

Foi naquele ano de 1954 que fiz o Tiro de Guerra, serviço militar obrigatório aos rapazes, o que era uma verdadeira iniciação à vida adulta. Então minha vida ficou um corre-corre: trabalho no banco, treinamento militar — ... e os encontros com Enny. Que correria!

Se nossos encontros eram regulados e (de certa forma) vigiados, não havia limite algum para nosso amor, que passou a ser expresso de forma mais sublime através da poesia e da música. Enny, dotada de uma sensibilidade que me emocionava, já era artista de rádio e de teatro. Tocava acordeom e declamava poesia com sentimento. Professora e oradora, proferiu a palestra da aula inaugural da Escola de Comércio daquele ano.

Em meados do ano começamos nosso álbum que chamei de “A Poesia de Nosso Romance” transcrevendo sonetos de amor de Olavo Bilac, Alphonsus Guimarães, Vicente de Carvalho Beatriz de Carvalho, entre outros. E de tanto transcrever poesias, passamos a escrever nossos sonetos, pequenos poemas e acrósticos sobre nossos sentimentos, nosso amor.

Combinamos assim: ela escrevia uma poesia e eu “respondia” na folha seguinte. Ainda guardamos aquele caderno iniciado em julho, onde nosso amor foi escrito e descrito em palavras mágicas, alegres e até sofridas, pelos momentos de saudade que ainda haveríamos de viver.

Trabalhava no banco Crédito Real e meu desejo era estudar, cursar a faculdade e ser dentista. Para tanto, consegui transferência para a agencia central do Rio de Janeiro e ao terminar o Tiro de Guerra, em novembro de 54, mudei-me “de mala e cuia” para a Cidade Maravilhosa.

Os céus se abriram em um dilúvio na noite em que me despedi de Enny. Fomos até a casa de vovó Francisca debaixo de um guarda-chuva que pouco protegia, e então tive de abraçar Enny, a fim de resguardá-la dos respingos — e foi uma das poucas vezes que, como namorado, eu a abracei prá valer. Depois, no alpendre de sua casa, a despedida foi singela, prometendo mutuamente manter o namoro trocando cartas.

Entre palavras de amor eterno, abracei Enny e saí para o mundo que chorava nossa separação.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 21 de novembro de 2013

Conto # 813 da Série Milistórias

QUADRINHAS ACRESCENTADAS AO CONTO POR ENNY

Tony , esposo amado e querido,

que outrora chamava de Gobbinho,

esse romance de nosso amor

está cada vez mais bonitinho.

E a cada nova frase que leio

relembrando antigos momentos,

Evocam-me doces lembranças

Que enfeitam meus pensamentos!

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/05/2015
Reeditado em 29/05/2015
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