Pequeno conto de paixão e mistério
O lugar era sempre o mesmo, o esconderijo na furna, gostavam de observar os caramujos e sirís que habitavam a loca, havia uma pequena piscina natural, que se enchia de peixinhos quando a maré subia. Ela estava gelada, o balsalto era frio sob a pele, a maré ainda estava baixa, Miguel cobriu-a com a manta e a abraçou forte para aquecê-la. Podiam ficar mais tempo, ali tinham a liberdade dos amantes, era esconderijo preferido, Guilherme chegava primeiro, Elizabeth aproveitava qualquer descuido da velha empregada, subia colina e descia até a praia, ficavam horas fazendo amor, tomavam banho de mar completamente nus, ninguém sabia dos encontros furtivos. Ela estava deitada sobre ele, faziam planos e trocavam carícias, faltava poucos dias para o casamento.
Mesmo sendo uma praia bonita, exuberante, Savana não se sentia bem. Passava o tempo todo nauseada, tinha tonturas, se estivesse de pé tinha que se segurar em algum móvel para não cair. Nunca entendeu porque se sentia tão mal ali se amava tanto o mar. Em Torres, só pensava em ir embora e nunca mais voltar, nada tinha graça, da sacada do apartamentoo via as torres de pedra e chorava. O mesmo acontecia em Morro dos Conventos, no Morro das Pedras, no litoral catarinense, detestava os paredões de pedra, a altura, o farol. Abominava lugares altos, muitas vezes, tinha a impressão que uma força externa a puxava para baixo, via-se despencando de um lugar muito alto, que não sabia identificar, via seu corpo batendo na rocha, lanhado. Acordava, à noite, apavorada, Miguel tentava acalmá-la, mas em vão, ela saía da cama, mudava de quarto, preferia ficar sozinha.
Savana saiu para caminhar muito cedo, andou pela cidade, viu as lojas, não subiu a colina, o medo sempre voltava. Observou o mar, a Ilha dos Lobos, o terreno gramado junto da areia, os veranistas já tinham ido embora, a cidade voltava a ser pacata. As torres estavam ali, ameaçadoras, erguiam-se em direção ao céu diante dos seus olhos, as furnas, a escadaria encravada nas pedras, o estrondo das ondas quebrando nas pedras, novamente o mal-estar tomou conta de seu corpo, teve um ataque súbito de pânico. Se Miguel estivesse com ela, seria pior, nestes momentos Savana preferia estar só, a presença dele a incomodava, a perturbava.
O barulho das ondas a deixava tensa, se ficasse mais uma semana naquela cidade ia enlouquecer, juntou o livro e a sacola e saiu em direção ao centro, precisava de um café. Caminhava devagar, tentava entender o porquê das coisas, o que a deixava tão mal naquela praia de rara beleza. De relance notou a presença do velho índio que a acompanhava, devia ser um descendente de kaingangs, antigos habitantes do litoral, agora habitavam as margens das estradas em completo abandono. Abriu a bolsa e pegou algum dinheiro para dar ao velho índio, ele recusou, sem desviar os olhos dos dela, sussurrou com a voz rouca e calma: "a moça caiu nas pedras". Ela não entendeu direito o que ele queria dizer, virou-se para indagar mais alguma coisa e o índio tinha sumido. Seus pensamentos estavam confusos, subiu direto para o apartamento e se jogou na cama, chorou por mais de uma hora, não sabia o que estava acontecendo com ela. A empregada preparou um chá, escureceu o quarto e a deixou dormir até a noite.
O casamento seria em maio, o casarão em estilo alemão estava sendo preparado para receber os convidados, a cerimônia seria ao ar livre. Elisabeth estava eufórica, havia as provas do vestido, a escolha das flores, a música, viriam convidados da Argentina e do Uruguai. Guilherme estava envolvido com a compra do gado, a nova estância, as importações de produtos náuticos que chegavam pelo porto de Rio Grande, estava construindo o seu próprio barco, pretendia fazer grandes viagens com Elizabeth, por isto não se envolvia com os preparativos da festa.
A inquietação de Savana estava se tornado exagerada, além de não dormir, passou a não se alimentar, andava apática, Miguel se preocupava, saía pela manhã voltava várias vezes para ver como ela estava, Savana dormia, quase não falava. Miguel quis marcar um médico para ela, mas Savana achou que era só uma crise de melancolia que logo ia passar. Ela começava a perceber que o casamento não ia bem, perdera o interesse por Miguel, por vezes o odiava, não permitia que ele tocasse nela.
Era um fim de tarde, havia uma brisa fresca soprando do mar, o rio corria tranquilo, Savana teve coragem, atravessou a ponte sobre o Mampituda e foi até a feira, teve a impressão de ter visto o velho índio entre as barracas, sentiu o mal-estar de sempre, mas reagiu, mudou o pensamento, comprou frutas e flores e sentou na pedra para ver a pesca. Estava anoitecendo, os barcos estavam atracados, alguns pescadores recolhiam as redes, o vento estava mais frio, de repente, parou na doca e perguntou a um senhor que puxava cordas se conhecia alguma estória pitoresca sobre a praia. O homem foi educado, disse que naquele momento não podia conversar, mas no dia seguinte estaria na doca, à disposição. Savana acreditava que a conversa com o pescador seria esclarecedora, poderia haver alguma relação com o mistério que a cercava nos últimos tempos, os seus medos, a imagem do índio, a moça que caiu das pedras, suas angústias.
