BURACO NO TETO
         Republicação - Conto escrito em 1991


 
             Gabriel estava verde quando cheguei, toda molhada. Encolhido      no    sofá. E    verde. Nem     respondeu ao    meu cumprimento. Cumprimentei Mu e, em seguida, fui ao banheiro, para me secar um pouco.
               Múrcia, que desde nascida todos chamam de Mu, a mesma Mu dourada abelhinha de sempre, volta para a sala carregando a bandeja com as xícaras, o açucareiro e os bules de porcelana que eu conheço desde que frequento esta casa, há mais de duas décadas e meia.
             Gabriel, verde, não dizia nada. Achei melhor dar um tempo, sem perguntas, enquanto tomava o café e saboreava os biscoitos. Fumei dois cigarros, trocando figurinhas com Mu. Gabriel, quieto, ainda verde. Repeti o café. O café de Mu é bom como deve ser boa a sensação de um árabe ao entrar na tenda após o dia inteiro sob o sol escaldante do deserto.
            Carpete novo, pensei. Cortina nova. Mas, não estão com ordem de despejo?
           O rosto de Gabriel voltando, aos poucos, ao saudável negro de todos os dias. O branco do sorriso de repente se abrindo.
          - Gabriel, o que aconteceu?
          - Um tempinho, Cândida. Um tempinho, que já conto.
          Ajudei Mu, guardando a louça. Na ida para a cozinha havia olhado, de soslaio, para o retrato de Pedro. Sete anos. Sete anos de retrato. Aquele ar de menino travesso, sempre o mesmo ar, sempre o mesmo. Quantos anos agora? 39, creio. Espanha. Pedro em Madri. Foi trabalhar na Varig só para conseguir as passagens. De lá mandou o pedido de demissão. Todos os anos ele tira férias no atelier e vem passar uns dias aqui, com os pais. Também eles foram visitá-lo em Madri, duas vezes nestes sete anos, as despesas custeadas por Pedro, naturalmente. Tenho certeza de que Gabriel e Mu não lhe disseram nada sobre a ordem de despejo. Eles são assim, sempre foram assim, preferem se virar sozinhos.
         Pela porta da cozinha entra o ar fresco, ainda encharcado da chuva rápida de verão. Tenho medo de chuva forte e de trovoada. Desde menina. Da chuva que me pegou no caminho.
         - Ah, que beleza! Um sapinho.
         - Enxota, Mu. Fecha a porta. Depressa.
         - Por que, Cândida?
         - Tenho horror desse bicho.
         - Horror de sapinho? Essa não. Olha que graça!
         - Não sei onde está a graça.
         - Ele é criança. Vê que olhar de curiosidade.
         Mu ficou olhando para aquele bicho verde. Esquisito! Que bicho esquisito! Parado ali, olhar fixo. Mu chegou mais perto. Ele não se moveu. Um sapo certamente refletido nos olhos de Mu e também Mu refletida, certamente, nos olhos de um sapo.
         - Como é, ninguém vem me fazer companhia?
         Desviei o olhar do sapo e de Mu e só então reparei, num cantinho, a pilha de telhas molhadas. Telhas molhadas?
         Olhei Mu. Estava rindo da minha expressão.
         - Olha pra cima, Cândida.
         Havia um buraco no teto.
       - Estão fazendo reforma? Algum problema de encanamento?
         - Problema nenhum além de uma pequena inundação.
         - Como é, vocês não vêm?
         - Vamos lá. Gabriel te conta.
         - Põe o sapo pra fora e fecha a porta, Mu.
         - Deixa o sapinho e sossega. Que tonta!
         Não adianta. Ficou a porta aberta e o sapo na soleira da porta. Espero que fique quieto aí.
         Gabriel, no sofá, folheava um álbum. Sentamos, uma de cada lado, para rever também. O casal de noivos, Mu com o mesmo olhar. Que linda! Gabriel, com o mesmo sorriso: 1949 -1991. Como pode um sorriso e um olhar durarem tanto?
          Pedro, de fralda e chupeta. Empinando papagaio. Rodeado de livros, livrinhos, livrões. Vestido de arlequim. Na praia. Na sua festa de 13 anos, quando nos conhecemos: Pedro, o lobo, Sara, chapeuzinho vermelho, Mu, a vovozinha, Gabriel, o caçador. A cestinha de doces de Sara, que mimo! Cestinha com a marca registrada de Mu. Eu tinha seis anos. Sara teria, hoje, a mesma idade que eu. A partir desse dia, nunca mais fui visita aqui.
          Pedro, com 18, abraçado a Beatriz. Foi quando minha família e eu viemos para a casa ao lado. De Vila Mariana a Pinheiros, eu com 11 anos. Parece que foi ontem. Parece, também, que foi há um século. Era uma casa bonita, como esta. Deve ser, ainda, uma casa bonita, apesar de bem mais velha. Como eu. Mais bonita, certamente, do que eu, que tinha 24 quando saímos dela, da casa ao lado e deste bairro de Pinheiros, quando eu e minha família nos mudamos, mais uma vez.
     Nesse meio tempo vieram Edna, Cláudia, Ana, Roseli, Paula, Dina, Silvia... nem todas no álbum da família, mas, eu as conhecia, que Pedro me falava de todas elas, sempre se confiando a mim, sua amiga maior.
         Pedro em Madri. Sozinho? Adianta sonhar com isso?
         - Quantos anos você tem, Mu?
         - Deixa ver - ela calcula nos dedos: Sessenta e três.
         - Há quanto tempo vocês moram aqui?
         - Vai fazer vinte e sete anos.
         Vinte e sete anos e vão ser despejados, que o filho do proprietário vai se casar e eles precisam da casa. E Mu e Gabriel compram carpete e cortinas para a sala. Aí, lembrei:
         - Gabriel, por que o buraco no teto da cozinha?
         Os dois caíram na gargalhada. Continuaram olhando um para o outro e rindo. Fiquei esperando.
         - Você sabe que Mu gosta muito de cozinhar. Pois então. Ela sempre teve um sonho: fazer a janta à luz da Lua. A gente nunca teve a oportunidade de resolver isso, mas, finalmente, decidimos. Na semana passada comprei um tampão de vidro para colocar no teto. Hoje, meia hora antes de você chegar, quando eu já estava na lida tirando as telhas, começou, de repente, a chover muito. Distraído, toquei num fio desencapado e...
         Foi a minha vez. Ainda estávamos rindo quando o sapinho, curioso, apareceu na porta de entrada da sala.