Aubade

(Excerto de meu diário de viagens)

Quase como se zombasse de mim, aquela era uma manhã particularmente bela: o céu parecia transfigurado num novo matiz de azul, o Sol reinava incontestável em sua esfera e até a neve me parecia rebrilhar tenuemente. Senti que a própria Natureza me ironizava, tentando-me com aquela luz e aquela felicidade que eu sabia ser indigno de merecer. Até mesmo o ar montanhês que fizera tão bem à minha compleição vinha me adoecendo – com saúde em excesso.

Passaram-se seis meses desde que eu aportara naquele lindo país, e vivia na companhia de uma adorável moça a quem literalmente devia minha vida – mas aquela voz interior, meu famigerado diabo, perturbava-me com infatigável fervor, e nem mesmo todo o amor que recebia de Zarema vinha sendo capaz de silenciá-la. Recuperara tudo aquilo que perdera, em dobro, e se quisesse poderia encerrar minhas peregrinações ali e recomeçar uma outra vida, muito mais recompensadora do que aquela que vinha vivendo até então. “Mas por que cargas d’água”, pensava eu, “ainda me sinto infeliz? Por que tenho o pressentimento de que não devo participar deste idílio alegre?”

Zarema insistiu para que fôssemos a nosso usual local de passeio, às margens do Kura; tinha ela um “mimo” a entregar-me, em celebração a nosso aniversário de seis meses. Também eu tinha algo a lhe dar: a maior decepção que, provavelmente, haveria de sofrer em toda a sua vida – como se já não bastasse minha pobre Nelly ter recebido este mesmo sórdido presente tantos anos antes. Docemente insciente, no entanto, lá estava ela, sua cabeça deitada em meu ombro, segurando minha mão com o afeto que uma irmã caçula dedicaria a seu zeloso irmão mais velho. E mesmo ela parecia envolta por uma aura que amplificava sua beleza – apesar das roupas simples que escolhera para aquele dia (uma blusa preta sob uma jardineira de jeans – uma de suas alças, desabotoada, pendia indolentemente às suas costas – e sapatos brancos um tanto quanto surrados), diria então (e mesmo hoje o reiteraria, se necessário) que nunca vira Zarema tão bonita em todos aqueles seis meses de nossa união, superando até mesmo quando, trajando as elegantes vestimentas típicas de sua terra, me chamara para jantar em companhia de seu venerável, extrovertido pai – dois dos melhores professores que tive sobre aquela cultura tão exótica que tanto me encantara na juventude.

Olhava-a com um misto de ternura e ansiedade, mas tinha medo de quebrar aquele solene silêncio – o último que passaríamos em mútua companhia. Felizmente para mim, ela o rompeu primeiro, dando-me um beijo à mão que apertava e dizendo:

“Pensei que levaria muito mais tempo – mas estou orgulhosa de meu querido aluno! Em pouco menos de um semestre, tornou-se um autêntico georgiano.”

“Não foi tão difícil, com uma professora assim tão competente”, respondi, tentando ao máximo esconder meu desconforto.

“E pensar que em seus primeiros dias aqui mal me olhava nos olhos…! Era quase como se quisesse me dissuadir de amá-lo, me contando tantas histórias tristes… Mas amei-o, independente de sua tristeza, pois sabia que um homem bom e de coração puro se escondia por trás dela. Em verdade acho muito pouco provável que volte a ser triste – se não quiser, não precisa retornar à sua terra, repleta de más pessoas e más lembranças. Pode ficar aqui comigo, dividindo um lar feliz… Não viu como papai gostou tanto de você?”

Eu nada respondi. Apenas continuei encarando as águas do Kura, tentando suprimir uma lágrima enquanto pensava no Sr. Tato, aquele dentre os pais o mais excelso, e no grande desgosto com o qual retribuiria seu afeto. Zarema deu-me um beijo à bochecha, e me voltei para contemplá-la: estava visivelmente acabrunhada, suas faces amorenadas coradíssimas de pejo. Retribuí-lhe com outro, nos lábios – antes que tudo se degenerasse, quis aproveitar enquanto me era permitido aquele doce amor. Ela sorria de orelha a orelha, um riso capaz de subjugar a um deus, enquanto eu escondia, num esforço cada vez mais vão, minha vontade de chorar.

“Em verdade”, continuou ela a dizer, “espero que o presente que tenho a lhe dar seja a joia da coroa de sua felicidade.”

Tateando os bolsos de sua jardineira, de dentro de um deles retirou uma pequena caixinha. Depositou-a em minha mão com carinho e delicadeza. “Abra-a, querido”, pediu.

Assim o fiz, quase derrubando a preciosidade ao chão ante a descoberta de seu conteúdo. Era um par de alianças.

