Céu laranja ( uma história real de amor )

Num dia destes em que você , paira o olhar e fica distante, pensando na vida e pensando num modo de nunca mais sofrer por alguém , por amor e pela vida, fiquei parado neste devaneio profundo de nossas recordações, e não consegui mais voltar...

Lembrei duma história, mas não me lembro muito bem o ano, que passamos aqueles capítulos de nossas vidas, nós éramos apaixonados e nada nem ninguém conseguiria nos separar, exceto a morte.

Estávamos no quarto nos fundos, passávamos muitas horas lá dentro, namorando e rindo, vivendo nosso tempo, lembro-me de me esconder no banheiro , quando a sua mãe batia nas janelas de manhã, e depois eu voltara pra cama , rindo, me cobrindo e te abraçando até a hora de levantar, que não tínhamos naquela época, alias , não tínhamos responsabilidades nenhuma a não ser um com o outro, de ficar junto , caminhar as ruelas da periferia chutando pedrinhas nas bocas de esgoto, era lindo, era puro, era nos dois.

Ela cabulava a escola de manhã, para me ver na casa de meus pais, falava para a mãe que estava a caminho da escola, quando ela chegava , sempre me acordava com um beijo, e eu sempre preparei o seu café, conversávamos sobre a escola, naquela época eu já abandonara a escola, era preguiçoso demais para estudar, e estava levando Danila, para o mesmo caminho, de vagabundice adolescente. Não tínhamos ainda assumido um compromisso de namoro nem nada parecido, ela não frequentava a casa quando meus pais estavam, e por muitas noites ficávamos na rua, lembro-me que bem no começo , ficávamos na rua de casa, abraçados sem dizer nada, e ela tirava os pelos da minha perna , pelos rasgos da minha calça, como um passatempo, aquilo me doía um pouco, mas nunca reclamei, pois ela me tocara com suas mãos, isso para mim já era muito.

Eu era meio rebelde, estava no movimento punk, gostava de vagar com outros punks, bebericando um pouco, e pintando e customizando roupas, ela parecia adorar aquilo, era fora de seu conhecimento, era um mundo diferente, certo que naquela época ela gostava de rock, mas aquilo era diferente, era espontâneo demais, e muito perigoso, mas como tudo que é perigoso, as meninas adoravam, e ela começou a acompanhar aquilo. Fomos crescendo rápido , avançando o sentimento que tínhamos um pelo o outro, curtíamos o nosso punk rock, bebíamos nos pontos de ônibus, em festas e shows, vivendo os perigos da juventude, mas despreocupados e desprendidos de qualquer coisa, não pensávamos em nada a não ser em curtir os nossos momentos juntos, como se fora o ultimo de nossas vidas, e aquilo fazia muito sentido, pois para nós , o mundo ainda era muito pequeno, para nos preocuparmos com ele. Logo Danila começou a frequentar a casa de meus pais, e eles adoravam ela, garota simples de boa fala, bonita e simpática, se tornou da família no primeiro dia de visita, lembro de minha mãe dizendo "tirou a sorte grande eim betão", e de fato tinha mesmo. Na casa de meus pais havia um quartinho improvisado, onde dormia meu irmão e eu num beliche marrom, as tardes ele saía de casa e o quartinho era nosso, ficávamos deitados na cama de baixo, no escuro nos conhecendo fisicamente, era ótimo aquilo, passávamos horas la dentro entre um beijo e outro, toques salientes no corpo em volta daquele umbigo , e aquele corpo cheiroso de Petit, o gosto do perfume ficava horas na minha boca, e o cheiro de Black menta, impregnava minhas roupas, mantendo o cheiro dela em mim, quando levara ela de volta até a sua casa.

Danila era ótima , nos conhecemos na escola do bairro, lembro-me de que bem no começo de nossa amizade, eu junto com mais 2 amigos, zombávamos dela e suas amiguinhas, sempre que podíamos, mas mesmo assim , ela sempre estava por perto na hora do intervalo das aulas, conversando conosco, sempre feliz, e de cara , sempre cogitei em pensamentos, em ficar com ela um dia, mas na época ela era namorada de um vadio qualquer,que não se encaixa nesta história, então meio que calei aquele pensamento. Mas aquilo não nos impediu de seguir a amizade, e o tempo foi passando e ela se separou do individuo, sobrando mais tempo para se afundar no movimento punk junto comigo, e dai não paramos mais de nos ver, e cada vez mais estávamos andando juntos por ai.

