659-O CASAMENTO DE DOMINGOS TROPEIRO -Amor no sertão

O caminho que a tropa seguia estava difícil. As pesadas chuvas de março, que encerravam o verão e provocavam as “enchentes das goiabas” enchia os córregos, riachos e rios. As nuvens gordas de água, baixas e sinistras, escondiam o topo do Morro da Mesa, que servia de marco a indicar a direção da próxima parada.

A tropa havia saído de Mococa há quase uma semana. O percurso que normalmente demandava quatro dias era marcado por uma série de dificuldades.

Mas dono, Domingos Expedito, conhecido como Domingos Tropeiro, não se intimidava. Não forçava nem os animais nem seus ajudantes.

— Não adianta querer mudar as coisas. Agora é o tempo das chuvas, e a gente tem de respeitar a Natureza.

Alto, magro, aos trinta anos ele já trazia esculpidas na face as marcas das intempéries, do sol, do calor e do frio, que enfrentava nas suas idas e vindas, guiando a tropa da qual tirava o sustento e, como dizia, “ganhava a vida”.

Era determinado, condição para conseguir viver de modo tão árduo. Nada o desanimava, não via empecilho em coisa alguma. Bom negociante, ia amealhando os lucros de cada viagem, prometendo a si mesmo:

É só mais alguns anos e compro umas terras e me estabeleço.

Havia anos que fazia o mesmo percurso: Mococa, Ribeirão Preto, Barretos, Rio Preto. Fazia uma volta, passando por Guaxupé, São Sebastião e Passos, a fim de atravessar o rio Grande no local conhecido por Furnas, onde o rio se espraiava e a correnteza amansava.

Fazia parte do negócio de tropeiro o atendimento de certas encomendas e o comércio nas diversas paragens. A tropa saía de Mococa carregada de ferramentas para lavoura, sal, querosene; artigos para a cozinha e miudezas para costureiras. Ao longo do caminho, ia vendendo e comprando, de tal forma que ao chegar a Rio Preto, no noroeste de São Paulo, a carga era totalmente outra: fumo em corda, cereais, farinha de milho e mandioca, produtos da terra que iam abastecer as cidades.

– Vamo, gente! Vamos chegar até Guardinha antes do anoitecer.

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A tropa: 30 burros escolhidas pelo próprio seu Domingos. A cada viagem, separava dois ou três para serem substituídos.

— Não adianta andar com animal cansado ou estropiado, dizia ele. — Atrasa o resto da tropa. Os animais têm de andar tudo no mesmo trote.

À frente ia a madrinha, cincerro no pescoço, uma égua adestrada, que já estava há muito tempo na tropa. Ia sem carga nem arreios, era a guia para orientar os demais animais. Era tão adestrada que conseguia até abrir porteiras, esfregando o focinho nas rústicas tranquetas de madeira.

Assim como a tropa era selecionada, com animais de resistência, assim eram os arreios da animalada. Tudo feito em couro macio, para não causar atrito nos lombos, as bruacas carregadas com equilíbrio, não fosse uma pesar mais e forçar o animal de um lado.

Nas paradas em São Sebastião, demorava um dia além do necessário. A família – pais, muito irmãos e irmãs — moravam num sítio bem próximo à cidade. Domingos se dava ao luxo de soltar a tropa no pasto, os companheiros folgando pela cidade.

Após fazer os negócios de praxe, vender o que trazia e comprar rapadura, carne seca e feijão preto (feijão novo, das águas), ficava em longa conversas com o pai.

— Tá na hora de você assentar a vida, filho. Isto não é vida, esse sacrifício por esse mundão de Deus.

— Tô juntando meu dinheirinho, pai. Só mais uns cinco anos e venho morar aqui.

— O que você tem num dá pra comprar um sítio?

— Quero comprar uma fazenda, pai. E quero coisa boa. Terra de primeira, nada de macega ou pasto de barba-de-bode.

No dia seguinte, botava a tropa no caminho de novo. Indo ou vindo, a rotina era sempre a mesma.

Até que resolveu parar, se estabelecer. Com as economias de mais de dez anos gastos na vida de tropeiro, resolveu fazer o que se prometia, e ao pai: comprar uma propriedade rural.

