MARTHA E ANDRÉ


Numa manhã fria e chuvosa, Martha deu entrada na urgência do hospital, torcendo-se com dores.
Ficou no Serviço de Cuidados Intensivos durante quatro dias, nos dois primeiros a sua maca esteve no corredor devido a falta de vaga. Depois lá conseguiu um lugar num canto afastado. Queixava-se de dores abdominais intensas, que a faziam agitar-se na cama. Os médicos depressa descobriram a causa do mal, algo que se agravara por falta de cuidado da paciente. Um cancro no estômago minava-a há meses, entretanto, com as defesas em mínimos, as metástases tinham-se instalado em vários pontos do corpo e iam fazendo a sua tarefa insidiosa.
André veio a conhecê-la casualmente quando ambos começaram a fazer quimioterapia. Por pudor ou outra razão qualquer, um biombo separava as duas poltronas com apoio de pernas onde lhe eram injetados os químicos, de forma que não se viam, só à entrada.
O problema dele era uma leucemia e os estados de fraqueza sucediam-se, sobretudo dois dias após cada tratamento. Ambos viviam as mesmas dores: as náuseas e a falta de apetite, a queda de cabelo, os leucócitos com leituras muito baixas, tudo se conjugava numa combinação assustadora e que lhes fazia temer um mau futuro.
Viu-a sempre à entrada, ambos pálidos, Martha com um aspeto ainda pior, pele diáfana, quase transparente, parecia de cera. No entanto, ele achou o seu rosto muito belo, de uma estranha serenidade. Não falaram das primeiras vezes, nem tinham forças para isso. Depois, mais algumas sessões se seguiram e as primeiras palavras foram trocadas. Ela por vezes sorria-lhe, sentiu-lhe empatia, ou pela expressividade ou por serem companheiros do infortúnio.
Gradualmente foram trocando curtas frases, não havia tempo para mais, depois ficaram mais próximos, familiares.
André começou a sentir algo de estranho, sempre que se avizinhava um novo tratamento uma crescente ansiedade tomava conta dele, não pelo veneno que lhe injetavam nas veias a conta-gotas mas sim para a ver…
Encontravam-se nos dias de intervalo entre tratamentos, normalmente cinco dias após cada sessão. Conheceram melhor as particularidades da vida de cada um, ele trabalhador-estudante, ela já licenciada, trabalhava numa multinacional.
De súbito, num impulso incontrolável, fruto da sua timidez, André pôs-se a escrever como que um diário, guardando as folhas soltas com cuidado.
 

Hoje estavas linda… Os teus olhos brilharam quando nos olhámos, sinto que não te sou indiferente e isso me dá ânimo para enfrentar esta maldita doença. Gostava que não estivéssemos doentes, para poder sair contigo sem restrições, passear à beira-mar e sentir-te junto a mim respirando o aroma da minha outra paixão, o da maresia forte e incisiva.”
 
Os tratamentos sucederam-se e quando se propiciava, várias vezes se encontravam e tomavam uma refeição juntos. Martha tinha sempre muitas dores, por isso só ingeria líquidos. Baixava os olhos perante a intensidade do olhar dele, era uma adoração que não conseguia disfarçar. Então, pedia-lhe para não a olhar assim, ficava incomodada perante outras pessoas sentadas perto.

 
Estou a ficar apaixonado por ti. Ontem vinhas linda, o lenço tapava-te a cabeça quase sem cabelo, os olhos ligeiramente maquilhados disfarçavam as olheiras profundas, a tua palidez transformava-te numa deusa, a minha deusa. Nenhuma flor se compara contigo, és a rainha das flores, a tua beleza fá-las murchar…”.
 
Entretanto o tempo passava e Martha estava muito fraca. Deixou de sair de casa. André sentia cada vez mais ansiedade em a ver, em a ouvir, em lhe falar. Temia que uma fatalidade a impedisse de estarem mais tempo juntos.
A cada tratamento, notava-a cada vez mais frágil, a vida escoava-se por aqueles tubos presos nos braços dela.
 

