645-SEQUESTRO POR AMOR-Politica, traição e...amor?

— Olhai, palhaço! Estamos com sua mulher! Olha no celular!

A voz era esganiçada, feminina, sem dúvida, mas disfarçada por um lenço ou coisa parecida.

O deputado olhou para a telinha do celular. O que viu o deixou assustado. Puta merda, é a Soninha mesmo! Ela foi sequestrada!

Soninha, sua adorada mulher, apareceu em primeiro plano, amordaçada, um olho arroxeado, e em seguida, a câmara se distanciou para mostrá-la sentada no chão, encostada à parede de um cômodo que parecia ser pequeno e imundo. As mãos e os pés amarrados e a blusa aparentemente rasgada. A estreita saia subia-lhe muito acima das coxas exuberantes também manchadas. Poderiam ser tanto machucaduras como hematomas. No ombro, era visível a tatuagem de um raio ou corisco.

— Presta atenção! Prepara cinco milhões. Não chama a policia ou ela morre!

Um clique deu por encerrada a ligação.

Um turbilhão de pensamentos desencontrados passou pela cabeça de Mauro Tambaú, mais conhecido pelo apelido de “Corisco”. Herança de seus tempos de artista de circo.

Palhaço! Eles vão ver quem é o palhaço. Cinco milhões. Quem eles pensam que eu sou? Já deixei, já cansei de ser palhaço, não vou pagar filha da puta nenhum que sequestrou minha mulher.

Sem pensar duas vezes, digitou um número que só pessoas influentes em Brasília sabiam: um número especial da Policia Federal.

— Que é desta vez, Corisco?

A voz familiar e o tom da pergunta denotavam a intimidade entre o deputado e quem respondia ao chamado.

— Doutor Talarico, tou precisando de ajuda total. Minha mulher foi sequestrada. Recebi a mensagem agora, pelo celular.

— Me espere ai na sua casa, dentro de uns vinte minutos estarei aí. — respondeu o Chefe da Seção de Sequestros da Policia Federal, Dr. Talarico Mendes.

Enquanto aguardava a chegada do Dr. Talarico, Mauro Corisco passou em revista os últimos passos de Soninha.

Ela havia saído de casa pelas duas da tarde, ele estava ainda meio zonzo do cochilo que costumava dar todas as tardes. Ele não teve disposição de indagar aonde ela ia. A comunicação pelo celular (cujo número lhe era desconhecido) acontecera há poucos minutos e o relógio marcava seis e trinta. O sol ainda estava alto, devido ao horário de verão e às tardes compridas de Brasília. Foi à garagem: o carro dela, obviamente, não estava lá. Em Brasília ninguém vai a lugar nenhum sem um carro.

Casados há sete anos, Soninha era mais moça quase trinta anos que ele, que andava na casa dos sessenta e poucos. Era linda, havia concorrido a concurso de miss em sua cidade, e conservava o mesmo frescor de há dez anos, quando se conheceram. Não tinham filhos, pois ela não queria desmanchar as linhas elegantes de seu corpo esguio. Vivam bem na grande mansão que ele adquirira logo depois de eleito, de uma empresa telefônica, que o ajudara na campanha e à qual ele dedicava atenção, quando algum projeto de lei, tratando de tele-comunicações e telefonia, passava pela Câmara: sempre ajudou a telefônica no que podia, e não se arrependia.

Claro que podia pagar o resgate. Mas... peraí... o dinheiro não lhe aparecera em nenhuma árvore, nem crescera como a grama do jardim. Custara-lhe muito esforço, intermediações, conversas ao pé do ouvido, e por vezes, até ameaças. Não, esses pés-de-chinelo não iam ver a cor de seu dinheiro, isso não. Além do mais, me chamaram de palhaço. Palhaço é a puta que os pariu... Eles vão ver só com quem tão tratando.

A amizade ou o compromisso político entre Talarico e Corisco agilizou o mecanismo policial. O chefe policial chegou acompanhado de dois outros homens metidos no que se pode chamar de uniforme do departamento: terno preto, camisa branca, gravata lisa, sapatos pretos e o volume da arma pouco disfarçado ao lado esquerdo do peito, sob o braço. Cabelos curtos e óculos escuros, do tipo Ray-ban.

Após uma serie de perguntas incisivas, Talarico fez alguns contatos pelo seu celular e acionou todo o dispositivo policial no sentido de resgatar a mulher do deputado Mauro Corisco.

— De qualquer modo, prepare o dinheiro, os cinco milhões. Provavelmente os sequestradores irão dar instruções à noite, para o resgate. Costumam exigir que o pagamento seja feito de madrugada.

— Como? De que jeito vou sacar cinco milhões agora?

— Bem, é melhor ficar preparado. Se não descobrirmos o esconderijo antes da hora marcada para o pagamento, você terá de entregar o dinheiro... e depois nós o obteremos de volta, não se preocupe.

