Inexorável Realidade
— Como está, rapaz?
— Bem, eu acho... — Não achava, de maneira alguma. Estava certo, não estava nada bem.
Ela deu um sorriso simples, triste e de quebrar o coração. A pele enrugada e os finos cabelos brancos estavam desgrenhados. Mas pior que isso era a expressão vaga e infeliz na face.
Estávamos na sala simples da casa de minha mãe, doce mãe. Um par de sofás verdes jazia em lados opostos com estampas de flor. Estava eu em um deles, encurvado e com as mãos entrelaçadas entre os joelhos. No outro estava minha tia e minha esposa. Com idênticas feições.
O relógio tiquetaqueava atrás da penumbra negra da noite que pintava o cômodo. Os papéis de parede eram beje, como minha mãe gostava. Porém, hoje a cor e as imagens de flores pareciam feias, secas e sem vida. O clima era sufocante , e uma bolha entalava a minha garganta implorando por explodir em lagrimas.
O ar estava calmo. A lua se levantava melancólica no alto, o céu jazia de luto: negro e sem estrelas. O silêncio era gritante, meu coração pingava sangue, derretido dentro de meu peito, acho que escoaria por entre as lágrimas que ameaçavam sair. O mundo desejava pêsames, um respeito mascarado de calmaria, névoa e penumbra. Prenunciando um acontecimento tenebroso e tão certo. Nada da insolência de buzinas, apitos de grilo, nada do vento que batia nas cortinas brancas. Estava tudo tão solene. O universo choraria naquele dia.
Então a porta verde a minha direita se abriu lentamente, uma lufada quente de vento passou por ela e me acariciou, e um homem alto de barriga saliente saiu de lá. Segurava um estetoscópio na mão direita, trajava um jaleco branco, e grandes olhos tristes na face.
— Como... Como ela está? — levantei-me
— A parada danificou os pulmões — olhava para o escuro no canto da sala que a luz amarela do abajur não chegava — logo o corpo entrará em colapso.
— Há algo que possa fazer?
— Não, não mais. O tempo é curto, fique com ela. — sua voz soava baixa.
Meus lábios tremeram na tentativa de formar um sorriso de compreensão. Não soube se o sorriso saiu, mas senti que meus olhos marejaram.
Em passos curtos me direcionei à porta. Sua cor que minha mãe dizia ser jade era agora de um tom desbotado, fosco.
Coloquei as mãos na maçaneta de ferro gelada. Girei-a. Nesse momento meu coração pulava rápido no peito, e um aperto frio o esmagava. Abri.
Em meio à luz bruxuleante da vela a cor preta salpicava os cantos. A escrivaninha marrom ficava ao lado da cama, que por sua vez se estendia paralela à janela. Estava fechada hoje, como jamais estivera.
— M... Mãe? — Lá estava ela, no meio da cama. Com a face enrugada colada aos ossos. Os cabelos brancos repousados no travesseiro. Ainda podia ver a vitalidade que outrora estivera ali.
— Jhon — Estreitou os olhos — Meu querido — A voz soava rouca. Ela esticou a mão sem firmeza.
— Ó mãe, minha querida — peguei sua mão — , não faça esforço. Descanse. Estou aqui com você, estou aqui. — sussurrava.
Olhei nos seus olhos escuros e meigos. O brilho ainda estava ali, mesmo em meio às trevas, às portas da morte.
— Você sempre esteve, querido. Você sempre esteve.
Tinha suas mãos em minha cabeça agora. Lembrei-me da minha infância, das palavras doces, dos olhares cautelosos, das brigas efêmeras e as tragédias adornadas de eufemismo que ela usava para me poupar de situações como essa.
—Vou visitar o céu, Jhon. Logo. — Sorriu um sorriso esperançoso, quase feliz, mas cheio de doença. Que revelava que as portas do fim se escancararam a ela.
— Querida — uma lágrima desenhou um rastro cintilante em minha bochecha. Eu a encarava e via sua ternura, seu amor imenso e doçura inefável que jamais receberia de alguém de novo. Me lembrei de tantas palavras jamais ditas. Mas o que disse foi:
— O céu, mamãe, há de ser feito a você. Eterno. Eterno como você sempre será no meu coração que se derrete em lágrimas. Mãe... eu te amo. Não está só. Logo serei eu, me aguarde.
— Não vá tão cedo — sorriu.— É tão, é tudo tão...
— Oi?
— Eu posso ver, posso sentir, ele é... — Ela fechou os olhos, e enquanto via aquilo que eu jamais soube o que era, enquanto formulava uma frase para dizer, ela morreu.