No dia 25 de junho de 2008, foi o nosso primeiro beijo, lembro-me como se fora ontem, sempre levara ela até a metade do caminho de sua casa, e naquele percurso passávamos por um escadão, atrás do mercado Macedo, ainda que não tínhamos demonstrado o que sentíamos um pelo outro, estava em nossos olhares, mas partiu dela a iniciativa:

- Eu gosto muito de você

Ela disse abraçada comigo e me olhando bem no fundo dos olhos, pude sentir tamanha verdade em suas palavras, então ela me beijou...Foi o momento mais alto de minha vida, com um gosto único de cigarro e chiclete, misturado com o sabor de seus lábios pequenos, e o mundo todo pareceu leve e flutuante, por 5 segundos

-Você se arrependeu?

Perguntei depois do beijo, mas até hoje não sei o por quê, de tal pergunta besta, e depois disso ela seguiu para a casa e eu fui por um caminho diferente, até a casa de um amigo, e lá fiquei avulso, ouvindo Saturday night dos Misfits, enquanto ele falava e falava, mas nada pude ouvir a não ser o Michale graves cantando, enquanto ainda sentia o gosto daquele beijo, naquela noite não pude pensar e nem fazer mais nada.

Se não me falha a memória , uma semana depois estávamos namorando, firmes e apaixonados, e como ela já conhecera minha família, estava tudo bem, mas eu teria de conhecer a dela também , foi ai que começou de fato, a nossa difícil jornada. Os pais dela nunca me aceitaram , a mãe dela é da região do nordeste Brasileiro , uma pessoa ruim no sangue e na alma, daquelas que sempre tem razão, e quer estar certa em tudo , mesmo bebendo cachaça dia e noite, e como eu sempre fui de Sampa, e desempregado e ainda por cima punk, com um visual agressivo , com moicano amarelo e calças apertadas e botas, a família dela sempre me rotulou de Travesti, com aquele preconceito de quem não conhece as culturas e movimentos do mundo, e pensam que o Piauí é o único lugar de gente decente, sempre me olhavam torto, exceto o pai dela, trabalhador paranaense, simples e calado, um observador , e que sempre nos respeitou, mesmo vendo a única filha, junto com um cara de vestimentas e ideias contrários, ao padrão imposto pela sociedade, ele nunca me julgou mal, e eu por minha vez, sempre mantive o respeito mútuo.

No começo eu não frequentava a casa dela, apenas ficávamos no portão em frente, namorando e conversando, todos os dias da semana, eu só passei a frequentar o interior da casa depois de alguns meses de namoro, quase não discutíamos um com o outro, era lindo, como o amor parecia ser, até as cobranças de parte de sua família, começar a pesar no nosso relacionamento, os pais dela sempre prezavam pela vida estável com um bom trabalho, e dinheiro para manter uma família sadia e feliz, eu nunca havia trabalhado, sempre fui um desempregado que tinha horror ao dinheiro, sempre achei um sonho distante ter um pouco disso, esse arrivismo que as pessoas tem , sempre achei sujo demais ter dinheiro trabalhando para um patrão escroto, engordar suas crianças rosadas, com o suor do povo, mas por outro lado , o mundo é uma moeda com duas faces, o pobre e o rico.

Eles exigiram tanto de mim, cobrando de Danila, que resolvi procurar um trabalho qualquer, que calasse aquelas bocas, fui de norte a sul, com uma mochila e vontade de mudar aquela vida, estava disposto a conseguir trabalho, para futuramente ter um canto só pra nos dois, como sonhávamos tanto, eu sempre retornara cansado e desanimado por não conseguir nada , mas tinha sempre uma conversa com Danila, aquilo me renovara para o dia seguinte,e os dias e noites foram passando daquele jeito, com esperança e planos para o futuro, cheio de amor e paixão, e era tanta paixão que Danila mentiu para seus pais, disse que iria dormir na casa de uma amiga, mas na verdade ia passar a noite comigo , na casa de meus pais. Naquela noite estávamos na rua de casa, fazia um friozinho de leve, e esperamos meus pais irem dormir, entramos e ficamos na sala, num sofazinho de dois lugares, vendo televisão abraçados , até certa hora da madrugada, quando desligamos tudo e a chuva começou a cair, e a magia começou a acordar, dentro de nossos corpos, foram os 5 segundos mais felizes da minha vida, a nossa primeira vez na carne um do outro, e aquele sofazinho estreitava os espaços, nos deixando colados, respirando de fato o mesmo ar, e os movimentos lentos, acelerando os batimentos do coração, e a chuva caindo em linhas nas telhas, escreviam no teto, todos os medos que tive, e cada beijo dela, apagava os mesmos com o vapor que pairou na sala, dava pra ver no vitrô, entre as cortinas e seus cabelos soltos, aquela madrugada seguiu vagarosamente, e permanecemos no mesmo ritmo do relógio na parede, despreocupados.

