758-A GARGANTA DO DIABO ou Amor em Perigo
Somente no terceiro dia após nossa chegada a Foz do Iguaçu é que eu e Enny nos sentimos dispostos a fazer uma excursão pelas cataratas. Não havia então — novembro de 1958 — uma estrutura para atender aos turistas e os passeios eram contratados diretamente com os guias, pois no Parque, naqueles tempos, só eram permitidas excursões acompanhadas por guia.
Contratei, portanto um guia que estava à porta do hotel, oferecendo seus serviços. À primeira vista, nem parecia guia: magro, camisa e calças pendendo sobre o corpo, botinas inteiriças e chapéu de palha no cocuruto, barbicha de Jeca Tatu e um cigarro de palha apagado, metido na orelha esquerda – estava mais para caipira do que para guia.
— Ele é guia, sim senhor, me disse o porteiro do hotel, ante meu vacilo em contratar o homem.
Constituímos, com mais alguns turistas hospedados no velho hotel, um grupo de inocentes turistas orientados por um guia que logo se me afigurou maluco. Alugamos uma jardineira, veículo percussor das vans e dos micro-ônibus, e lá fomos. O guia, que se chamava Calimério, ia de pé ao lado do motorista, e, em vez de explicar e fazer comentários sobre o trecho de mata que atravessávamos, conversava animadamente com o motorista, dando ordens numa língua estranha:
— Apite le buzine! — que queria dizer, “apite a buzina”, ordem desnecessária, pois não havia trânsito algum na estreita estrada de terra, e se era para espantar os bichos, não vimos nenhum.
Ou
— Isi, isi, La vem descida. Careful! — ou seja, “Devagar, Devagar, La vem uma descida. Cuidado!”.
Ou ainda:
— Parê, parê. Cétaqui o lugar de parada. — Ordem no final do percurso: “Pare, pare, é aqui o lugar da parada”.
Era evidentemente uma demonstração de conhecimento de idiomas estrangeiros, de uma forma como nunca tinha visto. Enny olhava prá mim e ria a cada expressão do poliglota. Os outros companheiros de viagem também achavam graça no linguajar e nos modos do guia, Novas demonstrações de maluquice do guia iriam ter lugar antes do final do passeio.
A mata era fechada e a estrada terminou de repente às margens do rio. Era um rio manso, correndo raso por entre pedras. Descemos da jardineira e contemplamos a paisagem. Nada de notável, a não ser o barulho ensurdecedor das quedas d’água e uma névoa que aparecia a uns cem metros, vindo do fundo da garganta onde despencava o rio. Estávamos a cavaleiro das cascatas, isto é, na parte superior, de onde o rio despencava.
— Agora, vamos de canoes. — disse o guia, significando que deveríamos seguir em canoas.
— Aonde vamos, perguntamos.
— Alê, alê! — seria “ali, ali” ou “Vamos! Vamos!”?
Eu me animei, pulei para dentro de uma das duas canoas com a quilha sobre a a pedra e puxei Enny pela mão, que também entrou na canoa. Sentamo-nos no banco do meio e o canoeiro começou a empurrar a canoa. Os demais parceiros não quiseram embarcar em nenhuma das canoas.
— É perigoso, alguém falou.
E gritando para nós, que já estávamos navegando:
— Não vão não. É muito perigoso! Voltem!
E lá fomos, o canoeiro, o guia, Enny e eu.
— Turistas medrosos. No like gente assim. — disse o guia, olhando para todos os lados, como qeue procurando alguma coisa.
— Vamos parar naquela pedra ali, disse ao canoeiro, indicando uma rocha que afloravam na superfície d’água, apenas uns centímetros acima da correnteza.
O canoeiro encostou o barquinho numa pedra, desceu e o puxu, amarrando num tronco seco.
— Pode vir, dona, é seguro.
Ela pegou na mão que lhe era estendida, saiu da canoa e pisou na rocha. Eu a segui, sem ajuda do canoeiro.
Descemos sobre a pedra lisa e negra.
Verifiquei abismado que estávamos a apenas uns dez metros do precipício, onde a água despencava, formando o turbilhão lá embaixo. Uma névoa subia do meio da imensa abrtura e o podia ver o rio,lá embaixo, muito lá embaixo, correndo agitado.
O espetáculo que vimos foi, sem duvida, o maior espetáculo da Terra. Estávamos no cimo do penhasco pelo qual o rio caia, formando a queda mais importante das mais de dez cascatas: encontrávamos no topo da Garganta do Diabo. A queda mais alta e mais imponente de todas.
Do fundo, subia uma névoa, resultado do despencar das águas. Para um lado e para o outro, víamos as outras quedas, em diversos níveis, num semicírculo, no formato de uma ferradura. Enny segurava firme a mão do canoeiro, e eu a abracei: estávamos a apenas uns dez metros da borda do precipício! Os quatro, sobre rocha lisa, no meio do rio, que passava a uns vinte centímetros abaixo.
Então, comecei a ficar com medo. Enny apertava minha mão, não querendo dizer nada, mas dizendo tudo com seu olhar angustiado.
— Vamos voltar! — gritei a fim de ser ouvido acima do troar que subia da garganta.
Ficamos ali alguns minutos, admirando o espetáculo com um misto de fascínio e temor. Senti um alívio quando o canoeiro, sempre nos segurando pelas mãos, nos fez embarcar na canoa para voltarmos à margem onde os outros turistas nos esperavam.
— Vocês são loucos! — alguém disse. — Basta um escorregão e ...
Fingi que não ouvia a admoestação.
Voltamos aliviados ao hotel, a velha jardineira chacoalhando e o guia dando ordens no seu linguajar confuso de pretenso poliglota.
Mais tarde, conversando com o gerente do hotel sobre nossa excursão, ele nos disse:
— O Calimério é meio maluco. Já tentamos impedir que ele continuasse como guia, mas ele é teimoso. Além de tudo, metido a falar línguas estrangeiras. E não adianta a gente avisar os turistas. Parece que gostam dessas aventuras.
Troquei um olhar significativo com Enny, que me sorriu como se não tivesse acontecido com a gente.
Antônio Roque Gobbo
Belo Horizonte, 20 de novembro de 2012
Conto # 758 da série 1.OOO HISTÓRIAS
Este conto está no Livro "Amor Sem Limites"-pedidos pelo e-mail argobbo@yahoo.com.br