Pequeno conto de paixão e dor
Há dois anos não se viam, não havia nenhuma forma de contato, o pacto silencioso entre Savana e Miguel estava chegando ao fim, era o momento de voltar, reavivar a relação, a saudade era grande, a necessidade de estar junto tirava-lhe o sono, sabia que Miguel devia estar sentindo a mesma carência. Não seria um "amargo regresso", afinal, afastaram-se aos poucos, sem brigas, sem discussões, precisavam daquele tempo. Savana não podia sentir-se presa, quando o amor se intensificava, ela ficava amuada, deprimida, sufocada, sentia uma forma sutil de dominação, tinha ganas de liberdade. Andava pensando em Miguel constantemente, mentalmente, sentía-se confusa, queria tê-lo e, ao mesmo tempo, precisava ser só, sentia falta de Miguel, ele precisava voltar, estar perto, dormir junto, trabalhar nos projetos. Seguidamente perdia o sono e ficava na rede, na varanda, via o sol nascer muitas vezes, de amanhã, mal tomava o café, dormia o resto do dia, não tinha vontade de pintar, de retornar ao voluntariado, sabia, no íntimo, que era a saudade de Miguel que estava voltando e que ele também devia estar com o mesmo sentimento. Sempre que havia esta separação, o reencontro era intenso, amavam-se loucamente, a qualquer hora do dia ou da noite, nos locais mais inusitados.
Os anos de terapia não libertaram Savana do desejo de liberdade, da procura constante pela solidão, isto já era parte da sua personalidade, estava arraigado no seu íntimo, talvez, por egoísmo, mas ela tinha consciência que não ia mudar. Sua intuição dizia que Miguel logo estaria de volta, sem muito esforço, via-o chegando no "pier", queimado de sol, o cabelo meio desgrenhado, a roupa surrada, a bagagem era sempre a mesma, a mochila de lona camuflada, presente de um sertanista do Acre, Miguel utilizava a Força Aérea para viagens longas e sempre vinha para a ilha no barco da guarda costeira. Miguel, o tuaregue, o pioneiro descobridor de todas as terras, cria, desde os 18 anos dos irmãos Villas Boas. Só de pensar que ele poderia chegar, Savana ficava excitada, queria saber por onde ele andara, as coisas que fez, na verdade, ela só queria saber das coisas do amor, da saudade do corpo queimado de sol, das mãos ásperas, da voz rouca que a fazia tremer. Savana desejou que ele estivesse ali com ela, desejava tocar seus olhos, sua boca, seu cabelo, ficar deitada na rede, sobre ele, até adormecer.
O contato com o professor foi rareando, ela passava meses sem vê-lo, recusava convites, temia se apegar demais a ele, se apaixonar, preferia a forma de paixão mais volátil, descomprometida, amava Miguel. Para Savana, o professor representava pouco mais que uma figura amiga, mesmo sendo ele um homem sedutor e apaixonante. Tinham os mesmos interesses, amizades, ele também amava a arte, mas ela resolveu afasta-se, preferia ter as memórias da adolescência, na universidade, das tardes loucas e furtivas no atelier, quando se entregava sem limites.
Chovia sobre a ilha, o mar estava agitado, fazia muito frio, ela estava enrolada na coberta, o lugar mais aconchegante era o sofá, sentia a presença de Miguel, as noites que nem iam para a cama. Savana ligou a televisão, detestava novelas, salvo alguns noticiários, não assistia a mais nada, o próprio telefone ficava desligado a maior parte do tempo, estava quase desconectada do mundo. Levantou para fechar a janela que batia e sentiu a chuva gelada no rosto, para tentar se aquecer, tomou o resto de conhaque que encontrou na despensa, não estava acostumada com bebidas alcoólicas, o líquido desceu queimando e logo ela sentiu um calor agradável subindo pelas pernas, o corpo amolecido, a cabeça rodando lentamente.
Era o último noticiário, meio sonolenta, ouviu o apresentador mencionar o naufrágio. Por um momento, tentou organizar as ideias, não estava sonhando, ficou preocupada com as notícias. O cão latiu anunciando que havia gente no portão, saiu enrolada na coberta, era um dos freis do seminário, sentiu que alguma coisa muito séria estava acontecendo. O frei estava molhado, tentava manter a calma, mas Savana via em seus olhos que se tratava de algo grave. Na cozinha, frei Homero contou que o naufrágio ocorreu a caminho do pier, o barco naufragou e duas pessoas morreram, não sabia ao certo se Miguel seria um deles. Savana segurou-se na cadeira, achou que ia cair. O naufrágio, segundo o frei, ocorreu no sul da ilha durante uma forte tempestade.
Miguel estava em coma, perdera muito sangue, tinha um ferimento na testa e tinha com o rosto bastante machucado, estava ligado a aparelhos, respirava com dificuldade. Ela dormia na cadeira ao lado da cama do CTI, segurava a mão dele, rezava para que ele vivesse, era cedo para Miguel partir, quantas coisas tinham para construir, e todas as noites de amor...Era madrugada, Savana sentiu um leve aperto na mão, ele balbuciou algumas sílabas e tocou os cabelos dela, ficou deitada sobre o peito dele até que o sol nasceu.
Percorreram a costa caminhando devagar, ela alimentava as gaivotas com migalhas de pão, alguns cardumes de tainhas se exibiam no mar tranquilo, ali seria, finalmente, o seu porto seguro. Se amaram na areia morna, até o nascer da primeira estrela.
Beijo a todos!