O Bilhete.
“Vai, vai, vai tristeza
Estou de volta pro meu querido rincão
Vai, vai, vai saudade
Só cabe a felicidade no peito deste peão”
Hoje é dia de festa. Estava tendo a mateada no centro de tradições gaúchas aqui em Pato Branco e estava com meus pais observando o grupo dançar as músicas típicas. Era como um bálsamo para as almas solitárias ouvir os momentos de alegria que o locutor entoava as cantigas e os dançarinos rodopiavam pelo centro numa coreografia sincronizada. As roupas típicas davam um ar de lembrança a todo o ambiente, as mulheres com uns vestidos enormes e os homens com as tradicionais bombachas.
Ela estava lá, no outro lado, num canto escondida atrás de uma pilastra, como sempre tímida e absorta a tudo em sua volta. Minha menina, Marília.
Os cabelos negros e sedosos escorriam pelo seu colo que estava coberto por mais um xale que sua mãe, provavelmente, havia feito. Seu corpo esguio estava encostado na pilastra como se não pesasse quase nada, seu porte pequeno e ao mesmo tempo altivo demonstrava, sem ao menos dizer uma simples palavra, o quanto era forte e decidida.
Filho, você vai dançar com alguém na próxima mateada? – Minha mãe interrompeu meus pensamentos com o anjo, mães.
Não sei Dona Marta... – Levantei e tirei-a para dançar, meu pai era todo sorrisos quando se tratava de Marta, seu amor de juventude. –
Talvez eu puxe uma das mulheres mais belas para dançar comigo...
Quer dizer que meu príncipe está apaixonado? – Ela ainda não perdeu essa mania. Mesmo com vinte anos, ainda tenho a sensação de ter dez e ainda ouvir minha mãe me chamando para ir ao colégio. Bons tempos.
Queria eu estar mãe... – Olhei-a de longe e ela ainda sorria de alguma graça que um menino fazia em sua frente, queria ser aquele garotinho e ganhar todos aqueles sorrisos. – Mas, quando estiver, será a primeira saber mia regina .
Claro filho, claro. – Então ela olhou na mesma direção que passei a noite observando. Dona Marta jamais dá ponto sem nó, ela soube o tempo todo.
***
Trabalhar com meu pai em sua oficina era um prazer para mim. Sei que ele não quer que eu siga essa profissão, sei também o tamanho do seu esforço para me manter na faculdade e ainda me ajudar a pagar a mensalidade. Parece que ele se sente na obrigação de me ajudar, pais.
Filho, para um pouco, vamos almoçar. – Ele tocou em meu ombro esquerdo para tirar a minha atenção daquele câmbio manual do velho fusca do seu Aroldo. – Se a tua mãe souber que te deixei trabalhar demais ela me carça.
Tá, tô indo. – Ainda com o câmbio em pensamento, tentando arranjar uma solução para aquele problema. Dona Marta, como sempre, fez o almoço e levou para a oficina. Sentamos à mesa improvisada e começamos a comer. Meu pai atento ao seu prato espetava e cortava a carne que havia ali. Ao lado, uma cuia com tereré completava a refeição.
Percebendo assim, adquiri uns hábitos dele. Como separar a carne do arroz e do feijão, comer o feijão amassado no arroz, colocar um pouco de farofa em tudo e tomar o tereré junto da refeição. Acho que somos iguais com idades diferentes.
Pai… – Ele apenas levantou os olhos extremamente azuis em minha direção como se estivesse indagando sobre o que acontecia. – Como se apaixonou por minha mãe?
Ah Joaquim, essa história de novo? – Ele sorriu como sempre fazia quando tentava me enrolar. Dessa vez não senhor Leonardo. – Você já sabe ela… – Ele sorriu em lembrança das memórias que havia construído com minha mãe. Ah esses dois.
É sério, quando você ficar velho vou te subornar para me contar essa história… – Ele riu. Como eu amava esse velho careta.
Sabe filho, você deve construir sua própria história. – Ele mexeu na aliança que carrega no dedo anelar esquerdo. – Eu e sua mãe construímos a nossa, você deveria escrever a sua.
Quando resolve falar começa a filosofar! – Joguei as mãos para o alto em rendição. – Desisto senhor Leonardo, desisto!
