661-CASAMENTO DETONADO POR UM TORPEDO

Cansado, joguei-me na cama como estava: empoeirado, sem tirar os sapatos, os olhos ardendo pelo último estirão da longa viagem. Desejava dormir, mergulhar num sono profundo ou num esquecimento total. Apagar recordações.

Mas elas insistiam. Por mais que me esforçasse, elas martelavam meu cérebro com a cadência de um ferreiro batendo na bigorna, caprichando no fio da lâmina da espada sarracena.

Não me recordava da última noite que tivera um bom sono. Por conta de toda a confusão, perdi quilos, meus clientes. a família e quase perdi a vida. Agora, deitado sobre os lençóis alvos e frescos da pousada da praia, precisava descansar e tentar colocar minha vida em ordem.

Esquecer... Sim, esquecer… Mas, principalmente, organizar meus pensamentos, pensar como iria reconstruir minha vida. .

Minha vida virou um inferno, transformou-se numa vida de cachorro virea-lata, desde a tarde que enviara a mensagem a Noêmia.

Que merda!

Tinha que cancelar o encontro daquela noite, ela não atendia o celular. Digitei a mensagem e disparei o torpedo.

Torpedo... Nome apropriado! Mais do que acertado. Pois ao selecionar o comando ENVIAR, avancei inadvertidamente para "ENVIAR PARA TODOS" e disparei o torpedo.

Torpedeei minha própria vida.

No momento, não me dei conta da burrada que havia feito. Mas alguns minutos depois, comecei a receber mensagens de meus amigos, respondendo ou comentando minha mensagem É claro que a maioria não compreendeu, pensando se tratar de um trote de minha autoria, mas alguns (que já sabiam do meu romance com Noêmia) perceberam e me alertaram. Só então me dei conta da tremenda burrada que cometera.

Todos meus amigos e clientes cujos números de celulares e fixos estavam elencados no meu celular receberam a mensagem, inclusive Carmen, minha mulher, e meus filhos Vitor e Tiago.

Com tamanha bobeira, detonei minha família, minha profissão e minha honra.

Minha secretária (que também havia recebido a mensagem, pois seu numero estava na memória do meu celular) me olhou com um olhar estranho quando pedi que despachasse a última cliente da tarde, que já esperava no consultório. Saí disparado e dirigi frenético para minha residência, tentando imaginar o que iria dizer a Carmem.

Não foi preciso dizer nada. Ela já me esperava com aquele seu jeito decidido e autoritário de diretora de colégio. De pé, na varanda defronte a casa.

Quando abri a boca, ela me atropelou:

— Não precisa falar nada. Você está banido da nossa casa. Procura seu rumo.

— Mas... temos de conversar.

Ela simplesmente entrou e bateu a porta na minha cara.

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Meu caso com Noêmia já era de seu conhecimento. Há alguns meses tivemos um entrevero, passei uma semana fora, mas tive jeito de contornar a situação e voltei para casa — se bem que, ao retornar, encontrei minhas roupas em outro quarto, onde passei a dormir desde então. Cinco meses de separação à noite e de pouca conversa. Só conversávamos o absolutamente necessário para a manutenção da casa, dos filhos e coisas indispensáveis.

Noêmia era uma morena cuja presença era difícil de ignorar. Alta, de corpo bem feito e equilibrado, morena de olhos verdes. Cabelos longos, negros, boca generosa de lábios sensuais e dentes maravilhosos (como dentista, sei avaliar bem). Era generosa não apenas nos sorrisos e nos olhares, mas nos abraços e nos beijos. Manicure. Prestava serviços a domicílio, razão pela qual ia lá em casa todas as sextas-feiras. Ela e Carmem se davam bem e acho que até trocavam algumas confidências.

Nosso caso começou assim, naturalmente, sem que eu ou ela fizéssemos muita força. Trocamos alguns olhares mais significativos e lhe dei uma caixa de bombons por ocasião da Páscoa (é claro, sem que Carmem soubesse), marcamos um encontro e nos tornamos amantes.

Não vou entrar em detalhes neste aspecto, bastando dizer que nós nos encontrávamos duas vezes por semana, nas tardes de terças e quintas, na sua casa. Tudo muito discreto, pois ela morava num bairro longe do centro e a casa tinha uma entrada para carros bem disfarçada, de forma que nós mantivemos o relacionamento com tranqüilidade. Ela continuou fazendo as unhas e pés de Carmem.

Minha mulher é o que se chama hoje em dia de “mulher-sanfona”. Engorda e emagrece, engorda e emagrece. Sendo rechonchuda, deve manter um regime brabo, dietas e abstenção de muitos alimentos, a fim de não engordar. Mas está constantemente ultrapassando os limites, principalmente nas festinhas e nos encontros sociais. Como é diretora de escola estadual, as reuniões são freqüentes, e as ocasiões de petiscar, experimentar este ou aquele docinho, esta ou aquela delicia de salgadinho, e os quilos aumentam repentinamente. Já fez tudo quanto é dieta ou regime. Frequenta academias, SPA, faz Pilates. Os músculos dos braços e pernas aparecem com destaque nas ocasiões em que ela consegue perder alguns quilos.