Corisco batalhou durante muitas horas, conversando com pessoas que, ele sabia, mantinham altas somas de dinheiro em casa. Mas até as duas da manhã só conseguira três milhões.

Foi um esforço inútil. Os bandidos nunca exigiriam o pagamento, pois a mulher de Corisco foi encontrada exatamente às três horas e quarenta minutos da madrugada quente e seca, como são as madrugadas de Brasília.

Ela estava num casebre no meio de um mato cerrado, ao qual a polícia chegou seguindo as pistas deixadas por Norma ao longo da tarde, bem como ao dispositivo eletrônico antifurto, que denunciava exatamente onde um carro extraviado se encontrava.

Ao lado da tapera, o carro de Sônia era uma coisa fora do lugar. Os policiais chegaram com cautela, gritaram comandos de ordem e de prisão. Mas um silêncio profundo e sinistro envolvia tudo.

Avançaram, armas em punho, como se vê nos filmes policiais. Novos gritos, nada de respostas. Um deles deu um pontapé na porta, outro entrou repentinamente. Pelos fundos, outros dois também entraram no casebre. Encontraram-se num cômodo que era ao mesmo tempo sala, cozinha, e dispensa. O local, iluminado pelas poderosas lanternas de mão, mostrava miséria e abandono.

Havia uma porta fechada. Novos pontapés, nova entrada. No chão, viram Soninha, que fechou os olhos quando a luz das lanternas bateu em seu rosto.

Rapidamente, tiraram a fita plástica de sua boca e ela deu um gritinho histérico. Desamarrada, foi carregada no colo para a ambulância que estava há uns duzentos metros do local.

— Corisco, encontramos sua mulher. — Foi a primeira mensagem de Talarico ao deputado. Estamos levando-a para o Hospital de Base, para uma avaliação.

Os policiais fizeram uma varredura no local e nada encontraram de suspeito ou que pudesse dar uma pista dos sequestradores, que, parecia, haviam fugido.

A caminho do hospital, acompanhando a ambulância, Talarico ia pensando em como aquele sequestro tinha sido mal planejado. O carro de Sonia, estacionado ao lado do casebre, era um descuido total dos sequestradores. Além do que, as cordas que amarravam os pés e as mãos de Sonia estavam frouxas, praticamente soltas.

Coisa de bandido sem experiência. Logo estarão presos. E com aquelas cordinhas mal amarradas... ela só não fugiu porque não quis.

Na manhã seguinte, atendeu no celular o chamado de Corisco.

— Talarico... Precisamos conversar. Você pode vir até minha casa?

Talarico foi, na esperança de interrogar Sônia e obter pistas, descrições dos sequestradores, qualquer coisa que ajudasse nas investigações.

Ela estava sentada à beira da piscina, uma taça de bebida à mão, e muito à vontade. Mauro, ao seu lado, sentado em outra cadeira, parecia aborrecido.

— Não sei como dizer isto... — começou dizendo Corisco, quando Talarico também se sentou ao seu lado.

Foi interrompido por Sonia, que numa voz animada e com trejeitos de dondoca que havia feito uma “arte” qualquer, entrou na conversa:

— Foi uma brincadeirinha, delegado! Não houve sequestro nenhum. Eu mesma fiz tudo.

— Como? Não posso acreditar.

Talarico levanta-se e se aproxima da cadeira onde ela está estendida, tomando sol e bebericando a bebida da taça. Olhou-a com um furor indescritível.

— A senhora ta de brincadeira comigo?

— Sinto muito, Talarico... — tentou de novo Corisco.

— Ara, meu bem, não fica assim não. Foi tudo por amor... prá testar seu amor. Queria ver se você pagaria cinco milhões para me resgatar.

Ignorando a presença do Chefe Talarico, os dois se desmancharam em um diálogo meloso. Por fim, Corisco aproximou-se de Sonia e afirmou:

— Sabe, querida, eu não ia pagar resgate nenhum, porque você vale bem mais do que os cinco milhões... Seu amor não tem preço.

Talarico nem seu deu o trabalho de despedir da dupla de inconsequentes. Saiu pisando duro e resmungando coisas que só ele mesmo sabia o que era.

Só por precaução, nada mais do que precaução, o deputado Mauro Tambaú (“Corisco”) contratou um detetive particular.

— Quero que vigie e fotografe minha mulher sempre que ela sair de casa.

Em menos de três meses o detetive tinha um dossiê de Sônia, mostrando que Corisco, além de ex-palhaço e deputado venal ("sou, mas quem não é?"), era portador de um belo e pesado par de chifres.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 11 de janeiro de 2011 –

Conto # 645 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Inspirado em notícia em ISTO É # 2147, de 09.01.2011

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 03/02/2015
Reeditado em 03/02/2015
Código do texto: T5124479
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