O Meu Pequeno Vira-Latas
O amor é contrário a si mesmo, disse o poeta. Talvez ele quisesse se referir à paixão, essa sim, é dor que desatina sem doer. O amor não. É puro, desinteressado e liberta, ao invés de escravizar. Eu sei disso, porque um dia me foi dirigido um amor desinteressado, e eu jamais me esquecerei disso.
Tudo começou numa tarde nublada e fria quando, a chuva veio serenando por sobre a minha cabeça, e eu corria com uma caixa de sapatos debaixo dos braços. Dentro, havia um pequenino e frágil ser de quatro patas e fuça grande, a quem dei o nome de Peludo. É uma longa e verdadeira história sobre amizade e companheirismo, que ninguém que lê vai acreditar, mas que todos aqueles que me conhecem poderão identificar de pronto, cada linha e cada palavra. A história é longa e começa oito anos antes, quando um outro cãozinho compartilhou comigo a vida, e cujo nome era Felpudo:
Durante oito anos de minha maravilhosa infância, Felpudo dividiu com aquele menino os melhores momentos que se pode desfrutar nessa vida. E só aqueles que amam os cães entenderão, quando digo que os melhores momentos dessa vida devem ser desfrutados ao lado deles. Outros torcerão a cara, mas a vida é assim.
Fui a prova irrefutável da dedicação, paciência, felicidade e simplicidade de uma criatura viva. Onde bastavam apenas um olhar dirigido, um sorriso, um aceno, uma voz para fazer vibrar a alma de tal ser até a sua essência mais profunda, estilhaçando-a em felicidade e satisfação que eu jamais poderia proporcionar de propósito ou mesmo compreender.
Por anos tão agradáveis que só Deus poderia entender, esse cãozinho virou a minha vida de pernas pro ar: Ele comeu o sofá, comeu o colchão, fazia as suas necessidades em lugares impróprios, tirou-me noites de sono, inflou-me de responsabilidades mil, foi motivo de setenta por centos de todos os xingamentos e correiadas que levei naquela época, e também foi o responsável, isso não posso deixar de escrever, de cem por cento de todos os olhares doces que recebi naquela até então, e que me atingiam de tal forma que me transportavam para um outro lugar, muito melhor e distante daqui. Não há nada melhor que um cão.
Um dia então, ele se foi. Tentei de tudo o que eu podia, mas não vem ao caso aqui. Jurei que jamais teria outro cachorro! E fui firme em minha decisão por um bom tempo. Até que um dia, "numa tarde nublada e fria, quando a chuva veio serenando por sobre a minha cabeça"... Apaixonei-me por um pequeno filhote que a minha noiva na época, mandou eu ir ver com a colega dela. Eu não iria trazê-lo, mas fui vencido quando ela abriu a caixa de sapatos e o meu coração caiu lá dentro juntamente com o meu juramento.
Lá estava ele... tão grande quanto um punho, dormindo naquela tarde fria, despreocupado com o mundo aqui fora, como se nada fosse com ele, só o meu amor. O meu Felpudo era um vira-latas médio, marrom e da boquinha preta. Aquela criaturinha dentro da caixa era cinza, das patas brancas. E o fato de não me lembrar em nada o meu antigo amigo, me ajudou a trazê-lo. E então veio, Peludo - em homenagem a Felpudo - sei que entenderão.
Eu fui sabiamente enganado, porque três meses depois, inexplicavelmente, o danado mudou de cor! Ele se tornou, pasmem! Marrom e da boca preta, a figura cuspida e escarrada do anterior, com exceção das patas brancas. Pessoas chegavam em casa e diziam: "Ué, esse cachorro não tinha morrido?!" Eu sempre brincava com a minha noiva - hoje esposa - que era o Felpudo que havia ido dar umas voltinhas nas nuvens e voltado! Sempre falava isso. Porque era exatamente o que parecia com aquelas manchas brancas feito meias nas patinhas.
E pra variar, esse pequeno amigo transformou a minha vida, nos 6 anos seguintes num doce inferno. Não aceitava coleira, não gostava de tomar banho, pulava a janela do meu quarto sobre a minha cabeça, de dia e de madrugada. Na chuva entrava em casa correndo, sujando tudo de barro. Comeu o sofá, o travesseiro. Foi motivo de eu correr pela rua atrás dele, por mais de uma dezena de vezes. Às vezes, arranhava a parede do meu quarto debaixo da janela a noite inteira, tentando entrar. As marcas de suas pequenas unhas ainda estão lá. Achei que o meu antigo amigo havia voltado, como eu havia pedido a Deus. E eu pedi e ainda acho isso...
Mas ele se foi também há poucos anos, assim como o outro. Foi um Avc canino, nada pude fazer por ele. Mas agora ele está bem. Tive o privilégios de estar com ele por 6 anos, e eu o amava, ainda o amo, como um ser humano pode amar um cão.
Uma noite acordei com um barulho de arranhado do lado de fora, embaixo da minha janela, idêntico ao que ele fazia quando entre nós no mundo físico. Não me assustei. Lembrei-me dele com carinho e voltei a dormir. Na manhã seguinte, minha irmãzinha de 6 anos veio até o meu quarto, e disse ter sonhado comigo. Eu perguntei que sonho era. Ela me respondeu, com um sorriso, que sonhara que o Peludo pulara a minha janela, como ela muitas vezes presenciou, e riu muito. Deus sabe que conto a verdade. E sabe também que sou grato à oportunidade e confiança que depositou em mim, ao me presentear com um ser tão frágil e amigo. Somou muito à minha vida. Tudo o que eu disse foi real, e essa estória era pra ser só minha, um segredo carinhoso que eu levaria comigo pela vida. Mas lembro que devo ao meu doce amigo canino um tributo. Esse relato fica então, como uma homenagem minha a ele. Um pequeno tributo, diante de todos os que ele prestou a mim, mesmo quando em dias atípicos, eu esqueci de pôr água pra ele, ou colocar seu almoço.
É muito pouco, frente a tudo o que ele fez por mim. Tanto o Peludo, quanto o Felpudo.
Que nunca esqueçamos que devemos amar e respeitar os animais, eu sei que há muito mais neles do que os olhos podem ver.
Que não seja tarde demais para enxergarmos isso.