O lampejo do dia começava ás 9 da manhã, tomamos café e então a levei de volta para a sua casa, no caminho nos sentimos muito bem, tínhamos passado uma noite maravilhosa, nada poderia estragar o nosso momento, mas aquele ditado diz tudo, "alegria de pobre dura pouco", durante a semana que se seguiu , o vadio do ex namorado, começou a ligar e ligar, de madrugada , de tarde, de manhã , e principalmente a noite, estava louco e desesperado a querendo de volta, dizia que iria até a sua casa, e que não iria desistir dela, mas ele era vadio demais, quando juntos, traía Danila com outras raparigas, deixava ela sozinha e saia para a balada, um otário de mão cheia, e que demorou quase 2 anos para entender que havia perdido Danila para mim, nesses dois anos tivemos de suportar tudo isso, telefonemas ameaçadores, insegurança , e principalmente sua mãe, que amara de coração o tal ex, então facilitava a conversa , o convidava para a casa, ligava para ele vir conversar com Danila, aquilo para mim era o fim da picada, surtei com aquilo, pensei em desistir daquilo, ademais não cabia em mim toda aquela situação, por muitas vezes pensei

" que merda estou fazendo aqui", "isso não vale a pena", e a mãe de Danila bebendo e implicando com o nosso namoro, lembro-me de uma vez em que Danila e eu discutimos feio sobre essas questões de ex namorados e coisas do tipo, e ela saiu correndo de mim, me deixando para trás, demorei algumas horas para ir atrás dela, pensei que se deixasse , ela iria pensar e retornar ,para conversarmos novamente e fazer as pazes, mas ela não voltou , e eu começara a me preocupar , fui procura-la em sua casa, chamei e chamei no portão e nada, dava pra ver a luz da sala , mas ninguém me atendeu, dei mais algumas voltas no bairro e nada de Danila, voltei para casa preocupado e esperei mais uma hora, peguei o telefone e liguei para a casa dela, crente de que ela estaria lá, sua mãe que atendeu:

-Olha, a Danila saiu com o Marcelo, e vai dormir lá com ele, tu é corno rapaz, tu é corno!!

e desligou o telefone, fiquei em choque, a voz dela era de embriagues extrema, então por um momento desacreditei, mas a pulga atrás da orelha ficou, eu não sabia o que fazer, não tinha celular para ligar e nem ela andava com um, mas eu sabia que Marcelo era o ex de Danila, mas não sabia onde ele morava, "playboyzinho de merda" pensei, e fiquei em casa chutando tudo, dando coice e gritando no travesseiro, depois fui tomar um banho pra acalmar, esperei por uma ligação dela e nada , já passara das 22 horas, 23 horas, 00 horas e uma da manhã, então eu dormi no sofá. No dia seguinte acordei louco, não escovei nem os dentes, e já estava em seu portão , Danila me atendeu com os olhos cheios de lágrimas, e me contou o ocorrido, disse que sua mãe tinha a proibido de sair ontem, e que estava bêbada e agressiva, disse que se ela saísse do quarto, iria quebrar os dentes dela, e o telefone ficou a noite toda com sua mãe, Danila me disse que sua mãe ligou varias vezes , para o Marcelo, e os dois conversaram até altas horas da noite, fiquei estático quando ouvi Danila me contar, ela me contou que sua mãe guardara consigo, um álbum inteiro de fotos do Marcelo junto com Danila, e que não suportava o fato de Danila ter terminado o namoro com ele, ela me disse também que sua mãe me odiava, "disso não tenho duvida", pensei.

Os dias que se seguiram foram assim, horríveis , eu podia ver Danila todos os dias, mas poucas horas, apenas durante as horas da escola, que ela cabulava para estar comigo na casa de meus pais, ela saia de sua casa ás 6 e 30 ta tarde, e podia ficar comigo até ás 22 da noite, para mim era pouco, pois passava muito rápido quando estávamos juntos, quando dava 21 e 30 eu a levava de volta para a casa, mas só a metade do caminho, até as coisas esfriarem e sua mãe deixar de encrencar , depois de mais um mês , eu já podia deixa-la até o portão de sua casa, onde nos despedíamos toda noite com um beijo , pela fresta do portão a 23 horas da noite, lembro-me que tínhamos uma regra, para saber se eu chegara em casa com segurança, ela dizia " te ligo daqui a 15 minutos", era o tempo que eu levava até chegar em casa, e revesávamos esse esquema, cada dia era um que ligava, e nunca atrasávamos a ligação eram exatos 15 minutos para o telefone tocar e o coração acelerar.

