O CASO DA ROSA

... as únicas flores que todo mundo

tem certeza de conhecer.

Katherine Mansfield

A campainha tocou. Era Ângela chegando, sempre atrasada. Todos já estavam no quintal, em volta da mesa. Tudo pronto para um almoço de domingo ao ar livre, com seis pessoas: ela, Ângela e outras duas amigas com seus maridos.

Ângela chegou acompanhada de um amigo. Ângela quebrando protocolos, Ângela descombinando o combinado.

— Oi Rosa! Este é meu amigo Carlos, Carlos esta é a Rosa.

— Encantado!

Rosa não tinha olhado direito o rosto do rapaz; pensou, com repugnância, que era o novo namorado da amiga. Ela já havia passado dos cinquenta! O que a Ângela estava pensando da vida? É a mais “experiente” e jovial das amigas, mas faça-me um favor! Namorar um rapaz!

Rosa resolveu olhar a cara dele. Dependendo do que visse, nem o deixaria entrar! Estava indignada!

— Meu deus!

— Que foi mulher?

— A senhora está bem?

— Com licença, esqueci uma panela no fogo!

Desculpa esfarrapada, afinal estava tudo pronto. Carlos foi apresentado e acomodado por Ângela e o almoço começou. Rosa tentava controlar a leve tremedeira nas mãos e disfarçar o incômodo que o amigo da Ângela lhe causava. Sabia o motivo e na hora da sobremesa discutiria o assunto com a amiga. — Ângela, você me ajuda a trazer a sobremesa?

— Claro querida.

— Você tá maluca, mulher?

— Ai Rosa! Num aperta meu braço assim!

— Como você tem coragem de fazer isso comigo?

— Que foi?

— Esse Carlos é a cara do meu Carlos!

Após o agradável almoço, Carlos estava olhando os canteiros de rosas que margeavam os muros do quintal. Todas carregadas de vultosas rosas cor de rosa. Ângela foi conversar com ele:

— Ângela, você já teve a sensação de conhecer alguém e não se lembra de onde?

No momento da despedida, Rosa e Carlos pareciam um pouco menos desconfortáveis. Carlos agradeceu e Rosa deixou um convite para que voltasse. Talvez efeito do vinho do Porto? Talvez curiosidade? Alguma coisa que não pode controlar?

Rosa ficou viúva com menos de um ano de casamento. Seu marido, Carlos — coincidência, né? — faleceu num acidente de carro. Casaram-se na quentura dos vinte anos, felizes! Carlos fez questão de casarem no mês de abril.

— Assim comemoramos o mês todo! Dia dois o meu aniversário, dia quinze o nosso casamento e, para fechar com chave de ouro, dia vinte e nove o seu, meu amor! — Não deu tempo, Carlos faleceu dia vinte e seis de fevereiro do ano seguinte.

Não tiveram filhos e ela não quis adotar, admirava quem o fizesse, mas não o faria. Também não teve nenhum outro relacionamento; ser viúva tão nova mexeu com ela. Mesmo assim tentou seguir sendo a flor que era e os amigos se recusavam a abandoná-la. Rosa fazia de tudo para agradecer, como esses almoços ao ar livre no seu simpático quintal.

Quando as rosas cor de rosa estavam abertas, a brisa espalhava um perfume leve que a fazia lembrar do seu Carlos. Ângela foi quem a incentivou a plantar aquelas rosas em volta do quintal e, com seu jeito sem cerimônia de se relacionar com a amiga, deixou bem clara a intenção. Rosa precisava se lembrar, todos os dias, das coisas boas que viveu com seu amor. Na maioria das vezes até que dava certo.

Aí a Ângela aparece com aquele rapaz de vinte anos, vinte e dois, no máximo, que é a cara do Carlos! Do seu Carlos! Rosa não dormiu bem. Carlos não dormiu bem! De onde ele conhecia aquela mulher? Tinha uma quase certeza de conhecê-la.

De tarde a campainha toca:

— Você? — moleza nas pernas.

— Desculpe, Rosa... Quero dizer... Dona Rosa! Vim agradecer o almoço de ontem, mas se incomodo... — quanta semelhança com o seu Carlos! Cavalheiro como ele!

— Não seja bobo Carlos. Quer entrar?

Rosa lembrou-se de uma vez que o seu Carlos chegou na sua casa de surpresa e convidou-a para tomar um sorvete.

— Desculpe, só vim mesmo para agradecer. Com licença... tchau!

As palavras certas não saíram; ela o deixava tímido. De onde conhecia aquela mulher? Rosa achou graça; era tímido como o seu Carlos. A campainha tocou outra vez.