“Gostaria de saber usar as palavras tão bem quanto você, meu grande escritor”, dizia Zarema, gaguejando entre as palavras com uma casta pudicícia, “pois haveria de fazer um longo e rebuscado discurso sobre como o amo e gostaria de tê-lo ao meu lado para sempre; mas o mero ato de amá-lo, para mim, vale mais do que qualquer arroubo de eloquência – portanto, digo apenas que o peço em casamento.”

Aquela última parte de sua fala foi a gota d’água – todas as lágrimas de desespero que vinha contendo até então escaparam numa torrente incontrolável. “Eu não mereço este amor!”, repetia em meu âmago. Inocentemente atribuindo meu choro a uma emotiva sensibilidade, Zarema me abraçou forte, rindo.

“Mas ora, meu querido!”, exclamou ela, beijando minhas faces profusamente. “Achei que já estava curado desses arroubos românticos… Mas não precisa me responder agora, se não quiser. Ainda temos um dia tão lindo pela frente…”

“Zarema! Partirei hoje!”, a interrompi, já não mais aguentando esconder a verdade. “Daqui a uma hora minha carona haverá de vir buscar-me!”

Uma tênue sombra pareceu obnubilar a alegria de Zarema por alguns instantes, mas após espantá-la replicou, tão jovial como sempre:

“Gosto de suas brincadeiras, querido… Mas este momento não devia ser tratado com humor. Falo muito sério!”

“Eu também, meu amor…” Um pouco mais calmo, tentei expor meus argumentos, por mais que, no fundo, eu soubesse que jamais convenceriam alguém tão perspicaz como Zarema – não convenciam nem mesmo a mim! “Mas a verdade é que tal luxo não é permitido a alguém como eu. Tendo lhe contado toda a minha história, como pode dizer que quer se casar comigo, que fiz tanto mal àqueles que amei? Pensa que pode me salvar, minha cara…? A essa altura me é impossível ser feliz, e poderia enganar a você e a mim pelo menos por algum tempo, mas e quando fosse impossível desempenharmos nossos respectivos papéis? Certo estou de que meu passado voltaria a me assombrar, cada vez mais e mais intensamente, e acabaria por engoli-la – e não só não conseguiria mais me amar como perderia sua felicidade como um todo. Não posso outorgar-me um final de conto de fadas quando não só não o mereço como também significaria desistir de minhas jornadas… Tenho ainda muito o que fazer, e creio que não posso amá-la tal como me ama. Pelo menos não ainda.”

Zarema já não parecia mais tão contente, mas talvez crendo que era só mais um de meus caprichos, estando acostumada a eles, não quis acreditar de todo naquilo que lhe dissera. Num tom de voz já não tão entusiasmado, respondeu-me:

“Depois de seis meses juntos ainda não consegue se entregar a mim por completo, querido? Já não lhe disse que passei por experiências, se não idênticas, ao menos similares às suas? O que o impede de participar desta felicidade que, sim, você a merece? Nada nem ninguém ordena que prossiga se castigando por erros de seu passado. Reflita bem a respeito… Aqui tem uma namorada – uma esposa! – que tanto o ama, e uma família pequena, mas que literalmente o adotou como um dos seus… O que deve você a seu país?”

“Finitude”, repliquei, sem muita certeza. Se eu de fato quisesse, poderia enxergar tudo aquilo como o fim pelo qual tanto ansiava – mas por que me sentia tão inquieto? Por mais que eu tentasse reprimi-la, e na maioria das vezes o conseguisse, a sensação de que aquele mundo não era meu lugar vinha fustigar minha consciência com feridas cada vez mais doloridas. Antes que pudesse de fato reaver minha felicidade havia algo mais que precisava fazer – havia coisas mais que precisava ver, era o que meus instintos diziam. Mas que coisas eram essas?

A sagaz mocinha, sempre capaz de rebater os toscos argumentos que construía às pressas, afirmou-me a mesma coisa:

“Mas você já tem um fim! Um fim feliz, aqui comigo! O que mais lhe falta, afinal?”

Incapaz de continuar mantendo aquela discussão tão desigual, me calei. Não havia mais nada que eu poderia dizer sem que parecesse uma pessoa horrivelmente ingrata – até mesmo covarde. Só pude encará-la com os olhos marejados, gaguejando de maneira ininteligível. Foi aí que Zarema tomou meu rosto em sua mão e encarou meus olhos profundamente por alguns instantes. Contemplei de volta seus olhos castanho-escuros, tomado de surpresa pelo abrupto gesto. Lenta e delicadamente ela soltou meu rosto, com um olhar que denotava tanto pesar quanto comiseração.

“É ela…”, disse por fim.

“O quê?”, perguntei, apesar de, no fundo, ter um palpite sobre aquilo a que ela se referia.

“Oh, meu querido… A verdade é que você não consegue me amar por quem sou, e sim pela imagem daquela que vê em mim.”

Mais uma vez ela conseguira me ler como a um livro. Pasmo, a encarei em silêncio por alguns instantes até que finalmente consegui lhe perguntar:

“Tem raiva de mim por isso, Zarema?”