No ano de 2009 , já fazia um ano de namoro, e partilhamos muita coisa durante esse período de aceitações de família, desemprego, e algo mudou a nossa vida para sempre, lembro-me de que estávamos uma noite em seu quarto, fazendo amor, quando ela sentiu uma dor que incomodava sua barriga, ela se sentou e começou a massagear a região do lado direito de sua barriga, que logo começou a inchar e inchar , mas só de um lado , na região do útero , ela começou a sentir muita dor e acabou desmaiando no colchão, fiquei em choque vendo aquilo, desesperado comecei a reanima-la , ela permaneceu desmaiada por pouco mais de 10 segundos, era tarde da noite, e eu não sabia o que fazer, ela despertou assustada e não aguentando a dor pediu, para mim pedir ajuda para o seus pais, mas como eu pediria ajuda para os pais dela , sendo que nem mesmo sabiam que eu estava lá?, me perguntei , mesmo assim chamei por sua mãe, ela veio até o quarto e disse pra eu ligar para o SAMU, e desdenhou quando jogou o dinheiro no meu colo e disse:

-Toma!!! socorre ela ai!!!

e voltou para a cama, com a maior frieza do mundo, aquilo me deixou pasmo, sua filha passando mal e ela reage desta forma, que especie de ser humano era aquele, peguei o telefone e liguei para o socorro, que logo chegou para socorre-la e leva-la ao hospital, fui junto na parte da frente da viatura, nunca andara de ambulância antes, pena que a primeira vez foi tão desagradável, Danila estava sendo dopada nos fundos, numa maca e estava vestida com shorts pequenos e uma camiseta , e fazia frio naquela noite, quando chegamos no hospital maternidade Amador Aguiar, aquele largo silêncio do hospital quebrou-se apenas com o som de meus coturnos, até a recepção, preenchi sua fixa e aguardei sentado num sofá rasgado no centro da recepção, ninguém sabia o que estava havendo, tive vontade de ligar para os meus pais daquele telefone na parede, mas era 4 da manhã , então apenas aguardei , angustiado e apreensivo, quando um medico falou:

- Acompanhante de Danila!!

E me explicou , disse que tinha duas noticias para me dar, uma boa e outra ruim, primeiro me disse a boa:

- Você vai ser pai!!!

Um pânico repentino me tomou por completo, junto com uma alegria estranha e tímida, e logo depois ele me disse a ruim:

-A ruim é que o bebe gerou-se em uma de suas trompas, e morreu com 2 meses de gestação.

Friamente, saiu e entrou em outra sala, me deixando com perguntas como" ela esta bem?" ou ela esta viva?" , mal deu tempo de perguntar e ele já havia sumido no silêncio daquele corredor, corri até a recepção atrás de informações, a recepcionista vendo tevê e assinando papeis, disse que ela estava em observação e que teria de operar , fazer uma cesariana para retirar o feto de dentro de sua trompa, fiquei ainda mais preocupado , pois tratava-se de uma cirurgia ectópica, "vai saber o que é isso", pensei enquanto aguardava novas noticias, sentado nas poltronas da recepção. A madrugada estava bastante longa, sai um pouco para tomar um ar lá fora, respirar um pouco, estava frio e eu estava de regatas, e com minhas calças rasgadas, quando o socorrista do SAMU sentou do meu lado

-Eai? tudo bem?

-Não muito, estou preocupado com minha namorada

respondi para ele, e ele me disse:

- você é punk? perguntou

-Sim

respondi sem querer muito assunto, mas ele insistiu

-Eu já curti bastante essa vida punk ai, já fumei algumas coisas estranhas...o que aconteceu com a sua namorada?

- Agente estava no quarto fazendo amor quando ela sentiu dores, e agente veio

o socorrista insistiu na conversa até perguntar:

-Vocês estavam de boa fumando um baseadinho né?

-Não mano, se é loco, estávamos de boa em casa , nada a ver

respondi curto e grosso, e ele percebeu a rispidez, e saiu com outro socorrista que apareceu na porta dupla do hospital, " cara chato da porra"

Permaneci apreensivo , esperando noticias e então retornei a recepção, era uma outra moça, mas com a mesma energia horrenda para atender as pessoas, parecia uma lesma vestida em roupa branca, ela me disse que Danila iria ser operada ás 8 horas da manhã apenas, e que até lá iria passar por exames , e passar por uma raspagem uterina, só então operar, e me recomendou ir para a casa buscar roupa para ela e retornar até as 8 da manhã, mas não o fiz, eu tinha de vê-la, então xavequei uma enfermeira que estava no corredor, conversei alguns minutos com ela, e logo ela me deixou entrar na sala onde Danila estava em observação, estava desacordada na cama, pude ver apenas da porta, até o segurança me tirar de lá e me orientar a sentar e esperar.

Quando bateu no relógio 6 da manhã , eu já a tinha visto umas 3 vezes neste mesmo esquema, e as enfermeiras já me reconheciam, então olhei os bolsos e peguei o dinheiro que a velha tinha jogado pra mim, engraçado, se não fosse por ela eu não teria dinheiro pra voltar , " desgraçada" pensei , enquanto esperava o ônibus no ponto, e ele logo passou, vazio, pois já era domingo , e o caminho de volta foi longo e reflexivo, e pela primeira vez em tempos, eu não havia passado mal no ônibus, pelo menos uma coisa boa.

