O professor - Pequeno conto de paixão
Era como se amassem em ciclos, tudo muito intenso e depois, calmaria, como se a vida fosse perdendo o gás, a certeza era uma só, depois das tempestades, sempre haveria um recomeço, não conseguiam ficar muito tempo afastados.
O piano ainda estava perto da janela, mas coberto de pó, nenhuma nota inundava a noite, nenhuma ária, até a serraria perdera o encanto. Miguel passava horas olhando o mar, silenciava, Savana notava os sinais de melancolia nos seus gestos, sabia que ele precisava estar só, até a estufa estava abandonada, só resistia às graças de Antonio, o fiel escudeiro, o prestimoso Antonio que sempre os acompanhara. Antonio era cria da casa da família de Miguel, vira-o crescer, era o conselheiro, seu braço-direito, seu confessor. Savana já não se ligava tanto no mar - seu grande amor -, o atelier também ficou de lado, andava afastada do projeto das oficinas, ficava na varanda até a madrugada, melancólica, o olhar sempre voltado para o sul da ilha, precisava voltar, reencontrar o mestre, contar das suas aflições, matar a saudade, quem sabe posar, entregar-se às suas mãos de artista. Lembrou da adolescência, as tardes no atelier, os dias que nem voltava para casa, as eternas brigas com os pais. Se alimentava de arte e paixão. Quando casou, perdeu o contato com o professor, preferiu esquecer que nunca o tinha conhecido, não queria sofrer, mas acompanhava suas andanças pelos jornais, revistas.
Sabia que era no sul da ilha, talvez no Morro das Pedras, provavelmente tivesse notícias dele no antigo mosteiro, havia se tornado um ermitão, um outro solitário amigo das artes, doutor em filosofia. Com que idade estaria, ele devia ter uns quarenta quando Savana posou pela primeira vez. Savana era esguia, a pele bronzeada era fresca, o ventre quase inexistente, os cabelos eram cascatas de mechas douradas, seios eram muito pequenos, quase inexistentes, as pernas eram esguias, tinha o corpo de uma bailarina. Ele era alto, tinha mãos grandes, fios brancos já riscavam o cabelo preto sempre em desalinho. Tinha costas de nadador, ombros largos, pernas fortes como colunas gregas, era um homem bonito, tinha o silêncio e o mistério dos artistas. Savana sempre se apaixonara por homems mais velhos, mais sábios, de carater forte, intelectuais.
Antonio deixou-a na estrada, mesmo contra vontade, Savana faria sozinha a incursão, estava tensa, queria poder pensar, avaliar o inusitado encontro. Não sabia de Miguel, nem queria saber por onde ele andava. Por algum tempo ficou observando o mar, as pedras, imaginou os naufrágios na fúria do mar, as invasões, quantas pessoas deviam ter sumido nas pedras. Teve vontade de deitar ali, dormir ao sol, acordar com o professor por perto segurando a sua mão. Savana não sabia quem iria encontrar, ele estaria bem mais velho, cabelos totalmente brancos, estaria lúcido? o que teria feito da arte, será que ainda dava aulas no mosteiro? Ficou excitada ao lembrar as intermináveis noites no sótão, o corpo manchado de tinta, seus corpos sobre o tapete, as noites não tinham fim, despertava sempre com o café que ele fazia com gosto, e perdiam-se de paixão até que a manhã chegasse.
Subiu os degraus com certa dificuldade, eram de pedras, muito rústico, areia, óleo de baleia, restos de conchas, seu corpo não era mais aquele de bailarina, ganhara quadris e seios fartos, o corpo de menina ficou lá atrás, mas ainda guardava traços de beleza. Quantas histórias a escadaria teria inscrustada em suas pedras, o refúgio dos monges, as jovens grávidas que eram abandonadas pelas famílias mais nobres, as histórias tristes dos escravos, as pedras tinham, também, suas marcas. A pesada porta de madeira fora aberta por um monge de idade avançada, foi convidada a entrar, não sabia ao certo como introduzir a pergunta, mas o frei mostrou-se cordial, falou sobre a história da construção, sobre fatos ocorridos no período das guerras, das revoluções, da ditadura nos anos 70. Savana estava impressionada com as narrativas, pediu para escrever sobre a história do mosteiro, mas não teve resposta, o assunto era bastante complicado, o mosteiro guardava segredos e questões éticas sobre os moradores, mas o frei não lhe tirou as esperanças, garantiu que poderia escrever, mas os originais passariam por rigorosa censura, caso ela aceitasse a imposição.
O professor chegou ao mosteiro por volta dos anos 70, refugiado dos anos de repressão, foi acolhido por ser um intelectual, um filósofo, um artista plástico, tudo o que a repressão perseguia; mentes brilhantes. Esteve recolhido por muito tempo e partiu, mudou para um canto da ilha, vivia só num pequeno sítio. O frei, gentilmente, passou-lhe o endereço, o coração de Savana quase saltava pela boca, a cabeça estava confusa, tinha receio de vê-lo e os sentimentos aflorarem. Lembrou da intensidade do amor que faziam, era bem mais jovem, com ele descobriu todos os mistérios do sexo, da paixão, as fantasias mais absurdas. Na lagoa pegou o pequeno barco e seguiu sua procura. O mar estava de um azul especial, fazia pequenas marolas, sentiu-se enjoada, estava tensa e excitada. Miguel já devia estar voando, confins do Babanal, Sul da Bahia, amava os pataxós, assim como ela, ele precisava desta liberdade. Miguel, no meio dos índios, virava criança, se despojava de todo saber, vivia num estilo quase primata, era feliz.
A casa era muito simples, quiosques, um canto zen, um caminho de pedras que levava a um carramanchão de buganvilhas, uma roda de água se lançava um pequeno lago com peixes, a casa era simples, estilo açoriano, caiada de branco. Ele dormia na rede, Savana ficou observando aquele homem que a fez desperar para a vida, ele dormia um sono sereno. Pouco mudara, o cabelo estava todo branco, mas a pele morena guardava sinais do que ele fora, um homem bonito, terno e carismático. Na varanda que circundava a casa havia lindos objetos trazidos de várias partes do mundo, era um pequeno museu antropológico a céu aberto. No chão, ao lado da rede, a garrafa de vinho, um livro e um copo jogado na areia. Savana pensou em sair, ir embora, fazer de conta que nunca estivera ali.
O cão latiu impediando-a de sair. Ele já havia levantado, não se falaram, não precisavam palavras, seus olhares se encontraram, ele estendeu a mão e Savana se aproximou, ele não abriu os olhos, tateou os cabelos de Savana, o rosto, se deteve nos olhos, na boca, tocou-lhe, pescoço, os ombros, os seios, puxo-a para si. Nenhuma palavra, só gestos, faltava ar, faltavam palavras. Naquela e em muitas outras noites, Savana não voltou para casa.
Beijo a todos!