O dia em que o telefone não tocou

Todos os dias meu tio contava a mesma história do seu trabalho maçante e nas suas aventuras com a dança. Todos os dias ele usava o mesmo tom de voz, os mesmos personagens e o mesmo casaco. Todos os dias errava meu nome, todos os dias comia a mesma comida e chorava ao entardecer. Mas aquele dia foi diferente. Ao chegar vi que ele já estava acordado olhando fixamente um dos diversos quadros daquela parede. Esse quadro era diferente. Um jovem vistoso abraçava uma belíssima moça de cabelo ouriçado, olhar penetrante, sorriso marcante e uma doçura sublime que me prendeu ao quadro que nunca havia chamado minha atenção. Ainda assim, não pude entender por que o velho Gabriel Eitor continuava a observar a antiga foto. De repente ele se virou seguiu em direção a sua poltrona e logo balbuciou:

_Minhas velhas mãos enrugadas e minha face quase sombria nada mais são que o resultado de cinquenta e nove anos de sofrimento. Aos oitenta anos de idade eu quase não tenho nada; tenho uma casa digna de classe média, um carro velho que não posso mais dirigir, alguns discos do bom e velho rock e um sobrinho que cuida de mim como filho. Quando a ingratidão enche meu peito, me jogo nessa velha poltrona e viajo nas lembranças que os dois quadros trazem consigo. - O primeiro quadro era o que prendera a atenção do tio Gabriel, os belos jovens que deixavam o amor esvair pelos seus olhos, no segundo uma bela bailarina encantava a quem dirigia seu olhar para ela, a foto era tão realista que eu quase via o quadro se quebrar e a bailarina saltar e dançar pela sala. – Belas fotos você não acha?

Eu ainda estava estonteado com a beleza da jovem então apenas assenti com a cabeça.

_ Ele se chamava Sara.

_Espere, não são apenas quadros? Você sabe quem é a bailarina?

O Silêncio propagou-se pela sala enquanto eu olhava meu tio da forma mas especulativa possível. Ele comprimiu os lábios como quem sentia pesar nisso e vi uma tímida lágrima rolar dos seus olhos e eu não hesitei em perguntar:

_ Esse rapaz é você não é?

_Para o azar da jovem sim, esse sou eu.

_ Cara! Você teve sorte e bom gosto hein?

Enquanto eu tentava fazê-lo sorrir ele arqueou as sobrancelhas com desdém, tateou seu rosto enrugado, olhou para o céu e gritou tão alto como eu nunca o havia visto gritar.

_ A CULPA FOI MINHA E POR QUE VOCÊ DEIXOU? ELA TE AMAVA TANTO!

_ Tio, Deus sempre tem o bom motivo para tudo. Se ela não ficou com você deve ter sido o melhor para os dois.

_Otávio, talvez você nunca entenda mas esse seu velho tio já viu de tudo. Já viveu de tudo. E eu com toda vida jamais seria egoísta ao ponto de reclamar por saber que ela me deixou por livre e espontânea vontade.

_ A obrigaram ir tio?

_ Você quer mesmo ouvir essa história Otávio?

_Faço questão!

_ Se meus pais estivessem aqui no meu lugar diriam que um homem de trinta e cinco anos devia ter mais o que fazer, mas como não sou nego desempenhar o papel de tais. Sente-se por favor!

Eu me sentei como uma criança curiosa que se prepara para ouvir uma história a final de contas não é sempre que se vê um velhinho de oitenta anos com pique para rever o passado e conta-lo com riqueza de detalhes.

_Eu era um jovem imaturo - continuou ele – Pronto para curtir a vida, aos dezenove anos tinha sonhos inalcançáveis para o pequeno campo de visão da minha família. “Você tem que estudar serviço social.”, “Medicina é um bom curso”, “Não temos nenhum advogado na família”. E esse era o discurso torto e egoísta de todos ao meu redor. Comecei então a cursar Economia. Me tornei mais um estudante por status, mais um que quer apenas um diploma para enfeitar a parede da sala, mais um amargurado que vagueia pelos corredores daquela universidade. Fui então aprendendo uma profissão na qual não precisava usar o colam justo e afeminado como dizia minha mãe. Meu outro hobby era cozinhar, quem sabe um dia ser um grande chef de cozinha! Mas isso era impossível vivendo com meus pais, eles nunca aceitariam que eu o filho criado para ser “alguém” na vida escolhesse uma profissão que o tornaria rico e renomado, isso jamais. Então, depois de dois anos de curso aconteceu algo que mudou o rumo da minha vida... Mesmo com as proibições dos meus pais eu fazia ballet nas horas vagas. Naquela semana em especial eu observava as calouras do meu curso. Todas simplesmente lindas, cada uma com sua particularidade, mas uma, uma me fez tremer, suar frio e sentir medo de arriscar. Naquela noite eu havia chegado mais cedo a universidade para esvair um pouco. Acadêmicos iam e vinham e de repente uma jovem apareceu correndo nas escadarias seu cabelo tapava quase toda a sua visão, então inevitavelmente ela escorregou numa poça de água que ninguém se importou em enxugar e caiu. Eu não sei bem se me assustei ou sei queria rir mas fiquei sem reação quando vi as sapatilhas de balé caírem no chão. Rapidamente fui ajuda-la e peguei suas sapatilhas do chão. Ela me olhou como um criminoso olha para um delegado mas não se intimidou, segurou as sapatilhas e disse:

_Muito obrigado mas preciso ir, não posso me atrasar pra aula de cálculo.

_A bailarina tem um nome?

_Sara... muito obrigado! Foi legal da sua parte veterano!

Aquele sorriso torto, doce e controlador me deixara extasiado. Uma bailarina! Uma linda bailarina! Segui para a aula de filosofia mas naquele dia em especial eu estava menos pé no chão que qualquer filósofo. Mal fomos liberados e eu num estalo me coloquei a postos no portão abaixo da escadaria para esperar a bailarina passar. E lá vinha ela, só naquele instante eu percebi que ela usava um lindo vestido branco e meias de balé. Ela vinha distraída quando eu a puxei pelo braço e a deixei irritada.

_Me solte seu idiota!

_Calma bailarina, não quero te machucar.

_Você? Me largue agora!

_Tudo bem Sara! Mas será que pode me dizer onde você faz balé? Estou procurando um lugar pra fazer!

_Corta essa, sei que você não quer saber de balé, garotos como você não fazem balé!

_Quer que eu te prove? Vem comigo!

Ainda contrariada ela me seguiu até a parte mais inóspita do campus, ali eu abri minha mochila, troquei os sapatos e comecei a dançar, era difícil dançar sobre o concreto mas ela pôde perceber que eu não mentia quando dizia gostar do bom e velho balé.

_Você ainda é desajeitado mas provou que sabe dançar! Mas, o bailarino tem nome?

_Gabriel Eitor, prazer!

_Prazer, Sara Muniz!

CONTINUA.....

Jhullie Silva
Enviado por Jhullie Silva em 22/02/2015
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