— Desculpe, Dona Rosa... permita-me a ousadia de convidá-la para tomar um sorvete?

— Tomar um sorvete?

— Se a senhora não quiser...

— Não, não! É claro que eu quero! Só um momento. – foi pegar a bolsa e fechou a porta – Pronto, vamos?

Até que tomaram o sorvete sem maiores consequências. Ela de morango, ele de chocolate, como faziam no passado; ela e seu marido, é claro! Mas ela e aquele Carlos do presente tinham tanto em comum que até arrepiava as penugens do seu braço. Ele tinha vinte anos...

O dia seguinte foi de chuva. Uma chuva bonita: reta e sem alvoroço. Na cabeça do Carlos e da Rosa o dia foi de alguns trovões e relâmpagos. Quando pararam um pouco para pensar, e os dias chuvosos fazem isso com a gente, começaram a achar suas atitudes desprezíveis.

— Onde já se viu! Uma velha como eu tomando sorvete com um garoto? Que indecência, Dona Rosa! Ponha-se no seu lugar! — repreendeu-se tentando pentear os cabelos diante do espelho. Já se viam fios brancos!

— Você tá maluco? Tá se apaixonando por uma mulher que pode ser a sua mãe! E se ela se apaixona por você? — esbravejou Carlos, fazendo a barba e quase se cortando perto da jugular.

Não se viram durante a semana e as coisas fermentaram. Rosa não parava de pensar naquele Carlos tão... igual ao seu. Era como se fosse descongelado após vinte anos, permanecendo só a memória congelada. E ainda por cima a Ângela sumiu! Não ligava, não atendia ao telefone...

— De onde conheço essa mulher? - obsessão! Tornou-se sua missão desvendar o mistério. Talvez a Ângela o ajudasse...

Rosa andava de um lado para o outro, na sala, abraçada ao álbum de fotos do seu casamento, murmurando:

— Só a memória permanece congelada! Só a memória permanece congelada!

Parou no meio da sala. Olhou a sua volta e viu o seu Carlos, de vinte anos atrás, ou aquele outro Carlos do presente, já tinha dúvidas, sentado na poltrona de costas para a porta, com aquele sorriso de namorado tímido, e ela sentada no sofá, olhando para ele por entre os fios da franja, fazendo ares de misteriosa. Ingenuidade gostosa. Carlos andando de braços dados com ela, quando iam tomar sorvete, abrindo a porta para ela passar, oferecendo a mão para ajuda-la a descer qualquer degrau.

Os móveis da sala eram outros, do mesmo tom, mas outros. Mesmo assim ela via o seu Carlos, ou os seus Carlos, sentado na poltrona, pedindo a mão dela em namoro, suando e gaguejando, todo vermelho, e implacável ao seu modo, frente ao colosso de homem com cara de bravo que era o pai dela. Carlos, na mesma poltrona, pouco tempo depois, encarando o mesmo colosso de homem, o pai dela, suando muito e gaguejando menos, para pedi-la em noivado, e quase dois meses depois, em pé, no meio da sala, suando e sem gaguejar, cara a cara com o pai da noiva, para pedi-la em casamento.

Espaventou as lembranças com um gesto rápido da mão, deixou o álbum sobre a mesinha de centro e foi para a cozinha fazer uma xícara de chá de camomila. Pôs água para ferver, abriu o armário, pegou a xícara e... a xícara escapou da sua mão e espatifou-se no chão. Rosa ficou olhando a xícara quebrada até ser acordada pelo apito da chaleira. Desligou o fogo. A xícara não se refez e a campainha tocou.

— Carlos!

— Dona Rosa! De onde eu te conheço? Por favor, me diz: de onde eu te conheço?

— Entra Carlos, quero te mostrar uma coisa...

Sentaram-se no sofá, Rosa suspirou e apontou para o álbum:

— A resposta está ali.

Ele olhou para o álbum, olhou para Rosa que já estava ofegante, olhou para o álbum, olhou para Rosa ainda ofegante, olhou para os bicos dos sapatos, levantou-se, deu uma volta pela sala, de mãos nos bolsos e cabeça baixa e sentou-se naquela poltrona. Aquela poltrona que deixava o seu Carlos do passado cheio de coragem para encarar o desconhecido.

Carlos pegou o álbum. A testa suada. A mão direita hesitando em abrir a capa do álbum. Uma gota de suor escorreu pela têmpora e entrou pela gola da camisa. Olhou para Rosa e foi abrindo o álbum, ainda olhando para ela. Rosa estava com as mãos entre os joelhos, para esconder o tremor, mas não conseguia esconder a respiração um pouco ofegante. Olhou para o álbum e fechou-o devagar, colocou-o na mesinha, levantou-se e deu outra volta na sala, enxugou o suor com seu lenço que tinha a letra C borbada no canto interior direito, tão igual àquele Carlos do passado até nisso...