Cheguei na casa de meus pais desesperado e calmo ao mesmo tempo, expliquei o ocorrido e pedi ajuda, prontamente sem medir esforços me ajudaram em tudo, desde dinheiro para o retorno ao hospital a força de um abraço e palavras do tipo " Vai dar tudo certo", Então fui até a casa dela pegar umas roupas, sua mãe me ajudara, mas sem falar nada, parecia arrependida de algo, e disse que mais tarde iria visita-la, sai de lá e fui correndo para o ponto pegar o ônibus, chegando lá entreguei as roupas na recepção , em nome de Danila, e me pediram para aguardar, passou alguns minutos um doutor gordinho de olho claro me chamou:

-Acompanhante de Danila

era eu, entrei na sala e lá estava ela acordada prestes a ser operada, e o doutor me disse para ajuda-la a se despir, confesso que nunca odiei tanto tirar a sua roupa, ela se tremia , mas me acalmava, ela estava tão nervosa , mas em nenhum minuto deixou transparecer em seu cariz , para me tranquilizar, era muito mais forte que eu, e então a levaram para aquela sala metálica , cheia de luzes, e com um certo ar lúgubre, fiquei nervoso , querendo chorar, mas eu era egoísta demais, para chorar na frente de alguém, então fui lá fora derrama-las sozinho, as horas passaram e já era quase meio dia, os médicos disseram que a cirurgia foi um sucesso, mas que tiveram de tirar uma de suas trompas, porque existia uma massa muito densa entupindo-a , mas isso é o de menos disse o medico, o importante é que ocorreu tudo bem

-Quando eu posso vê-la?

-Nos horários de visitas, ás 2 da tarde e ás 20 da noite

Comecei a me acalmar, e caminhar pelos corredores da maternidade, pensando em tudo aquilo, o fato de ter sido pai, e ao mesmo tempo não ter sido, e me senti estranho, com medo, frágil , e pensando no que estava por vir, então sentei lá fora e observei o andamento do dia, as pessoas chegavam aos montes, mulheres grávidas, carros com famílias contentes, comemorando, outras chorando pela morte dos bebês, era uma coisa de louco tudo aquilo, e eu tentando manter a frieza e a calma, enquanto a correria se estreitava naquela maternidade, "de madrugada tudo era tão calmo e só eu aguardava na recepção, olha isso agora" pensei puxando meus rasgos na calça. Por volta de uma e meia da tarde a mãe de Danila chega na maternidade , passou por mim e foi direto na recepção, e logo pegou o adesivo de visitante, e aguardou até a hora da visita sem falar nada, apenas no celular tagarelando com os parentes, chamando todo mundo para visita-la, na visita noturna, o pai de Danila chegou poucos segundos atrás, mas não entrara na maternidade ficou sentado do lado de fora á 3 bancos do meu, fui até ele, de um certo modo me senti obrigado a dar uma explicação para tudo aquilo, então sentei do seu lado e expliquei com clareza e humildemente ele entendeu, sem esbravejar , e ainda me disse que gostou muito de eu ter falado com ele, acrescentou também, que outra pessoa não assumiria a responsabilidade, senti naquele momento um degrau de respeito subindo, ao meu favor, e logo depois ele se levantou e foi até a sua esposa, e esperaram até a hora da visita.

O horário de visitas permitia somente dois visitantes, sendo um por vez, e durava apenas meia hora, primeiro entrou sua mãe, e depois de 25 minutos saiu de lá, e depois entrou seu pai nos 5 minutos restantes, e eu fiquei do lado de fora, excluído como um lobo solitário, fiquei pensando " fiquei aqui esse tempo todo e não me deixaram vê-la, mas tem um lado bom, pelo menos sua mãe veio , porque para mim, ela não parecia se importar com a própria filha", quando fecharam as portas da entrada de visitas, rapidamente eles foram embora, somente o seu pai se despediu de mim, com um aperto de mão, sua mãe ascendeu um cigarro e saiu na frente, sem dizer nada, até ai achei normal.