“Não”, foi sua melancólica resposta. “Tão somente compaixão. Não gosta de ser feliz, querido – ou, melhor dizendo, tem medo de ser feliz. Crê precisar de sua infelicidade, e isso lhe trará horrendas consequências. Mas não posso deixar de admirá-lo: enxergo-o como um belo lótus germinando na escuridão. Sua amada é de grande sorte, por ter alguém como você ainda amando-a em segredo.”

“Ora, Zarema…” Tentava tolamente procurar algum atenuante, para que ela me ressentisse um pouco menos. “Se lhe serve de consolo, realmente quis amá-la por aquilo que era…”

“…Mas infelizmente não faço outra coisa fora lhe recordar dela”, ela me interrompeu. “Eu compreendo, querido. Amo-o tanto que posso deixá-lo livre – mas receio que, se um dia quiser rever sua Zarema, não a encontrará.” E me encarou com uma expressão estranha, que faria com que me arrependesse, e muito, de não tê-la compreendido então em futuras paradas de minhas viagens. Fiz um movimento com a mão, querendo lhe devolver as alianças, mas a moça me impediu.

“Pode ficar com elas”, disse. “Carregue uma parte minha em sua jornada, para que se lembre de nossos meses tão felizes. Entregue-as à sua amada; é a bênção que lhe dou.”

Tirei de um bolso de minha calça um pedaço de papel; aquele reles poema que lhe escrevera imaginando que fosse suavizar minha despedida. “Também gostaria que ficasse com algo… Não é um presente muito nobre, mas não quero que partamos odiando um ao outro. Leia-o e guarde-o com carinho.”

Com cuidado ela o desdobrou, e leu:

***

“DESPEDIDA NO KURA

Pesado é meu fardo, minha vida dura;

Em nenhuma paragem devo demorar.

Até a morte estou fadado a vagar

Tendo como guia minha própria loucura.

Mas desta linda tarde e das águas do Kura

A memória sempre haverei de carregar –

A brisa de Tiflis no meu rosto a soprar

E de ti me sorrindo com terna doçura.

Não sei se poderei retornar algum dia,

Mas darei-te metade do meu coração

Para que lembre-se de nossa alegria –

E que seja o Kura perpétuo guardião

De ti e destes lindos sonhos que eu teria

Quando apenas por hoje deste-me tua mão!”

***

Terminando a leitura, dobrou-o novamente e guardou-o consigo na jardineira. Apertando minha mão, disse, com a voz embargada:

“Como espera que eu continue a ser feliz em meu pedacinho do Kura, querido? Você não estará comigo nele nunca mais!” Deitando-se em meu colo, ela chorava em silêncio, enquanto eu lhe acariciava os cabelos. Não queria dizer nada que arruinasse aquele último momento de amor genuíno que receberia por muito tempo. De qualquer forma, nosso comovente quadro foi interrompido quanto senti uma mão tocar meu ombro pelas costas.

“Galaktion?”, disse uma voz masculina grave. Voltei-me um tanto quanto sobressaltado, mas era tão somente minha carona, que haveria de me levar à próxima parada de meu itinerário.

“Sim. Recolheu toda a minha bagagem?”

“Decerto. Estarei pronto quando você estiver. Meu carro está estacionado ali adiante.” Apontou com um dedo para uma das extremidades da rua. “Despeça-se de sua namorada e vamos.”

Gentilmente me desvencilhei de Zarema, dirigindo a ela um último olhar de ternura. Discerni em seus olhos uma tênue centelha de súplica, mas ela não disse mais nada e tampouco me impediu de ir embora. Segui o motorista e a deixei lá, no único lugar onde sentira felicidade desde meu saudoso banco do parque em São Paulo. Talvez ela estivesse certa, ia pensando comigo mesmo; talvez eu de fato não sabia mais como ser feliz, e temia sê-lo. Sentia que, desde que Nelly me abandonara, vinha interpretando um personagem – um Galaktion fictício construído por páginas e páginas de mórbida literatura. Mas sem este personagem, o que seria de mim? Era tarde demais para abandoná-lo; eu jamais sobreviveria sem ele. Pelo menos, era o que pensava.

Não foram poucas as vezes que pensei em Zarema durante o restante de minhas viagens, mas tentava me consolar pensando que, eventualmente, ela viria a se esquecer de mim, e encontraria alguma outra pessoa que pudesse corresponder a seu amor. Apenas não conseguia olhar para a caixa das alianças sem que quisesse cair no choro, e acabei por me desfazer delas na Lituânia utilizando-as como paga pela grande caridade de meu humilde hospedeiro. Ainda assim, em meio a todos os meus dissabores, me consolava com a exclamação “Zarema será feliz!”, repetindo-a feito um mantra em minhas horas mais escuras.

Quem dera pudesse continuar me enganando desta forma…

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Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 11/05/2015
Reeditado em 06/08/2024
Código do texto: T5238044
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