Sentou-se na poltrona, pegou o álbum e abriu rápido. Começou a folhear e olhar as fotos com atenção, voltava as folhas para olhar outra vez algumas fotos, deu mais uma olhada do começo ao final, fechou o álbum, colocou-o na mesinha e olhou para Rosa. Estava sério.

— Dona Rosa, não lembro de nada disso! Desculpe... eu... eu... Desculpe!

— Carlos! Que dia você nasceu? Quantos anos você tem?

— O quê?

— Fala pra mim: que dia você nasceu?

— Rosa... Dona Rosa! Isso não é hora de...

— Responde Carlos... por favor...

— Vinte e seis de fevereiro...

— E você tem vinte anos, certo?

— Dona Rosa, o que isso tem...

— O meu Carlos faleceu no dia que você nasceu!

— Dona Rosa, a senhora acha que eu sou aquele Carlos do álbum, reencarnado?

— Acho sim! — falou brava, com os braços cruzados, sem piscar.

Carlos levantou-se, andou em volta da sala, suando, esquecido do lenço, estava perdendo o controle. Saiu sem falar nada; grosseria jamais admitida por ele mesmo.

Rosa foi a cozinha. Nem lembrava mais do chá de camomila, não sabia o que foi fazer na cozinha. Chutou sem querer um caco da xícara quebrada... a xícara que não se refez... Sentou na cadeira, segurou a cabeça entre as mãos e começou a chorar, desapertar o coração... mesmo assim a xícara não se refez.

Lembranças se refizeram, já que a xícara não se mexia: Carlos convidando-a para tomar sorvete, Carlos recitando poesias lindas escritas num papel amarrotado, tirado do bolso de trás da calca, Carlos fazendo suas pernas tremer quando encostava os lábios quentes na sua mão, Carlos mimando a namorada com docinhos, Carlos chegando sem avisar, estendendo a mão com uma pétala de rosa na palma...

A campainha tocou, Rosa demorou um pouco para entender que era a campainha e que a pessoa que tocava devia estar com pressa. Chutou outro caco da xícara que insistia em não se refazer, enxugou as lágrimas, ajeitou os cabelos e atendeu a porta.

— Rosa! Eu lembrei de tudo!

— Vai embora, Carlos...

— Não, é sério! Eu lembrei de tudo meu amor!

— Por favor... vai embora Carlos... — sentia que começaria a chorar.

Carlos estendeu o braço na direção dela e abriu a mão...

Rosa foi ficando mole, tentando segurar-se na porta. Carlos amparou-a antes que caísse, pegou-a no colo e pousou-a com cuidado no sofá. Encostou o ouvido perto da sua boca e viu que ainda respirava; não podia perder sua Rosa outra vez. Correu para a cozinha para pegar um copo d’água e chutou vários cacos de alguma coisa quebrada no chão. Passou a mão molhada no rosto dela e no pescoço; a lembrança da pele lisa da Rosa de vinte anos atrás arrepiou-o inteiro.

Ela começou a acordar, orientando-se com calma, colocando em ordem os acontecimentos desordenados. Carlos estendeu a mão aberta e Rosa pegou, com os dedos trêmulos, uma pétala amarrotada de rosa cor de rosa.

— Você voltou Carlos! O meu Carlos!

— Lembrei de tudo! Lembrei de tudo meu amor!

Levou pouco tempo para se encaixarem naquilo tudo. Das suas amigas, só a Ângela se recusou a abandoná-la; Carlos não se prendeu muito aos seus, nem às opiniões, ataques e mexericos. Casaram-se sem perder muito tempo, numa data não muito planejada.

Se você acha que o caso da Rosa é uma história comum, ouve essa:

Carlos morreu, vitima de uma bala perdida, quatro meses depois do casamento!

Ainda está achando comum? Continua ouvindo:

Vinte e nove anos depois, Rosa com seus pesados oitenta e nove anos, sem a amiga Ângela, mas com uma nova amiga, a Meggie, Margarete, estava se divertindo numa festa, tanto quanto a idade lhe permite. Maggie chega acompanhada de um homem, que devia ter seus cinquenta anos.

— Rosa, quero que conheça o Carlos.

Agradecimento especial à Maria Santino, pelo incentivo. Foi divertido tirar esse amor da gaveta.

Carlos H F Gomes
Enviado por Carlos H F Gomes em 10/03/2015
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