Estava com 10 reais no bolso e estava com fome , e nenhum pouco com vontade de ir pra casa , pois teria de retornar ás 20 da noite para a próxima visita, não compensaria, então fui até um super-mercado Extra ali perto, aberto 24 horas, comprei um salgadinho e um refrigerante, para passar o dia, meu pai e minha mãe vieram também , me visitaram e me deram uma força moral, mas não quiseram ficar até as 20 da noite , então foram embora, ficando somente eu , todos indo e vindo e eu lá, engolindo salgadinho e bebendo refri, e o dia todo passou assim, até ás 20 horas, mas eu já estava esperto então quando bateu no relógio 19 e 30 , eu já pegara o adesivo de visitante, e naquela noite eu fui o primeiro a entrar, e pude ver ela na cama, estava linda , meu amor, eu quis leva-la pra casa, quis aperta-la, quis dizer que passei dois dias aqui sozinho, quis dizer que xavequei as enfermeiras, e que fui homem o bastante para encarar o seu pai, mas nada disse, apenas eu te amo, e a abracei, depois perguntei como ela se sentia, e logo os seus parentes bateram na porta, primas e tias e sua mãe , então eu me despedi e disse em seu ouvido:

-Nega eu vou ficar aqui, porque as enfermeiras vão deixar eu te ver de madrugada!

-Ta bom nego , eu te amo.

Sai de lá e passei o resto da noite mais tranquilo , assistindo a tevê na recepção, enquanto as portas da maternidade batiam , ecoando pelos corredores, aquele som de filme de terror, e na tevê passando novelas, fui mijar no banheiro pois só naquele momento senti vontade de alguma coisa desse tipo, então o resto da madrugada foi assim, idas e vindas do banheiro para a poltrona, e da poltrona para o quarto de Danila, e para a recepção. No dia de sua alta, foi o mais corrido, porque não tinha carro, nem dinheiro, estava fodido, liguei a cobrar para meus pais e pedi um dinheiro emprestado, minha mãe veio até o hospital e me trouxe algum, voltei para a casa de Danila pois sua mãe conversara com o vizinho, que a levaria de volta para a casa de carro, e eu fui junto a segurando nas lombadas, ela estava com pontos bem inchados, então chegamos em sua casa, lá parentes já a esperavam em seu quarto , todo arrumado com cama limpinha, onde ela repousara por algumas semanas.

Pude retomar algumas atividades, como procurar trabalho e respirar, e sempre a visitava de tarde e de noite, até a sua completa recuperação, que demorou quase 7 meses, e durante esse período, eu não havia obtido nenhum sucesso , em relação a trabalho, nas entrevistas sempre me disseram para ficar no aguardo, que logo eles retornariam a ligação, mas nunca retornavam, até uma empresa de logística me chamar para uma vaga disponível na área de estoque, e carga e descarga, prontamente fui no dia marcado e na hora marcada, fiz uma pequena entrevista com um supervisorzinho rosadinho, e ele me disse para retornar no dia seguinte , já pronto para trabalhar, a viajem de volta do local até a casa de Danila demorava pouco mais de uma hora, mas naquele dia tudo estava favorável a mim, até o transito que permitiu que meu ônibus chegasse em menos de 30 minutos, cheguei e entrei no quarto de Danila , para dar a boa nova, ela ficou tão contente , como eu nunca vira antes, me senti auto suficiente e homem , pela primeira vez na vida, e passamos a noite juntos , durante todas as noites de sua recuperação, eu estava com ela, trocava seus curativos , limpava com iodo e soro fisiológico , e tratava de acorda-la na hora certa, para os anti-inflamatórios , com o despertar do celular com um som peculiar, que mais tarde virara , um bordão ,daqueles momentos difíceis que você supera tudo e todos.

Dia de começar no novo trabalho, lembro-me de pentear o moicano para trás, colocar a minha melhor camiseta branca, uma calça menos rasgada e minhas inseparáveis botinas, dar um beijo em Danila que me desejara boa sorte, tomei o ônibus no ponto e parti em direção a odisseia, no caminho fiquei olhando da janela , carros e motos, pessoas felizes, e de um certo modo me senti pela primeira vez parte daquilo, daquela sensação boa de viver, cheguei com 5 minutos de sobra, e aguardei na recepção, deveria ser mais como

" esperidão" porque você só espera nesses locais, acho que demorou cerca de 20 minutos e um copo de água , entrou o rosadinho

-Robert vamos lá?

Me levantei e o segui pela expedição, pelo estoque, e até o estacionamento, e ele disse:

-Então Robert, eu tinha selecionado alguns currículos , e o meu chefe supervisor te viu e viu esse cabelo seu ai, e não gostou, como aqui você vai lidar com o publico, ele achou um pouco ofensivo demais o seu visual, desculpe mas acho que não temos mais a vaga para você, eu lamento.

Eu abri os braços e retruquei

-Como assim vocês julgam a pessoa pelo penteado dela?

ele ficou quieto e disse que iria chamar o encarregado, veio outro rosadinho de merda falar comigo:

-Então Robert... se você raspasse o cabelo seria mais aceito pelo publico que costuma vir aqui, os patrões são meio severos no que desrespeito a aparência, você pode raspar o cabelo e voltar amanhã se quiser...

