VÉU DE NOIVA
VÉU DE NOIVA
Estava chegando a hora. Os preparativos eram muitos.
Havia a festa, ainda. Os convites veria depois. Primeiro trataria de escolher o vestido. Veriam juntos. Não. Ele não poderia ver antes da hora. Daria azar. Suas amigas a alertaram.
Seguiria à risca as regras da boa etiqueta. Protocolos que deveriam ser respeitados. Estes, ela já os havia decorado.
Marcariam a data do noivado para breve. Talvez no aniversário dela. Mas já pensava no grande dia. O dia do casamento!
Sonhava com a igreja lotada. Com as flores brancas. Copos de leite.
O que mais a encantava era o véu. Ela mesma confeccionaria seu véu. Tule branco. O mais alvo que houvesse entre os brancos.
O vestido seria em cetim. Com cauda bem rodada… A grinalda… Flores de laranjeira… Ah! Já sentia o perfume adocicado.
Dizia a si mesma - vou entrar sorrindo, pisando leve. Bem de leve, no tapete carmim aveludado – e sorria até às lágrimas. Ouvia os acordes da marcha nupcial.
A Ave Maria de Gonaud seria cantada pelo soprano do coral da igreja. Era sua amiga íntima. Aquela que lhe dava força nas suas horas mais tristes. Que incentivava sua imaginação. Que acalentava suas fantasias. Sim. Ela cantaria a Ave Maria!
Em seu quarto. Frente à penteadeira oval. Quieta. Sonhava acordada. Seu reflexo no espelho atestava seu idílio. Via-se vestida de noiva. Véu. Grinalda. Flores…
As batidas na porta a despertaram do enlevo. Era sua mãe. Mulher vigorosa em seus 41 anos. Intitulava-se íntegra. Exemplo de recato. Retidão nos atos. Virtuosa nos pensamentos. Beata. Fervorosa na fé. Jamais faltara, um domingo sequer, aos cultos. Vestia-se com decência. Orava com frequência.
Bate e espera. Após alguns segundos, abre a porta.
Seu sembalnte está sério. Mais sério que o de costume.
Senta-se à beira da cama. Inicia seu discurso. Implacável nas palavras. Rígida nos gestos. Dá seu recado. Como se passasse um telegrama. Levanta-se. Sai.
Na porta do restaurante ela o vê. Está sentado à mesa. Veste-se como se fosse ao teatro. Terno escuro e gravata. Está ansioso. As mãos se apertam cúmplices. Olha o relógio. Ainda está cedo, pensa. Ela virá. Sei que virá.
Seus motivos são os mais reais possíveis. Precisam conversar. Colocar tudo em ordem. Colocar ordem em tudo. Por que não fizeram isso antes? Não importa. Fariam agora.
Timidamente. Com passos leves. Como aqueles sobre o tapete carmim aveludado. Ela se aproxima. Ele sente seu perfume. Flores de laranjeira…
Seu vestido não é branco. Seu vestido tem tons acinzentados. Apropriados para a tarde escura. Daquele inverno.
Sua pele tem rugas que a passagem do tempo deixou ali. Suas mãos tremem. Menos de emoção. Mais de descontrole neurológico.
Quarenta anos se passaram desde a última vez que o vira. Agora. Ele estava bem ali. Ele se levanta. Suas mãos estão vazias. Seus olhos se encontram.
O tempo. Pára.
Não sabe quanto tempo ficou assim. Desacordada. Desmaiara. Desde que sua mãe fechara a porta.
Teria que falar com ele. Precisava ser logo. Ele não poderia sonhar com ela. Nunca mais. Nunca. Não queria que ele sofresse. Ela sofreria tudo. Sozinha.
Vestiu-se de coragem esvoaçante. Como o véu. Aquele véu que cobriria sua cabeça. No seu casamento.
Arrastava-se. Com passos pesados. Sobre os paralelepípedos da rua. Iria encontrar-se com ele. Pela última vez. Daria a ele a chance. De ter uma vida feliz. Assim pensava. Assim sofria.
