DOCES DIFERENÇAS

As duas estavam decididas em fazê-lo feliz. Era uma queda de braços sutil, é verdade, entre nora e sogra. Por isso Hélio se revezava. Podia esclarecer à mãe, por exemplo, que a mulher com quem se casara era exatamente da forma que apreciava. Mas o fato de Marília existir, já irritava a velha senhora.

Marília não era lá muito organizada e adorava tomar uma cervejinha gelada fora de hora. Falava alto e tinha uma vaidade cheia de excessos. Mantinha unhas sempre vermelhas, azuis ou pretas. Criava uma família de gatos que circulava pela casa pondo à prova a persistente alergia de Hélio. Porém, a sofreguidão com que o apertava entre os braços e a forma amantíssima como se entregava, eram segredos irreveláveis para qualquer mãe. Ele observava as duas em reuniões familiares, sorrindo. Uma falsidade enervante.

Ocorreu que Dona Angélica teria de passar um tempo morando com o casal. Estava acamada. Tinha a perna imobilizada devido a uma queda. E foi desta forma que ambas passaram a se conhecer melhor. O mês de agosto inteiro Dona Angélica amanheceu com um gato pulando sobre sua barriga, e ali mesmo tentando se aconchegar, até que fosse expulso de uma vez. Logo depois, como um irritante despertador, Marília vinha trazer-lhe a bandeja com o desjejum. Entre a xícara de café e o pão, uma lata de cerveja que logo seria aberta pela nora e tomada com prazer enquanto observava a sobra bebericando o café com aquele olhar desolado.

Dona Angélica exigia a atenção do filho todas as noites. Então, ele fazia a refeição, banhava-se e depois ia ter com a mãe por alguns instantes. Durante a conversa ela narrava como tinha sido o dia. Falava com disfarçada ironia da cerveja pela manhã, da poltrona do quarto sendo destruída aos poucos pela multidão de gatos, dos netos que comiam guloseimas a todo instante e iam se tornando visivelmente roliços. Fazia uma cara triste e dizia ao filho que se ele continuasse assim, aspirando aquele ar cheio de pelos de gato, iria confeccionar uma peruca no pulmão. Depois da cara triste, logo abria um sorriso, afinal estavam tão próximos um do outro, da forma como jamais estiveram desde que Hélio havia se casado.

Nada podia ser mais incômodo para ela do aquela mulher cheia de exuberâncias, em roupas justíssimas, decote avantajado, fumando um estranho cigarro na varanda da casa, indo à praia em biquínis pavorosos e com uma calorosa fé em cartas de tarô. As mesmas que haviam dado o sinal:- situação delicada reservada para o mês de agosto.

Marília berrava com os filhos quando se sentia contrariada, jogando sapatos pelo ar, batendo portas, dizendo palavrões que ela, Dona Angélica, jamais havia pronunciado. Contudo, a danada cozinhava bem. Preparava as sopas mais saborosas que já provara na vida. E quando a via mexendo a panela com a colher de pau, cercada por todos aqueles gatos, vislumbrava a imagem perfeita de uma bruxa moderna. Mas eram tomadas sem que a sogra esboçasse o mínimo agrado. No almoço a coisa era ainda melhor. Carnes de panela de uma maciez jamais alcançada por Dona Angélica. Um tempero na medida das delicias culinárias, com arroz branco solto e saboroso, feijão perfumado a borbulhar no fogão e legumes extraordinariamente refogados na manteiga. Uma farofa sequinha, um peixe grelhado e dourado como se fosse não um peixe, mas uma pintura. Às vezes, tinha manjar branco absolutamente caseiro com calda de ameixas na sobremesa, frutas com mel, doce de leite com queijo...

Até que chegasse um cafezinho preto incensando com seu aroma toda a casa.

Numa manhã, após ter expulsado o bichano de cima da barriga com um safanão, verificou estarrecida que era a gatinha “Pirata”, chamada assim por causa da manchinha preta em volta de um dos olhos. Ela estava prenha novamente! Dona Angélica pôs os pés no chão e caminhou até o banheiro. O osso consolidado sinalizava que já era hora de voltar para casa. Foi pega de surpresa quando viu a nora encostada no batente da porta. Por um instante fingiu que mancava. Deu um sorriso sem graça e falou que já estava pronta para partir, embora por dentro sentisse algo muito esquisito. “- Não sem antes tomar o café da manhã”, disse a nora, pousando a bandeja sobre a cama. Abriu a lata de cerveja e esticou o braço como se estivesse brindando a algum santo. Desta vez, entre o pão com manteiga e o café com leite, havia um quindim. Um grande, amarelinho e delicioso quindim de despedida. E enquanto Dona Angélica comia aquela maravilha, teve de ouvir a frase que lhe feria o orgulho:- “- Fui eu quem fiz”.

Hélio acompanhou a mãe até a casa dela, e depois de deixá-la sobre o sofá entre almofadas e agulhas de bordado, se despediu pedindo que ligasse caso precisasse de algo. A mãe segurou as mãos do filho com força revigorada. Tinha ganhado peso e as bochechas estavam coradas. Disse, apalpando a barriga de Hélio como se ainda fosse um menino, com a altivez das senhoras viúvas de generais militares:- “- Filho, me diga uma coisa só:- foi pelo estômago que a Marília te pegou, não foi, meu filho?”

E a resposta veio silenciosa, com a mão de Dona Angélica sendo retirada de sua barriga e sendo transferida para a altura do coração.

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Texto de autoria da minha filha ANA CLAUDIA RÊGO MACEDO, publicado na antologia sobre o tema “Com Açúcar, Com Afeto”, organizada por Marcio Martelli, da “Editora In House”, de Jundiaí/SP.

RobertoRego
Enviado por RobertoRego em 15/05/2015
Reeditado em 16/05/2015
Código do texto: T5243171
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