Eu não estava acreditando naquilo, como pode ser tão rosadinho, certinho, cheio de " ai ai ai ui ui ui", que merda eu disse:

Eu volto amanhã então porque preciso muito do trabalho, então sai pela portaria e fui pra casa. Lá relatei o ocorrido para Danila e ela disse que a decisão era minha, mas pensei bem , estávamos precisando de dinheiro, e eu teria de trabalhar duro para ter uma casa, um cantinho só nosso, sem mãe bêbada, e parente chato por perto, então resolvi raspar o moicano, que Danila o fez com uma maquininha, lembro-me de cada fio caindo diante de meus olhos , 35 centímetros de moicano , que eu deixara crescer desde 2005 , há 4 anos atrás... mas que assim seja, Danila o raspou e guardou numa sacola uma parte das madeixas, e então fiquei careca , e tive de aceitar o sistema, se quisesse ter um futuro com Danila, e no dia seguinte retornei até a empresa, lembro-me até hoje o nome da desgraçada, Canpanati, chamei pelo interfone na portaria, e me deixaram entrar, procurei pelo mesmo rosadinho do dia anterior, mas foi outro pela-saco que me atendeu:

- Você é o Robert né?

-Sim

- Então Robert, a vaga já foi ocupada, mas se você quiser pode deixar um currículo com agente, que logo retornamos a ligação.

Deu vontade de rir, de chorar, de cuspir na cara daquele bundão, de entrar na recepção e virar a mesa em cima daquela garota vaidosa, de morder o pescoço daquele segurança que se inclinou, e de roubar um daqueles caminhões cheio de gargas caras, mas apenas balancei a cabeça e sai de lá, naquele dia eu me senti tão miserável que , nem deu vontade de voltar e dar a noticia para Danila, ela ficaria puta da vida, como eu estava, mas eu não poderia esconder aquilo dela, estava em meu semblante, lembro de chegar em seu quarto e chorar em seu ombro, me perguntando o porque de tal dificuldade , me arrependendo de mudar meu cabelo, meu jeito, e mesmo assim não ser aceito naquela droga de emprego, esbravejei por alguns minutos ,e antes de dormirmos juntos, troquei seus curativos.

Continuei nesse vai e vem de entrevistas fracassadas e promessas não cumpridas, mas tudo estava se ajeitando , Danila já estava recuperada, e já conseguira um trabalho como, banhista num pet shop improvisado na casa de uma conhecida, Elise a contratou para ajudar nos banhos e tosas dos animais, e com o coração enorme que Elise tinha, ela acabou me chamando também para trabalhar junto com ela, ganhávamos pouco, alguma porcentagem do que ela fazia , mas dava para tirar até 150 reais na semana, dando banho em cachorro e gato, adorávamos aquilo, nos divertíamos muito com Elise, ela era casada e seu marido Junior tinha no mesmo quintal , um salão de cabeleireiro, os dois eram pessoas incríveis, simples e trabalhadoras, e os meses foram passando assim, parecia que tudo daria certo daquela vez, mas alguns meses depois voltamos a terra, minha mãe havia mudado de casa , para uma casa maior numa rua abaixo de onde morava, e Danila e eu estávamos na casa nova quando, novamente ela começou a sentir dores no útero, e rapidamente começou a inchar , prontamente liguei para Elise, foi a única pessoa que veio em mente e que tinha carro para socorrer Danila, Junior quem veio dirigindo e levou agente novamente até a maternidade, no carro estavam Elise, Danila e eu, e Elise acalmando Danila aos poucos e me acalmara também, Junior pilotou aquele carro como se fora uma corrida de formula 1, em menos de 30 minutos chegamos a maternidade, e lá vamos nós novamente.

Elise seguiu com Danila até o leito, enquanto eu fazia a sua ficha e Junior fumava um cigarro lá fora, as enfermeiras já reconhecendo a história, prontamente a levaram para o doutor, e então aguardamos naquela velha recepção, Elise saiu do quarto e foi fumar um cigarro, junto com Junior, depois os médicos chamaram pelo responsável por Danila, mas como não éramos casados e nem parentes, tampouco Junior e Elise, o medico disse para ligar para os pais de Danila, aquilo me apavorou , me deixou em choque, porque ele não disse o motivo só disse que poderia falar com os pais dela, por um momento pensei que ela tinha morrido, então a recepcionista entrou em contato com os pais dela, que logo chegaram na maternidade, a mãe de Danila logo me culpou pela situação, e eles foram conversar com o doutor, que disse que ela teria de operar novamente , uma nova gravidez ectópica, e que teria inclusive de tirar fora a trompa restante, e que ela correria risco de morrer na mesa de cirurgia, então esse era o motivo da vinda dos pais, para eles autorizarem a operação, e eles concordaram em fazer os procedimentos. As horas passaram lenta e agonizantes, e os médicos não se pronunciavam a respeito do caso, as enfermeiras cochichavam pelos cantos e olhavam para mim, aquilo me deixou em pânico, não parava de pensar no pior, Elise tentara me acalmar em vão, estávamos todos tensos , seu pai e sua mãe estavam sentados nas poltronas rezando , quando o medico chamou os responsáveis por Danila, e eles entraram no quarto , Elise, Junior e eu ficamos do lado de fora, até eles saírem, Elise perguntou para a mãe de Danila se ela estava bem, disse que sim e que ocorreu tudo bem, mas que ela nunca mais poderia ter filhos, e saiu de cabeça baixa , ascendeu um cigarro e foi embora, com o pai de Danila.