Lá estava ele. Em pé. Suas vestes eram claras. Como aquele dia de primavera.
Com as mãos para trás. Sorriso largo. Confiante. Num gesto delicado. Entrega as flores. Flores de laranjeira!
Ela engole o choro. Precisa ser forte. Convincente. Sua mãe a prevenira. Não diga nada a respeito da nossa conversa. O que ele precisa saber é apenas o principal.
Mas o que é o principal? - perguntava a si mesma.
É minha vida! É a nossa vida! Não! É a vida dele! – justificava. Sim. Ele não saberia o motivo.
Aproxima-se. Esconde o rosto em meio às flores. Inspira o doce aroma. Demoradamente.
Naquele instante, nada poderia ser dito. Nada. Só o silêncio os unia. O silêncio encoberto pelo véu da dor.
Teria que ser rápida. Teria que deixar que a respiração fosse suficiente. Para falar de um só fôlego.
Não posso… mais! Não podemos… mais! Sinto muito!
As flores caíram aos seus pés. Nada sobrou em suas mãos! Nada! Nem o suave perfume das flores…
Girou sobre si mesma. Correu. Sem olhar para trás!
Ele. Ficara lá. Parado. O ar parara. Tudo estava em suspenso.
A vida estava suspensa.
Ele não sabia. O motivo.
Agora. Ele estava ali. A poucos passos dela. Em pé. Ela se aproxima. Ele a convida a sentar-se. Puxa a cadeira para ela. Contorna a mesa. Senta-se.
Teriam muito que conversar. Muitos eram os motivos para estarem ali. Frente a frente. Os olhos. Olhavam. Mudos. Interrogativos.
Ele havia casado. Tinha filhos e netos. Enviuvara há cinco anos. Habituara-se à solidão. Desde que se casara. Ele jamais a esquecera. Queria. Tinha o direito de saber. O motivo.
Eram dezoito horas. Uma música ao longe chegava até eles. Era a Ave Maria.
Ela iria contar-lhe. O motivo.
Também se casara. Também tinha filhos e netos. Também enviuvara. Há mais de cinco anos. Bem mais!
Sentia-se liberada da promessa feita à mãe. Contaria. O motivo. Sim!
Começou o discurso dizendo que havia sido obrigada a se separar dele. Que ela não era a mulher ideal para ele. Sua mãe dissera que a mãe dele havia feito um pedido. Que conversasse com sua filha a respeito desse romance. Que não daria certo. Porque seu filho teria que se casar com uma moça estudada. Uma professora. Ele estava para se formar em odontologia. Ela não tinha estudo. Era uma simples costureira. Não daria certo. Nunca!
Os olhos se abriram. Mais. Ele não podia acreditar no que estava ouvindo. Não! Não foi isso que ficara sabendo na época.
Ele iria contar. Tudo!
Sua mãe o recebera naquele dia com um carinho mais que especial. E havia lágrimas em seus olhos. Úmidos de compaixão! No abraço. Ela dizia - filho não queria que você se machucasse. Sinto muito! Recebi uma visita inesperada. A mãe de sua namorada. Veio para pedir um favor. Quase um pedido de socorro. Pediu que conversasse com você. Que se afastasse dela. Que ela merecia um moço do mesmo nível que ela. Da mesma cor que ela!
Não! Os discursos eram diferentes.
Passaram uma vida inteira acreditando que não eram dignos um do outro?
Que não se mereciam? Mas ela terminara por ele. Não por causa dele.
Ele respirava com dificuldade. Havia sido fraco. Deveria ter lutado por ela.
Ela não se conformava por ter feito o que foi pedido. Ela não se conformava por ele não saber quem ela era. Ela não se conformava por ele não ter ido além do preconceito!
Levantou-se. Beijou as mãos dele. Ajeitou o xale. Cinza. Virou-se. Foi embora.
Uma chuva fina. Como um véu. Caía. Sobre os paralelepípedos.
Dos olhos dele… uma lágrima.
Do véu do tempo… um adeus!
Mileite