Ontem sonhei contigo, jantávamos à luz de velas, o ambiente perfumado com sândalo, a luz permitia notar o amor que havia em ambos quando nos olhávamos. Gosto tanto de ti, querida Martha, peço tanto a Deus que te conserve para eu te fazer feliz. Quero-o, desejo-o mais que tudo na vida.”
 
Entretanto os tratamentos terminaram e André, persistentemente, procurou-a, vivia com a sua única parente, uma tia. Esta respondia-lhe sempre que estava a descansar por se encontrar muito fraca.
Tanto insistiu que um dia a velha senhora o deixou entrar, com a promessa de demorar o mínimo, para não fatigar a sobrinha.
Martha estava mesmo muito fraca, quase não se percebia as palavras que a custo balbuciava. André chorou quando lhe pegou na mão. Acariciou-lhe o rosto e depois, muito emocionado, abandonou o quarto. Vagueou pelas ruas não dando conta do tempo passar. Deu por si em vias desertas, a horas perdidas, os seus olhos mais molhados que as pedras do passeio orvalhado. Sentiu-se perdido… Enquanto ele parecia recuperar da leucemia, Martha fenecia aos poucos, sem esperança.
No dia seguinte voltou a casa dela e a tia deu-lhe a notícia: De noite fora de urgência para o hospital, inanimada. Apanhou um táxi e correu para lá.
Com grande dificuldade e súplicas ansiosas, conseguiu que excecionalmente a deixassem ver. Estava como que moribunda, mal se dava conta da sua respiração. Olhou-a por breves instantes, depois teve de sair porque não há visitas no Serviço de Cuidados Intensivos. Disseram-lhe que no dia seguinte ela seria operada ao estômago, numa última tentativa de lhe salvar a vida.
Esperou que as horas passassem, cada vez mais lentas, num crescente nervosismo.
Chegou cedo ao hospital, as horas passaram a custo… Quis chegar à fala com o cirurgião, deparou com uma barreira humana plena de burocracia. Esperou, esperou, até que, passadas muitas horas, já noite, um médico chegou e falou com o segurança. Perguntaram-lhe se era familiar da mulher que tinha sido operada ao estômago, ele assentiu, então pegou-lhe no braço, deu-lhe uma amistosa palmada e segredou-lhe algo que ele sempre temera.
- Quer vê-la?
- Sim… - Murmurou num tom abafado.
O médico levou-o pelo corredor privado dos serviços até um quarto, lá nos fundos. André teve de vestir uma bata e por uma máscara para passar despercebido face ao pessoal que por lá circulava. Entrou e viu-a. As pernas fraquejaram-lhe, se não o segurassem teria desabado no chão. Ela estava morta…
Abraçou-a chorando convulsivamente, assim ficando até que, suavemente, o médico o ergueu aos poucos.
Numa sala ao lado despiu a bata e a máscara, e agradecendo ao doutor pela gentileza, saiu do hospital.
 
O funeral de Martha decorreu dois dias depois, foi simples, para além da tia, apenas compareceram André e meia dúzia de vizinhos para além de alguns colegas dela.
André ficou meio esquecido, num banco afastado, olhando o monte de terra que agora cobria o esquife com o seu amor.
As horas passaram e ele acabou por sair do cemitério, depois vagueou, sem fome, não se alimentara todo o dia.
 
Passavam alguns minutos das vinte e três horas quando se ouviu um baque surdo junto ao prédio onde André morava. Algumas pessoas assomaram às janelas, transeuntes rodearam o corpo que caíra da varanda do terceiro andar. 
Os vizinhos acabaram por reconhecer o homem ainda jovem que os bombeiros recolheram na maca para a ambulância, já cadáver. André deixara o mundo dos vivos.
Quando o colocavam na maca, um papel escorregou-lhe do bolso. O polícia pegou-lhe e leu:

 
Não demoro, amor. Vou ter contigo, não consigo viver sem ti…
 
















Imagens  Google
Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 10/04/2015
Reeditado em 11/04/2015
Código do texto: T5202055
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