Querido Diário 9 - Final

Sexta-feira, 18 de julho

Eu o avistei hoje de manhã na arquibancada e não pude deixar de sorrir. Ele estava, como sempre, com o seu caderno de desenhos no colo e o lápis pousado na mão esquerda. Parecia rabiscar alguma coisa, e a franja negra de seu cabelo já um tanto comprido a toda hora lhe caía sobre os olhos. Eu já dissera para ele cortar o cabelo, mas acha que ele me escuta? Vinícius é teimoso como uma mula!

... E essa é uma das coisas que eu mais gosto nele.

Hoje faz quase uma semana desde aquela festa da Elisa, aquele fatídico dia em que eu tive a plena certeza de que seria capaz de esquartejar aquela loura depravada se ela chegasse só um pouquinho mais perto do meu amigo. Até agora os comentários não haviam cessado, principalmente sobre como anda o relacionamento entre mim e o Vini. O povo ainda acredita que a gente brigou, mas que decidiu não deixar uma garota interferir na nossa amizade e que fizemos um pacto de que nenhum de nós ia ficar com ela.

Há!... Eles nem imaginam a verdade!

— E aí, cara, beleza? — eu me aproximei, e Vinícius imediatamente levantou o olhar para me encarar com aquela expressão de raiva.

Eu ri. Ele havia me contado sobre como odiava quando eu o cumprimentava assim. Mas é claro que eu continuei fazendo isso só para provocá-lo. Afinal, ele com raivinha era a coisa mais engraçada do mundo.

— O que está desenhando? — mudei de assunto, antes que ele tivesse a chance de retrucar o meu cumprimento.

— Não é da sua conta. — ele escondeu o caderno atrás das costas, bem como se fosse um pirralho da quinta série.

— Tá bom... Se é assim, nem vou falar um negócio muito irado que eu tinha pra te contar.

Fora um golpe baixo. Se tinha uma coisa nesse mundo que Vinícius irrevogavelmente era, essa coisa era “curioso”, ao ponto de esquecer até uma briga para satisfazer sua curiosidade. Logo ele mudou sua postura de marrento e se inclinou na minha direção.

— Conta, vai?

Eu ri e cheguei mais perto, encarando seus olhos negros e profundos.

— To apaixonado por você.

Ele corou e eu tive vontade de beijá-lo... Mas, estávamos numa coisa chamada “colégio”, onde isso não podia acontecer.

Vinícius sempre foi meu melhor amigo. Desde... Quando? 7ª série? Acho que sim... Mas ao mesmo tempo, ele nunca foi só o meu melhor amigo. Eu já vinha perguntando a mim mesmo há algum tempo o que diabos eu sentia pelo Vini! Porque... O sentimento era muito estranho para ser considerado apenas amizade. Mas eu nunca me interessei por garotos e nunca tive dúvidas quanto a algumas questões básicas sobre a minha sexualidade, portanto me faltava imaginação e coragem para pensar nele de outra forma.

... Só que eu também nunca havia me apaixonado de verdade antes... Ou pelo menos não do jeito como aconteceu com ele.

— Cala a boca. — Vini olhou para os lados, ao mesmo tempo tentando esconder a face rubra. — Alguém pode nos ouvir, seu idiota.

Eu sorri. Seria algo tão ruim assim se alguém nos ouvisse?

Será que poderiam suportar a felicidade de dois garotos que se gostavam?

Não sabíamos e não pretendíamos arriscar. Pelo menos, não por enquanto. Era suficiente que nós dois soubéssemos a verdade e tivéssemos um ao outro.

Aquele dia na praia... Quando achei que eu o tinha perdido, a chuva que caia e o vento gelado que vinha do mar pouco me importavam. Se ele não tivesse aparecido, eu teria ficado ali o dia inteiro, olhando o horizonte e pensando no quão idiota eu era, por ter deixado escapar entre os dedos a chance de tê-lo para mim, como algo mais do que um amigo precioso. E acabar descobrindo não só um novo sentimento, mas uma nova parte de mim mesmo.

Por que afinal eu havia me sentido tão culpado em beijá-lo na noite anterior?

Ah, sim, porque eu não fazia ideia do que estava acontecendo comigo e magoá-lo por causa da minha confusão era a última coisa que eu queria. Além do mais, ele não merecia que eu fizesse dele apenas instrumento de satisfação da minha própria curiosidade. Ele tinha acabado de ser vítima de uma brincadeira de mau gosto da minha parte e tinha confessado seus sentimentos de um modo que para ele não fora o certo. Eu não tinha o direito de brincar com aqueles sentimentos. Mas ao mesmo tempo em que eu me desculpava acabei percebendo que não era preciso desculpas. O que eu fizera era a resposta para toda a minha confusão anterior, eu soube naquele exato momento, com certeza absoluta, que o que ele sentia por mim era totalmente correspondido.