Era sábado, 1910, o sol de abril já não era tão quente, estava tudo pronto para o casamento, Elizabeth estava radiante, os convidados de longe haviam chegado, o salão do banquete estava lindamente decorado, a louça era inglesa do mais fino gosto, as flores e as frutas foram trazidas da região serrana, os presentes se espalhavam por quase toda a casa. Após o almoço as pessoas se dispersaram pela propriedade, precisavam descansar para a cerimônia do casamento, para a festa. Guilherme e Elizabeth saíram para caminhar pela beira do mar, estes passeios sempre terminavam em momentos de muita paixão, sem medo, Elizabeth entregava-se a ele. Foram até as furnas dos Diamantes, formação basáltica muito alta e íngreme. O local estava deserto, deitaram sobre uma pedra e ficaram imaginando como seria a nova vida, os planos para o futuro. Ondas muito fortes estouravam nas pedras, Elizabeth estava com o vestido completamente molhado, grudado no corpo, não demorou muito para que o desejo se acendesse e fizeram amor como nunca tinham feito. Ela estava preocupada com a hora, vestiram-se rapidamente, mas ela queria ver o outro lado da furna, Miguel subia atrás dela, queria voltar, mas ela insistiu em subir mais, o mar era de azul profundo no horizonte, a Ilha dos Lobos estava completamente à mostra, a beleza natural era estonteante. Num descuido, Guilherme pisou na barra rendada do vestido de Elizabeth fazendo com que ela perdesse o equilíbrio. O corpo despencou do penhasco, foi se projetando, rodando no ar até tombar sobre a pedra. Por muito tempo ele gritou por ela, gritou até perder a força, deseperado, pulou. Foram dois dias de buscas até que os cães localizaram os corpos, a vila se cobriu de luto por muito tempo.
No jantar contou para Miguel sobre o passeio, a feira, a visão do índio, a conversa com o pescador, Miguel não gostou muito, mas para não criar caso, incentivou a entrevista que ela teria com o pescador. Naquela noite Savana teve pesadelos, sonhou que andava sobre a areia e afundava, pedia socorro e Miguel não a ajudava, acordou chorando, aflita, ele tentou abraçá-la, mas ela saiu do quarto, como sempre.
Saiu de casa pelas 18 horas quando já anoitecia, passou na feira, novamente, comprou algumas coisas para casa e seguiu em direção ao cais. O pescador estava enrolando as cordas da embarcação, ela o cumprimentou, mas ele não respondeu de imediato, parecia preocupado, minutos depois ele disse: - "a senhora é igualzinha à moça do retrato." Sem deixar transparecer preocupação, Savana perguntou sobre que moça ele estava falando? O pescador respondeu, "aquela que caiu da furna, era filha do intendente". Savana sentiu um tremor nas mãos e a voz quase não saía. Perguntou onde estaria o retrato, gostaria de vê-lo, "na sede do museu", ele respondeu. - "A pobrezinha morreu na véspera do casamento, o noivo morreu também, uma pena, é o que o povo conta, dona", disse ele. Savana não sentia o chão sob os pés, agora ela sabia os motivos dos medos, da altura, porque não gostava daquela praia. Atravessou a ponte e ficou tonta com o movimento da água, estava meio desnorteada. Ao chegar em casa contou a Miguel sobre a conversa com o pescador, ele era descrente de coisas esotéricas, mas a ouviu com atenção, prometeu que iria levá-la no museu para ver a tal foto.
No dia seguinte Savana acordou cedo, estava curiosa queria ver a fotografia. O prédio do museu estava mal conservado, o acervo era bem pequeno, havia fotos de imigrantes, imagens de duas tribos indígenas, as carretas que faziam transportes, mobiliários domésticos feitos de ferro, fotos de políticos locais e alguns quadros. Numa sala maior, havia a foto de uma família que parecia ser nobre, composta de muitas pessoas, era a família do intendente, Savana correu os olhos pela fotografia e ficou paralisada, era a moça quase igual a ela. Miguel estava petrificado diante do retrato, não conseguia falar. A moça do retrato era realmente igual a Savana, o mesmo olhar, os mesmos traços, mas o cabelo era ruivo, os olhos verdes. Naquele momento descobriram os motivos que deixavam Savana tão confusa e aflita, as crises de pânico, os medos. Após pesquisas no arquivo histórico, Miguel e Savana souberam que depois da morte dos jovens, a família saiu da cidade, voltou para a fronteira, seria impossível viver em Torres.
Depois de todos os acontecimentos, Savana interessou-se por regressão a vidas passadas, foi encaminhada para um renomado médico em Pelotas e, por algum tempo, foi tratada, entendeu que a moça da furna teria sido ela numa outra vida, Miguel era Guilherme. Tratada, sentiu-se bem melhor, passou a entender as coisas do além da vida, as afinidades. Miguel e Savana voltaram para Costa Rica, Torres ficaria só na lembrança.
Beijo a todos!