O livro da capa Laranja.
Todos os dias, no meu trabalho eu o via.
Todos, sem exceção. Ele vinha sempre.
Em suas mãos somente um livro.
Um qualquer de capa laranja. Sei lá que livro era. Também não me importava, o que me deixava inquieto mesmo era:
Por que aquele jovem, de aparência tão simples, vinha todos os dias sentar-se ao lado daquele tumulo para ler? Por que não numa biblioteca? E o mais simples, por que sempre aquele livro?
Eu, um simples coveiro não podia entender aquilo.
Até que um dia encorajei-me, precisava perguntar. Aproximei-me do sujeito, e mandei:
-Desculpe moço, sei que o senhor não me conhece mas eu trabalho aqui. Não querendo perturbar o senhor, mas, por que o senhor vem todos os dias aqui, e sempre com esse livro?
O jovem abaixou a cabeça, e deu um pequeno sorriso. Como se tivesse recordado algo. E penso que realmente recordou. Ele gentilmente resolveu matar a curiosidade deste velho senhor que o importunava:
- Você lembrou a mim agora...
Eu a princípio não entendi muito bem, porém ele tratou de explicar:
-Há algumas semanas atrás, eu fiz a mesma pergunta a ela.
-Se o senhor tiver alguns minutos disponíveis eu irei lhe contar uma história...
Eu passava em frente a esse mesmo cemitério quase todos os dias para ir a faculdade.
E todos os dias que passava, ela estava lá. Debaixo daquela arvore, lendo um certo livro.
No início eu fingia não me importar. Porém com o passar do tempo foi crescendo dentro de mim uma vontade imensa de conhece-la. Ela não era do tipo, padrão de mulher, era na verdade, uma garota magrela. Seus cabelos eram negros, igualmente seu vestido, que descia até os joelhos. Um Allstar pra completar. Mais nada. Ah é claro, e aquele livro. Um de capa laranja.
Eu ficava inquieto para saber quem ela era, e queria muito conhece-la, mas pra isso eu precisaria ter algo pra iniciar uma conversa. Alguma coisa que eu pudesse puxar assunto, sabe.
Decidi então, pelo mais difícil. Eu iria descobrir qual livro era aquele, iria ler e depois tudo ficaria bem. Um plano meio idiota, mas afinal eu era um curioso, não um gênio. O problema era saber que raio de livro era aquele mesmo?
Fui até uma livraria e comecei a procurar, todos os livros de capa laranja, não devem existir muitos, né? Pois pra minha surpresa, existiam sim. Sei lá quem tem a ideia de colocar de laranja, a cor da capa de um livro. Mesmo assim, escolhi cinco, coincidência ou não, todos de poesia ou romances adolescentes. Era o que estava na moda. Só podia ser. Comprei-os e li. Todos!
Cheguei alguns dias depois torcendo para que ela estivesse lá. E ela estava. Como sempre.
Com todas as histórias na ponta da língua, e andando lentamente com um sorriso escondido, comecei a me aproximar. Quando cheguei mais perto pude ler claramente na capa:
Laranja mecânica, Anthony Burgess.
MAS QUE MEEEERDA...
Saiu baixinho, mas ela ouviu. Olhou pra mim e deu um doce sorriso.
- Tá tudo bem contigo?
Fiquei sem reação. Estava muito perto dela agora, e não sabia nada do livro, tão pouco tinha assistido ao filme (pelo menos sabia que existia um filme do livro, já era um começo). Arrisquei meias palavras:
- Tá, tô sim. Quero dizer, eu estou bem!
-Ah tá...
Ainda meio sem jeito, resolvi saciar minha curiosidade e perguntar de uma vez a ela:
- Desculpe, mas por que você vem sempre aqui com esse livro? Digo, por que não em uma biblioteca?
A garota olhou-me e parecendo meio confusa me respondeu:
- Sei lá! Eu gosto daqui. É quieto, tranquilo, sereno...
Minha curiosidade ardente tornou-se naquele momento, paixão absoluta.
Aquele jeito meigo de falar e ser. O jeito como arrumou a franja que caía sobre os olhos, recolocando-a atrás da orelha. Eu tinha que me aproximar. Tagarelei algumas besteiras, e ela respondia sempre com sorrisos. Doces sorrisos, que ao mesmo tempo me faziam sentir um completo idiota e um cara de muita sorte. Arrisquei algo e sentei ao seu lado. Debaixo daquela árvore.
Ficamos ali, juntos por um tempo, eu falando muito e ela simplesmente me ouvindo. Ao me interromper mostrou sua voz, sua doce voz:
-Você já leu Laranja Mecânica?
Tive que ser honesto com ela:
-Pra ser bem sincero, não. Mas estou por dentro de uma série de livros pop do momento, hahaha.
Minha risada era bem peculiar, e como peculiar lê-se assustadora. Porém ao ouvi-la ao invés de se assustar, abriu novamente aquele sorriso encantador. Estendeu a mão e me entregou seu livro.
- Pode ler, e assim que terminar você me entrega. Depois a gente vai ter muito assunto pra conversar, hihihihi.
A risada dela era tão peculiar quanto a minha. Isso fez me perceber, que era ela. Só podia ser ela. Sabe, a minha tampa de panela, a metade da minha laranja. Essas coisas que as pessoas vivem dizendo. Eu sabia disso.
Então ela simplesmente levantou-se e foi embora. Já estava tarde na verdade, logo eu também fui.
Levei quatro dias. Pra ser sincero eu nunca passei tanto tempo do meu dia lendo.
Entrei aqui entusiasmado. Já tinha grandes expectativas. Mas minhas expectativas acabaram se tornando simples sonhos. Tão vazios. Tão sombrios. Tão... Tristes.
O dia estava nublado, parecia que ia chover a qualquer instante. Você deve ter esquecido meu rosto, mas naquele dia, foi o senhor que me disse quem era a pessoa que aqueles homens de preto carregavam dentro daquele caixão. Lembro-me de suas palavras, a moça que vinha sempre aqui, e que aqui permanecerá... Assim que ouvi o senhor falar eu não tive reação. Fiquei ali parado. Até todos irem embora. A última pessoa, uma senhora, ao passar por mim perguntou-me:
- Desculpe mas não lembro de você, conhecia minha filha?
Fiquei sem resposta para aquela senhora. Respondi então a verdade:
- Na verdade, só tive a chance de falar com ela um único dia. Nesse dia ela me deu esse livro. Pediu-me que eu lesse.
A senhora reconheceu logo o livro:
- Sim, era um dos livros preferidos de Alice. Fique com ele, tenho certeza de que ela se sentiria feliz com isso. Ela já havia comentado que doaria todos os seus livros caso um dia...
O choro interrompeu a mulher, assim ela simplesmente partiu. E eu ali fiquei. Dei alguns passos. Me aproximei do túmulo. A chuva começou cair leve naquele momento. Mas ali permaneci, olhando para aquela pequena foto. Imaginando meu futuro ao lado de alguém que até algumas semanas atrás era simplesmente uma garota que eu via com o mesmo livro. Um futuro, que nunca aconteceria.
Por isso hoje, todos os dias eu venho aqui. Com esse livro. Sento-me ao lado de seu túmulo e conto pra ela. Conto sobre o meu dia. Conto novos livros que eu li. Simplesmente falo, e fecho meus olhos, pra me lembrar daquele sorriso, que me fazia parecer um idiota, e ao mesmo tempo um cara de muita sorte.
Então, agora que já lhe contei minha história, diga-me:
O senhor já leu Laranja Mecânica?