802-DONA MAROCAS E O QUADRO NEGRO- Autobiográfico

DONA MAROCAS E O QUADRO NEGRO

Dona Marocas!

Competente, linda e doce professora do curso primário, que me ensinou não só as primeiras letras e números iniciais como me inspirou nas leituras, na admiração pelos bons escritores e me revelou alguns mistérios da arte de escrever.

Depois dos quatro anos de sua orientação no grupo escolar, passei quase vinte anos sem vê-la, sem, contudo, esquecê-la.

Enfim, visitei-a quando, numa das minhas breves viagens para ver meus pais, soube que ficara viúva e passara a morar numa casa pequena e humilde, numa vila longe do centro da cidade.

Estava então com 55 anos e mostrava ainda o viço, a elegância e os traços de beleza dos tempos em que eu, aluno, a venerava como professora.

Quando lhe perguntei sobre sua situação atual, explicou-me, com voz firme e animada:

— Meu marido era jogador profissional, passava as tardes e noites, enveredando pelas madrugadas, no Clube Elite Social. Nunca ganhou, aliás, quando perdia, era meu dinheiro que ia embora. Jamais pudemos comprar uma casa. Quando ele morreu e eu me aposentei, achei melhor alugar esta casinha aqui no bairro, mais barata e menor, mais de acordo com minha situação.

Não havia mágoa nem censura em suas palavras. Apenas uma melancolia sem fim.

— E como a senhora sobrevive?

— Além da pequena aposentadoria, dou aulas particulares, de reforço, para as crianças da vizinhança. Vou vivendo...

Mostrou-me o quadro negro que usava para as aulas: era o mesmo que tinha na classe — e me lembrei bem dele, pois ficara diversas vezes de castigo atrás do quadro negro.

—Pois é. Isto é o que me restou dos tempos de professora do grupo escolar. Alem das lembranças, é claro. — Ela ia falando com aquela voz sonora e suave como uma harpa, que me encantava e me transportava para a nossa sala de aula. — Este quadro foi substituído por uma lousa de parede, ainda quando eu estava nos último ano de trabalho. Recebi como prêmio, no dia em que me aposentei.

O quadro estava com as tábuas empenadas e o preto original apresentava manchas claras aqui e ali. Precisava de uma reforma.

— Posso pedir ao seu Pedro que faça uns reparos no quadro? — perguntei-lhe quando nos despedíamos.

— Oh! Não precisa se preocupar... Mas aceito, sim, de bom grado.

Num assomo de carinho, abraçou-me com grande ternura, como talvez abraçasse o filho que nunca tivera.

Antes de deixar a cidade, contratei seu Pedro, hábil marceneiro para fazer a reforma do quadro. Deixei o serviço pago e voltei à minha vida corrida na capital.

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Aquela visita resgatou o sentimento de decepção comigo mesmo por não manter laços de amizades com antigos professores e colegas. Desculpava-me pela falta de tempo, pelas muitas viagens profissionais, essas desculpas esfarrapadas.

Mais alguns anos, oito ou dez decorreram. Passando pela cidade, procurei Dona Marocas.

Depois de me receber com alegria de uma colegial que encontra um namorado, procurou saber de minha vida, como ia, essas coisas de gente que sente saudades.

Respondi-lhe abreviadamente e, por minha vez, fui perguntando de sua vida.

— Pois é, meu filho, agora só conto com minha irrisória aposentadoria pra viver. Estou perdendo a visão pouco a pouco, e não posso mais lecionar.

Conversando, notei que guardava com maior carinho as lembranças que tinha e me impressionou quando falou dos tempos em que fora minha professora. Lembrava-se até de que eu tinha sido escolhido por ela para ser o orador da turma.

Vieram-me à memória aqueles dias em que eu ia à sua casa à tarde, para decorar alguns trechos do pequeno discurso. Tinha verdadeira veneração por ela, por isso era acanhado na sua presença, fora da sala de aula. Além de me orientar na redação do discurso e na maneira de fazê-lo sem gaguejar e sem olhar muito no papel, ela acabou com minha timidez.

— Agora, meu filho, nem ler consigo mais.

Abracei-a e beijei-a, como fazia com minha própria mãe. Uma imensa tristeza tomou conta de mim, por não tê-la acompanhado na sua solidão.

— E o quadro negro? — Perguntei

— Ainda está comigo, no meu quarto, venha ver.

Fui. O quadro estava de novo precisando de um conserto e de uma demão de tinta negra. Ela passou as mãos com carinho, demorou nas frestas e nos cantos rachados.

Senti a importância que era o quadro negro para ela.

Novamente, mandei consertá-lo, pelo mesmo marceneiro caprichoso, que era também hábil entalhador. Como anteriormente, paguei antecipado pelo serviço e viajei.

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Talvez acossado pelo sentimento de culpa ou sentindo que a professora precisasse de ajuda (ou seria eu que precisaria me penitenciar?) voltei à minha cidade dentro de poucos meses, para resolver algum problema profissional, mas, na verdade, para visitar Dona Marocas.

Encontrei-a bem alquebrada, mas ao ouvir minha voz e passar as mãos pelo meu rosto, encheu-se de alegria e senti que uma energia renovadora estabeleceu-se entre nós.

— Agora não vejo quase nada. Só vultos, claridade ou escuridão.

Passou a mão pelo meu rosto, talvez querendo encontrar os traços do garoto que fora seu aluno.

— Ah! Quero lhe mostrar o meu quadro negro. Venha ver, você irá gostar.

Levou-me ao seu quarto. O quadro estava coberto com um lençol, que ela, apesar da pouca visão, retirou com agilidade.

Fiquei surpreso. Era um quadro, sim, de fundo negro. Mas os quatro cantos eram ocupados por grandes flores e folhas esculpidas, pintadas com as mais lindas cores, numa combinação digna de um pintor renascentista. Ao longo das bordas, arabescos e folhas estilizadas. E no centro, em letras cursivas como se fosse a própria assinatura da antiga mestra, estava escrito, em alto relevo :

Dona Marocas.

Ela ia passando as mãos e dizendo as cores, acertadamente, como se estivesse vendo.

— Veja que lindas rosas. Brancas como a neve. E as cravinas vermelhas, está vendo?

E talvez ela visse mesmo.

Despedimo-nos emocionados — ela chorando e eu com a voz embargada.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 28 de setembro de 2013

Conto # 802 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 11/05/2015
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