A loura tez de sua companhia

A LOURA TEZ DE SUA COMPANHIA

A lua deve estar no alto do céu, seguindo seu previsível trajeto. Lua crescente, estrelas ofuscadas pelo breu celestial noturno. Apenas a idéia de astros brilhantes pode surtir algum efeito ótico em algum notívago. Nesta noite, somente morcegos, guardas-noturnos e vira-latas enfeitam as ruas deste bairro suburbano, cada um com sua missão, cada um com sua distração, cada um com sua necessidade.

Dentro de casa, um cenário de total amargura: um quadro antigo na parede, mostra um bucólico fim de tarde, uma mesa de madeira, com vestígios de banquete de cupins, um sofá maltratado pelo tempo, sujo, mas que ainda equilibra em seus bambos quatro pés uma conversa deprimente entre um ser vivente e um copo de cerveja, quente, amarga, intragável. Se beber do copo, com quem conversará? Um monólogo silencioso, digno de compaixão até das mais enrugadas e esquecidas bruxas de cabelos algodoados lá da beira do cais.

Há anos que é assim: toda sexta-feira, cerveja, solidão e insônia. Toda sexta, não, todos os dias, porém, mormente às sextas. Sexta-feira simbólica, sexta-feira da paixão, sexta-feira treze. De todos os seres, este é o mais complicado: não sabe ter amigos, não sabe ter garotas, não sabe nem se é vivo ou se é morto. Gasta horas e horas divagando sobre o possível suicídio ou o monastério.

A cerveja continua ali, quente, perdendo o gás, perdendo o sentido.

Que ser estranho!

Será que já houve outro alguém assim?

A lua caminhou mais um pouco, deve ser quase meia noite e meia. Meia lua, inteira.

Solidão assim só se encontra em hospitais para indigentes, albergues falidos ou pensões baratas no centro comercial da cidade.

(...)

Tudo teve início no dia em que ele foi obrigado a escolher entre a falsa cigana, sua amante de longos tempos, e a loura, a mesma loura que agora lhe faz companhia. Ela, a cigana, afirmava não agüentar mais tanta embriaguez, tantos sonhos perdidos em botequins baratos, tanto dinheiro jogado no ralo de um vício incontrolável, invencível, tirano.

Sua resposta foi clara e rápida, orgulhosa e desafiadora:

- Quem quiser ficar comigo, tem que me aceitar com mau hálito, embriaguez e ressaca.

A contra-resposta veio em forma de malas prontas, daquelas que não dizem adeus, da qual, apenas, se escuta o bater da porta.

Porta aberta, novamente, às 8h da manhã daquele sábado, deixando entrar a luz do sol da cidade grande, ao mesmo tempo em que via-se, numa miragem, num déjà vu, ir embora a esperança de uma vida feliz. Ele não soube falar nada naquele instante, nem nos meses seguintes... Nem, ao menos, sabia se aquilo era sonho ou efeito de embriaguez tardia. Hoje, vive bebendo, aos poucos, a velha cerveja, tentando buscar na mente, na consciência, uma explicação racional para a própria irracionalidade.

Bebendo, talvez fique, de novo, embriagado e, como num sonho, ela volte, com as mesmas malas, agora para serem desfeitas, desfeitas para sempre no velho guarda-roupas de cerejeira.

Olha o copo mais uma vez. Dá mais um gole. A cerveja rasga-lhe a garganta, puxa-lhe de dentro do ser o mais profundo vazio, uma vontade imensa de bater mil vezes com a cabeça na parede, até que o sangue tinja toda a sua alma, lave toda a sua culpa.

“Os homens são orgulhosos, mas são burros. Eu sou burro!”, disse um ser decaído ao copo em sua frente, com apenas mais dois goles de cerveja e de uma certeza cruel, pensada e ilustrada por um pálido sorriso amarelo: o único bem que tenho, ou meu maior mal, é a loura tez de sua companhia.