O amor em quatro atos (João e Maria)

Ato 1. João e Maria

Eu chorei com sua morte, não tanto quanto João, é claro. Estive ao seu lado durante toda cerimônia fúnebre. A cremação ocorreu segundo o desejo dela.

Se ouvisse mais um: “afinal, ela descansou” ou “agora ela está melhor, parou de sofrer”, creio que agrediria o interlocutor. João não. Em seu estado catatônico, nem ouvia o que lhe falavam. Com os olhos congestos já sem lágrimas, movia-se para onde o levássemos. Era um trapo, uma sombra do João de dois anos atrás. Está vivido em minha memória como tudo começou.

...

Eu e João estávamos na cantina quando ele disse:

- É ela. A mulher que eu esperei toda minha vida.

Se isto fosse um livro eu diria que seu rosto iluminou-se, mas não, seu rosto tornou-se uma máscara, como um embasbacado, só faltava babar em si mesmo. Virei-me para ver essa “deusa” e vi uma menina meio sem graça, franjinha ruiva e rala, rabo de cavalo, sorrindo e falando muito alto.

Ela olhou-o interrogativamente quando ele parou em sua frente. Quase trinta segundos de silencio angustiante e então ela pegou em sua mão e puxou-o, sempre sorrindo, para fora da cantina.

Amigo de toda hora de João, fui também cativado por Maria, por sua alegria inebriante, por seu otimismo inabalável, mas principalmente pela felicidade com que vivia cada minuto e que contagiou João. Era impossível estar triste junto dos dois. O sorriso de Maria afastava qualquer mau humor. Pouco a pouco também me apaixonei por Maria, tanto quanto amava João. Eram meus dois irmãos. Ele tinha dezenove anos e ela dezoito. Ele estava no terceiro semestre de historia e ela era caloura de publicidade. Juntos percorremos trilhas, bares, muito riso e algum choro. Seis meses depois estavam casados. Moravam num pequeno apartamento, auxiliados pelos pais. Seis meses após o casamento eles conheceram o câncer. Entrou pelas entranhas de Maria e não abandonou mais o casal. Um ano de sofrimento. Ele emagreceu com ela. Mesmo com dores, ela jamais deixou de sorrir. Brincava com tudo, inclusive com a própria calvície. Maria sorria, João chorava. João vivia ao lado dela, na cama, no quarto, no hospital, aonde quer que ela estivesse, ele foi sua sombra, a proteção que quis ser e não pode. Perdeu o ano na faculdade, e perdeu Maria.

Ato 2. João

A vida não para, porem mudou João. Continuou no apartamento, mas não era mais o mesmo, eram apenas paredes frias. Não havia alegria no ar, nem luz, nem sons. Antes um lar, hoje um jazigo. Mesmo assim João continuou ali. Talvez fosse a lembrança de Maria que o prendesse ali, não sei. Voltou a estudar, formou-se. Sua inteligência era indiscutível, foi primeiro aprovado no concurso e passou a lecionar na universidade. Lentamente nos afastamos. João só pensava no trabalho. Fez teses magníficas. Tornou-se um dos professores mais conceituados da escola, seu nome chegou a ser aventado para a reitoria. Passado algum tempo, deixamos de nos encontrar, com exceção de um dia no ano, a data da morte de Maria. O tempo aliviou sua dor, não a eliminou, mas diminuiu. Sua vida era monótona, sem vida. Aprendeu que lágrimas só regam tristeza e parou de chorar. Vivendo num limbo, sua única motivação eram suas aulas e seus alunos, pelos quais tinha extrema dedicação.

Ato 3. João e Maria

Uma chuva fina mantinha a temperatura da manha abaixo do desejável. O cemitério parecia estar vazio quando cheguei, mas, ao longe reconheci o perfil de João. Seus cabelos ralos escorriam com a água destacando sua calvície. Apesar disso, João continuava bonito. Seus quarenta anos o tornaram charmoso. Quando me aproximei, ao invés da lamuria de todo ano, João estranhamente estava bem disposto e alegre.

- Você não vai acreditar.

Fiquei olhando, esperando a continuação da historia e ele olhando para o túmulo, como se não houvesse dito nada. Que mania irritante essa de João.

Com a curiosidade me corroendo eu pergunto: - Não vou acreditar em que?

- Semana passada, na nova turma, uma aluna nova, loira, de franjinha e rabo de cavalo. Era Maria.

- Deixe de bobagens João.

- Você precisa vê-la. É ela. Não sei explicar, apenas sinto que é Maria. Ela também sente que existe algo diferente, desde a primeira vez que nos vimos. Sabe o que é mais curioso?

Essa historia esta me parecendo um inicio de problema, mas pergunto novamente: o que é mais curioso?

- Ela faz aniversario hoje, no dia da morte de Maria, faz vinte anos. Você vê?

- Vejo o que João?

- Ela nasceu no dia que Maria morreu. Você lembra-se do dia, da hora ?

- Claro que me lembro João, eram sete horas da manha. Mas, me diga uma coisa, como você sabe a data de nascimento da garota, não me diga que fez um interrogatório com ela?

- Você me conhece, não sou estúpido, fui ao Recursos Humanos e pedi a ficha de todos os novos alunos, para me familiarizar, pedi de todos para não criar nenhuma desconfiança. Ela nasceu às seis da tarde! Mas não é por isso somente, você precisa vê-la, o seu jeito de puxar a franjinha para o lado, exatamente igual à Maria. O jeito de cruzar as pernas abertas, lembra como eu brigava com Maria por isso?

Quando João coloca algo na cabeça, é simplesmente impossível demove-lo de seu intento. Fui conhecer Ana, e realmente ele tinha razão, ela lembra muito a Maria. Seus maneirismos, trejeitos, seu modo de rir e gargalhar, parece uma copia da Maria. Independente do que eu ache, ela faz bem a João. E mesmo dando conselhos para ser mais cauteloso, eles começaram a namorar, no inicio escondidos. E casaram-se assim que ela se formou. Como uma fênix, João renasceu das cinzas. Voltou a sorrir. Saímos juntos varias vezes em jantares e passeios. De repente eu também estava vivendo o passado com eles. Éramos de novo os três mosqueteiros. Mas o carma de João era de felicidade intensa, porém fugaz. Poucos dias após o aniversario de um ano de casamento com Ana, João teve um acidente vascular cerebral e depois de quatro dias de UTI veio a falecer.

Ato 4. Maria

Diferente de João, Ana era mais forte. Aceitou melhor a fatalidade. Saímos juntos muitas vezes. Falávamos muito de João. Foram muito felizes durante o curto período que estiveram juntos. Eu evitava falar de Maria, mas um dia falando do inicio do namoro Ana me perguntou: - Você sabe por que a obsessão do João com a minha data de nascimento? Ele tentava falar de uma maneira casual, mas dava para perceber como isso o afetava, deixava nervoso. Eu não falava muito, não sabia como reagir a isso.

- Reagir a que, Ana?

- Eu fiquei com medo e nunca disse ao João que fui adotada. Não conheci meus verdadeiros pais e muito menos a data do meu nascimento. A que trago no registro é fictícia.

Nilo Paraná
Enviado por Nilo Paraná em 20/04/2015
Código do texto: T5213883
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