A escolha recaiu num trato de terra que se estendia a oeste da pequena cidade de São Sebastião do Paraíso. Cerca de trinta alqueires, o que não era muito, mas estava bem próxima à cidade.

Domingos Expedito, cujo apelido de Tropeiro o acompanharia pelo resto da vida, era um proprietário diferente. Gostava de plantar de tudo um pouco: além de arroz, feijão e milho, plantou mandioca, cana, fumo e hortaliças. De tudo tirava lucro: da mandioca, fazia farinha. Do fumo fazia rolos de fumo em corda, de cuja técnica de fabricação, complicada e merecedora de muitos cuidados, era especialista.

— Agora, só falta casar. — Dizia a mãe.

Domingos não era muito afeito a esse assunto. Mas havia a filha do Compadre Teodorico, Rosa, bela, moça conhecida de Domingos e cujo casamento faria gosto não só da mãe como às duas famílias.

Um dia, Domingos resolveu que iria, sim, se casar.

— Vou até a fazenda de seu Teodorico, pedir a mão da Rosa.

Arriou o Fumaça, um elegante tordilho, e trajando roupa domingueira, lá se foi Domingos.

A fazenda do pai de Teodorico, pai de Rosa, ficava além do rio Liso. Ao chegar ao rio, após meia hora de caminhada, Domingos apeou, deixando que o cavalo bebesse água e pastasse um pouco pela margem do rio.

Algumas mulheres lavavam roupa nas margens, usando as pedras para “bater” a roupa e a grama rasteira para quarar. Domingos, que era bom de conversa, aproximou-se das mulheres e puxou prosa.

Dentre elas, uma chamou a atenção de Domingos, e logo em seguida, dela se engraçou.

— Como você se chama?

— Eu sou Mariana.

— E as outras duas?

— Estas duas são minhas irmãs Jandira e Rosália.

— Vocês moram por perto?

— Sim, nosso sítio fica logo ali, atrás daquele cafezal.

A conversa se estendeu de tal forma que Domingos foi convidado para chegar até a casa do sítio. Em lá chegando, notou a extrema simplicidade da família: o pai, Claudionor (“Pode me chamar de Nono”, ele disse), a mãe, dona Maria das Dores e as moças. Aquilo tudo, mais a beleza de Mariana, impressionaram Domingos.

— Estou aqui de passagem. Vou até a fazenda do Seu Teodorico. Vocês conhecem?

— Sim, disse o pai das moças. — Até trabalho pra ele, em empreitadas.

Armando de uma coragem que ele próprio não conhecia, Domingos disse ao pai:

— Sabe, sou solteiro e estou procurando uma moça para me casar. Gostei da sua filha Mariana. Ela já tem compromisso com alguém?

Todos se surpreenderam com a rudeza de Domingos. Mas o pai respondeu à altura:

— Compromisso, ela não tem.Mas também não está assim para servir a qualquer aventureiro.

Domingos não se aborreceu com a sinceridade do homem.

— Pois então, meu pedido está feito. Se for do agrado de Mariana, claro.

Em seguida, deu as informações que achou necessárias para que eles o conhecessem, terminando:

— Por favor, podem perguntar na cidade quem sou. E convido todos para uma visita aos meus pais e ao meu sítio.

Dito isto, despediu-se com todo o respeito dos pais e das irmãs de Mariana.

Quanto à moça eleita de seu coração, estava ruborizada e encabulada quando dela se despediu.

Voltou dali mesmo, pois a missão de encontrar uma noiva já estava cumprida.

Ao chegar à casa dos pais, Domingos explicou-lhes, da melhor forma que pôde, a mudança de idéia, o pedido e o convite.

No domingo seguinte, apenas Claudionor, o pai de Mariana, visitou os pais de Domingos. Uma visita longa, que durou toda a tarde e na qual tudo ficou acertado.

Três meses depois, Domingos Expedito, ainda chamado de Domingos Tropeiro, e Maria casaram-se na Igreja Matriz de São Sebastião.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 19 de março de 2011

Conto # 659 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 21/02/2015
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