No entanto, a chance de me explicar se evaporou junto com o meu pedido de desculpas. Com aquilo eu tinha estragado tudo. Se ele não tivesse aparecido na praia... Uma parte de mim estaria perdida para sempre. Essa parte era Vinícius.

— Mas é verdade. — continuei, me estirando preguiçosamente pela arquibancada e apoiando minha cabeça em seu colo, deixando-o irritado por não poder continuar o desenho. — Que se dane a porra do mundo! Eu to completamente...

Então ele tampou minha boca antes que eu pudesse terminar.

— Apesar de você ser um babaca... — sussurrou, com um sorriso tímido nos lábios. — Eu também. Agora cale a boca.

Eu ri e obedeci, beijando de leve a mão que estava sobre os meus lábios.

— Ei! Os dois pombinhos já podem parar de se pegar e ir para a sala, que o sinal já tocou!

Lari, ao pé da arquibancada, quase nos matou do coração. Fudeu, tinham descoberto sobre nós! Só que não, era apenas brincadeira. Passado o susto inicial, nós dois caímos na risada como dois patetas, pirralhos da quinta série. A garota não entendeu nada, mas não se dignificou a perguntar sobre a piada interna. Provavelmente era alguma bobagem, deve ter pensado.

No caminho para a sala de aula há um corredor largo com duas portas do lado esquerdo. A primeira era o laboratório de biologia, a segunda, a sala de artes. Quando passávamos por ali, Vini me estendeu um papel sem que Larissa percebesse.

O papel dobrado era um daqueles de seu caderno de desenhos. Desdobrei cuidadosamente para não chamar a atenção da garota, que ia um pouco mais a frente de nós.

A figura desenhada era a de um anjo com o torso nu, mergulhado até os quadris em um lago e com as asas majestosas caídas sobre a água. Um desenho que eu tinha pedido para Vini me mostrar na semana passada. Junto com ele, a inscrição logo abaixo da assinatura do artista dizia: “Ainda que eu falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria. Do seu melhor amigo, Vinícius.”

“Do seu melhor amigo, Vinícius”. Mas que filho da mãe!

— Tá de sacanagem...! — eu disse, irritado.

— Que foi, Nico? — Larissa parou no corredor e se virou para nós.

— Lari, vai na frente? Eu preciso ter uma conversinha com esse retardado aqui.

Vinícius por um momento achou que era brincadeira, mas quando viu meu olhar sério, ficou com uma expressão atordoada. Eu o puxei pelo pulso e o empurrei para dentro do laboratório de biologia, que estava milagrosamente aberto, porém com as luzes apagadas.

Fechei a porta e empurrei Vinícius contra ela, agora os olhos negros me encaravam com um misto de indagação e pavor.

— Qual foi, cara? Pra quê isso? — ele falou, mas eu ignorei.

Eu o comprimi ainda mais contra a porta com o peso do meu corpo e o beijei. O beijo era urgente e voraz, quase selvagem e quente como sol de meio-dia. Eu forçava minha língua em sua boca e roçava meus dentes em seus lábios, como se quisesse esfolá-los, mas nada tão exagerado a ponto de doer, apenas de provocar vermelhidão. Eu tinha uma de minhas pernas entre as suas coxas e as mãos firmemente seguras em seus quadris. O prazer de dominá-lo me consumiu. Ele, atordoado, estava completamente à minha mercê.

Levei uma de minhas mãos até seus cabelos negros e os segurei firme, puxando de leve para trás. Ele gemeu baixo quando eu levei meus lábios a sua orelha, devia ter um ponto sensível ali.

— Agora escute aqui. ¬— sussurrei agressivamente. — Melhor amigo é o caralho! Você é meu namorado! Entendeu?!

Vini levou alguns segundos para processar o que acabara de acontecer. Depois, um sorriso de satisfação inundou seus lábios, agora vermelhos pelo beijo.

— Bem... Eu sonhava com um pedido mais romântico, mas... Já que é assim... — ele riu. E aproveitou uma distração minha para me segurar pela camisa e me empurrar para a parede ao lado. Seu sorriso agora tinha uma espécie de malícia que me surpreendeu. — Só não ache que é o único que tem colhões por aqui, seu metido.

Então nossos lábios voltaram a procurar avidamente um pelo outro. E o que aconteceu depois fica para a imaginação de qualquer possível leitor deste relato.

... Afinal de contas, eu é que não ficar contando minhas intimidades para um diário qualquer.

Ingrid Flores
Enviado por Ingrid Flores em 01/04/2015
Reeditado em 01/04/2015
Código do texto: T5190930
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