Ele mais uma vez riu, assim continuamos a contar bobagens para passar mais rápido o almoço e voltamos ao trabalho. Hoje sairia mais cedo, tinha um trabalho importante e ainda tinha que revisar a matéria. Meu pai queria que apenas estudasse, mas sei que com a minha ajuda conseguimos mais trabalho e assim mais dinheiro.
Quando chegou o meu horário, meu pai apenas bateu com a chave de grifo na parede para eu lembrar que estava na hora. Larguei o velho fusca do seu Aroldo e corri para casa. Aquele fusca ainda estava me dando nos nervos. Atravessei todo o quintal que dividia a casa e a oficina em meio minuto e entrei correndo em casa, minha mãe estava alheia a tudo fazendo mais alguma peripécia culinária para meu pai.
Mecanicamente: tirar a camisa, jogar na bicicleta ergométrica, apanhar a toalha atrás da porta, correr para o banheiro, terminar de tirar a roupa e amontoar atrás da porta do banheiro. Mais uma mania que herdei do velho senhor Leonardo, minha mãe fica louca com isso, mas sempre prometo tirar no fim de semana. Sempre tiro quando ela está quase me esfolando vivo.
Depois de toda a minha maratona é hora de ir para a faculdade, chego lá, Mário e Pedro já estão nos lugares de sempre para podermos estudar. Eles são os meus melhores amigos desde sempre. Acho que até antes disso.
Joaquim, não olha, mas a guria que tu tá secando tá olhando pra cá. – Segurei-me para não olhar, mas sabia que Pedro não brincaria com isso, ele sabe o quanto a quero. – Pode olhar agora. – E lá estava ela, como num dejá vu, encostada na pilastra com seu corpo esguio e coberta por um xale feito por sua mãe. Tão bela.
Ainda tomava coragem de falar com ela, sei que é tolo ou até bobo, mas não conseguia ter coragem de chegar perto dela. Os meus amigos já fizeram de tudo, mas ainda a timidez vence.
Joan, tu devias ir até lá e falar com ela… – Mario comentou enquanto folheava mais um livro de física linear. O engenheiro mais louco que conhecia. – Aproveita que a doida da amiga dela saiu de perto.
Tu sabe que não vou… – Tinha que dar um jeito de falar com ela.
Lembrei, uma vez vi um bilhetinho com um número de telefone na carteira do meu pai. Será que daria certo? Arranquei um pedacinho de folha do meu caderno, escrevi numa letra até bonita e fiz a maior loucura da minha vida. – Mário faz um favor?
Lá vem bomba… – Ele disse fechando o livro. – Fala antes que eu me arrependa.
A Marília acabou de entrar no banheiro, corre lá e coloca por debaixo da porta. – Falei rápido como se tivesse que tirar alguém da forca.
Se tá doido piá? – Mário me olhou como se tivesse duas cabeças. – Sonha que vou entrar no banheiro feminino.
Se tu fizer isso, te ajudo com a Ana. – Peguei-o.
Isso é suborno cara… – A contragosto pegou de minha mão o pequeno bilhete e levou.
***
Três dias. Exatamente o tempo que o bilhete foi jogado por debaixo da porta do banheiro feminino num ato insano de ajuda do Mário. Estou, todos os dias, olhando para o celular em busca de uma forma, sei lá, telepatia, fazer ela me ligar. Tá pode parecer tolo, mas queria muito que ela mandasse mensagem, ligasse ou apenas jogasse meu número fora.
Estava cansado já, resolvi tomar um banho para tentar tirar o anjo da minha cabeça. Parecia uma sina, estava predestinado a sofrer de amor por uma mulher que mal fala comigo, no entanto, sabia até os olhares dela.
Enquanto me secava, ouvi a porta do meu quarto ser aberta. Deve ser dona Marta vindo avisar que tem visita, ela havia comentado hoje mais cedo que viria uma amiga para tomar um café da tarde, ou seja: Joaquim, não apareça na sala!
Aleatório ao aviso, notei que apenas entrou e saiu, não falou nada. Achei estranho, mas depois perguntaria a ela. Quando estava pronto para sair do banheiro, havia um papel rosa, adornado em corações debaixo de minha porta.
Com curiosidade, peguei-o e tornei a abri-lo. Era estranho, mas instantaneamente um sorriso passou a brotar em meus lábios, tinha quase certeza de quem teria aquela ideia insana. Continuei a abrir e lá estava o motivo da minha felicidade.
“Acho que não vou te ligar enviar bilhetinhos é mais romântico.”