Fiquei tão triste, comecei a me culpar por tudo aquilo, o jeito que a mãe dela me olhou, disse tudo, um olhar como se dissera " você acabou com a vida dela", isso não saia de minha cabeça, mal superamos a perda de um bebê, e hoje já estamos aqui de novo , passando pela mesma coisa em menos de 7 meses, e ainda pior agora, pelo risco que ela correu de morrer, e de saber que nunca mais poderíamos ter filhos, aquilo foi massante, na hora pesou tanta coisa junta, que somada daria um ataque cardíaco em qualquer um, por quê não deu um em mim?

No dia de visitas, a mesma história, só que desta vez quase a família inteira veio , inclusive uma prima dela que me disse o seguinte:

-Ai ainda bem que vocês não tiveram um filho, seria muito difícil de vocês criarem a criança

ela teve a pachorra de falar isso num momento daqueles, mas eu estava tão aéreo que apenas senti o bafo dela, quando ela abria a boca, pessoas como aquela eu desprezava, pois são pessoas que se reúnem apenas quando morre alguém, ou quando alguém esta para morrer, durante todo esse tempo, ela nunca se quer nos visitou, e agora esta aqui , na fila da visita, e que por sinal , ficou na sala quase 20 minutos, os 10 restantes foram os meus...

-Nega me desculpa por isso, nunca quis que isso acontecesse, eu te amo tanto

Estranhamente Danila sorriu e disse

-Nada a ver, relaxa eu estou bem, o foda é que agora não podemos ter um filho, mais fazer o que? quem nasce pra sofrer é assim mesmo.

Nos abraçamos e nos beijamos, e com um certo ar de quem já passou por aquilo antes, ficamos tranquilos e estáticos, naquele quarto, que tinha uma outra jovem se recuperando do mesmo problema, uma amiga para a Danila conversar a noite, aquilo me deixou mais tranquilo, mas nada tirava aquele talo na garganta que ardia, covardemente, e que com água ficava ainda pior de descer.

Os dias foram se passando, e Danila já retornara do hospital, claro que sua recuperação seria bem mais demorada e complicada, lembro-me de ela sentir agonia de ficar tanto tempo deitada, e olhar aquela cicatriz com um olhar tão triste, um corte em cima de um corte que , iria marcar para sempre aquele momento, que só ela sabe, que só ela sentiu, mas que em nenhum momento demonstrou dor, e vontade de chorar, era guerreira demais, lutara bravamente com aquilo, com a dor de saber que nunca mais poderá ter um filho, seu sonho na vida.

Hoje estou aqui pensando, vendo esse céu laranja, lembrando disso tudo, e já se passaram 6 anos e alguns meses, e quase nada mudou, sua mãe ainda me odeia, seu pai nunca fala comigo, as amizades vieram e se foram , pessoas queridas morreram, não temos casa, nem dinheiro, não temos sossego, nem sucesso na vida, ás vezes até ficamos sem comida, ainda estou desempregado, sofro de pânico e dupla personalidade, tenho dificuldades em aprender e me esforçar, as vezes queremos nos matar, Danila as vezes surta, está com dividas até o pescoço, e eu não consigo ajudar, mas isso são pequenas coisas, comparados com o que já passamos na vida, tudo o que suportamos juntos, hoje é gratificante, certo que ainda não temos o nosso cantinho, e que um monte de gente já rogou praga no nosso namoro, inclusive sua mãe praguejou tanto e tanto, que hoje ela sonha em ser avó, engraçado como as coisas são né?, pensando aqui vendo esse céu, posso ver que nenhum caminho é tão longo para mim, se Danila estiver comigo, por isso hoje corro até o seu portão, eu corro , como corri quando tentaram te estuprar naquela noite, ou quando você tem crises de bronquite de madrugada, eu corro, corro, quando sua mãe te quer fora da casa, eu corro, para te encontrar quando desce do ônibus, corro para atender o telefone, e se for preciso correr pela felicidade, eu terei uma chance a mais na vida, pois sei o valor do teu sorriso hoje em dia.

Robert Ramos
Enviado por Robert Ramos em 20/01/2015
Reeditado em 20/01/2015
Código do texto: T5108356
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