Quando soube de meu caso com Noêmia, em julho do ano passado (há seis meses, portanto), ficou braba, chorou muito, julgou-se “dispensada” e engordou treze quilos. Para uma mulher de metro e sessenta o peso de noventa quilos é demais. Foi o tempo que a vi mais gorda, desde que nos casamos. Nem quando teve os dois filhos ficou tão redonda assim. Dispensou Noêmia com um palavrório que me surpreendeu:

— Não quero ver nunca mais aquela cadela filha da mãe. Mulata sem vergonha.

Nossos dois filhos são bons rapazes. Vitor tem vinte e um e Tiago, dezenove. Estudam em outras cidades e nos visitam nos fins de semana. Aliás, visitavam. Agora ambos têm “namoradas”, vivem mais por conta das moças e sempre estão com programas com elas, que são, na verdade, pretextos para não virem mais em nossa casa.

Passado o estremecimento dos primeiros dias (em julho), Noêmia me procurou. Por telefone, explicou que para ela nada mudava. Ao saber que eu estava dormindo em quarto separado, propôs:

— Tenho o nosso quarto só para você. Vem morar comigo.

— Vamos dar um tempo. — Respondi. — Por ora a Carmem está uma víbora, se ela me arranhar, sou homem morto. Deixa a coisa esfriar.

Cidade pequena, as notícias correm e as fofocas voam. Minha clientela, constituída por boa parte de gente da alta sociedade local, caiu quando alguns ficaram sabendo do meu caso com Noêmia.

Noêmia também reclamou:

— As dondocas ficaram assustadas, acho que posso seduzir também os maridos delas. Perdi umas vinte madames.

Mas ela era competente, e logo tinha preenchido todo seu tempo com novas freguesas.

Mas a saudade apertou para mim e para ela. Não faz nem um mês, iniciamos novo romance. E estava justamente tão preocupado com nossa segurança, que queira desmarcar um encontro para a noite de quinta feira,quando, inadvertidamente mandei aquela mensagem para todos os telefones cujos números estavam em meu celular.

Foi o fim da picada, a queda da casa de Ulsher, o apocalipse.

Depois daquela tarde fatídica, mudei-me para a casa de minha mãe, viúva e cuja casa era grande demais para uma só pessoa. Pensava que em uma semana ou coisa assim, Carmem se acalmaria.

Mas aconteceu o contrário. Ela desandou a beber. Como tomava comprimidos para emagrecer, e até alguns antidepressivos, a bebida alterou totalmente seu estado psíquico.

Minha irmã, sempre tentando apaziguar a situação, a convidou para a festa de fim-de-ano na sua casa, que reunia toda a nossa família: meus irmãos (veio até os quem moram fora), as cunhadas, os sobrinhos, Ninguém ficou surpreso quando Carmem chegou, no seu carro.

Já estava “alegre”.

— Passei na casa de minha irmã, já brindamos o ano novo. — Ela explicou.

A determinada altura, embriagada, Carmem botou a boca no trombone e soltou a cachorrada em cima de mim.

Falou poucas e boas até contra meus irmãos e minha mãe, contra algumas colegas de escola, enfim, disparou a metralhadora atirando em 360 graus.

Arrastei-a para o carro e a levei para casa. Dei-lhe um calmante, e ela nem percebeu o que estava tomando. Os filhos não apareceram para a passagem do ano. Passei a noite em vigília, pensando no que fazer.

Aquela foi a noite da grande decisão.

No dia seguinte, Carmem acordou numa grande ressaca, naturalmente. Quando me viu, ficou irada.

— Cachorro! Que está fazendo aqui em casa! Já não te mandei embora?

— Olha, Carmem, se prepara que esta semana vamos nos separar.

Ela gargalhou:

—É a melhor notícia para começar bem o ano. Vai, vai. Quando mais cedo, melhor.

Pensei que ela iria encrencar na hora se nos separar. Mas foi tranqüilo: combinamos tudo na presença do advogado, que providenciou o divórcio. Ela ficou com a nossa casa residencial, de valar bem mais alto do que a casa onde eu mantinha meu consultório, que ficou sendo a minha parte. Isto, para me livrar do pagamento de pensão. Aliás, a renda dela, como diretora da escola estadual, era igual à minha e nem sei por que se falar em pagamento de pensão. Enfim, queria me ver livre o quanto antes do casamento.

Sai do escritório do advogado, fui até minha ex-casa, peguei todos meus objetos pessoais, livros, tudo o que era meu, e levei para a casa de minha mãe.

Isto foi numa quarta-feira. Na quinta feira de manhã, peguei o carro, avisei minha secretária para cancelar todas as consultas da primeira quinzena de janeiro, dei-lhe férias, avisei minha mãe que iria viajar...

— Pra onde? — Ela perguntou.

— Sei lá. Vou no rumo do nariz. Volto quando me der na telha.

Nem à Noêmia em avisei.

Agora, deitado aqui nesta cama, um anônimo, me dou conta de que fracassei.

Não tenho futuro na minha cidade. Minha família acabou. Os filhos estão criados, se não estão formado, de alguma forma se sairão bem, tenho certeza. Continuar com o consultório será idiotice, a clientela já era.

Ouço o marulho das ondas desmanchando-se na praia. Uma brisa agita as cortinas da janela. Ouço gritos de alegria, de pessoas brincando, vindos de longe.

E ficou me lembrando de casos de pessoas que fugiram da civilização para viver solitárias e desconhecidas, nessas pequenas vilas que polvilham o remoto litoral da Bahia.

Pensei: Por que não eu?

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 4 de abril de 2011

Conto # 661 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 23/02/2015
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