O Anel de Noivado

Todos sabiam que nas terras do imperador Helêus, nos últimos dias da primavera, caía uma chuva tão torrencial, que o céu tornava-se negro como o ônix de Calcedônia, e os raios desciam tão furiosos que assombravam até mesmo os mais experimentados guerreiros. Era assim fazia longos sessenta anos, e todos sabiam disso. No mesmo dia do mês, na mesma hora, exatamente há seis décadas, a mesma chuva caía, resoluta e pontual, por exatos sete dias, até desaparecer, assim como surgira, quase como que por encanto!

O velho imperador, imobilizado em sua cadeira, devido à sua idade, sentia-se ainda mais melancólico nesses dias – se é que seria possível torna-se mais lânguido do que de costume - e ali ele ficava, sobre a grande sacada do seu castelo, observando a chuva lá embaixo, como se contasse uma a uma as gotas que caiam refletidas em sua íris perdida. Havia sido assim por todos aqueles anos.

Um dia, há muito tempo, um célebre guerreiro atravessou aquelas terras amaldiçoadas, e a sua fama e glória atravessou com ele, pois todos, em todas as partes, conheciam os seus feitos e a sua honra, jamais igualadas por ser humano algum naqueles dias. Então, Helêus o Imperador, chamara-o até o seu palácio, para cumprir, talvez, a mais nobre missão de toda a sua vida!

O cavaleiro veio, em meio a pompas e circunstâncias, mas ele não era como o imperador o imaginava. Nada de grandes músculos, ou de armaduras brilhantes e espadas afiadas reluzindo ao sol. Apenas um jovem envolto numa capa desfiada e preta, ressequida pelo calor e pelo frio, e um par de olhos tristes, porém justos. Mas Helêus não tinha escolhas, e tinha de confiar àquele jovem a grande missão que lhe cabia.

- Tenho uma história triste para contar-lhe, se não se importar – disse o Imperador.

- Todas as histórias me interessam – respondeu-lhe o cavaleiro.

- Pois bem, ei-la: Há muitos anos - anos que se passaram rápido demais para que eu mesmo possa acreditar - a minha família fora escolhida para governar estas terras. Assim, cresci aqui, como um príncipe. Só faltava-me uma princesa... E ela não tardou em chegar... Linda, como a mais bela flor, e carinhosa, como a brisa nos montes além daqui. E tão doce e afável quanto os arcanjos do céu. O dia, na sua presença, ficava mais claro e colorido, e os pássaros cantavam com mais alegria e vigor. Reservei um dia especial para nós dois, no lugar onde nos conhecemos, lá embaixo – apontou Helêus de sua sacada, uma grande praça que se estendia nove andares abaixo de seu castelo de madrepérola – Ali crescia uma linda árvore, que nos presenteava com flores o ano todo. Ali, mandei construir uma praça especialmente para ela... Era lá que deveríamos nos encontrar. Num banco embaixo da árvore, numa tarde, de um dia qualquer, que deveria se tornar especial... quando eu a pedisse em casamento... Mas aconteceu que, naquele dia, um compromisso importante, não mais importante do que ela, claro; mas ainda assim importante, me fez atrasar um pouco além do prometido. Eu era jovem, e tinha todo o tempo do mundo, você pode me entender...

- Sim, eu posso...

- E na tarde daquele dia, aconteceu de cair uma grande tempestade que me fizera atrasar, já que pensei que ela também atrasaria. Mas eu estava enganado, ela me esperava sob a corrente cortina de águas furiosas e cristalinas que despencavam do céu. Foi nesse dia que um fulminante e infame raio caiu... e partiu a bela árvore ao meio... jogando ao ar as suas folhas, os seus frutos e os seus galhos, para que fossem varridos pelo vento e pelo tempo... assim como a portadora do meu amor. Nunca mais eu a vi.

- Eu lamento...

- Não lamente cavaleiro, não foi culpa sua. Mas seja feliz, por jamais sentir algo parecido...

Os dois permaneceram calados por um tempo.

- Mas então... O que posso fazer por ti? – perguntou o cavaleiro

- Daqui a sete dias começará a chover, meu jovem. Vai chover como naquele dia. E isso é uma grande certeza! Tem sido assim desde que tudo aconteceu, há 60 anos! Choverá por uma semana inteira, em todo este reino, como jamais choveu em lugar algum.

- Isso é verdade?

- Sim. Por seis décadas assim tem sido, sempre no mesmo dia, sempre na mesma hora, por uma semana ininterrupta, choverá! E ninguém soube explicar o porquê. Até que um dia, viram uma mulher... sentada no mesmo banco em que a minha amada me esperou um dia, antes do nefasto raio. E todos que já a viram, afirmam não se tratar de alguém deste mundo. Se é que você pode me compreender.

- Um espírito! É isso que pretende me dizer?

- Você é perspicaz cavaleiro. Ela está lá, e me espera até hoje, eu sei disso... eu sinto... Os dias de chuva que a precedem carregam a mesma tristeza daquele dia, são as lágrimas dela que descem do céu chamando por mim. Já pedi muitos dos meus melhores cavaleiros para levarem a ela o meu presente, e o meu pedido de perdão, mas eles não tiveram coragem o suficiente para isso. Não posso culpá-los. Eu mesmo iria, eu desejaria isso, mas como pode ver, a minha condição não é favorável, e não sou mais o mesmo homem por quem ela se apaixonou um dia... Não gostaria que ela me visse assim... não sei se pode me entender... só um homem apaixonado poderia...

- Desejas que eu a leve o seu presente, é isso?

- Sim! Mas compreenderei igualmente, assim como compreendi aos meus, se não quiser ir.

- Eu o farei – Sim, ele o fará! Pois também era um homem apaixonado - todos os cavaleiros o são - e o seu grande amor ficara também para trás, por uma triste obra do destino. Ninguém ali poderia compreender o velho Imperador como ele.

Helêus o chamou até um canto onde descansava uma magnífica prateleira, e de lá, retirou um pequeno objeto. Era uma caixinha branca, provavelmente entalhada a mão, numa figura que lembrava uma tartaruga. Ele a colocou nas mãos do cavaleiro...

- Este era o meu presente, caso aceite me ajudar. Leve-o e o entregue a ela, eu o fiz com as minhas próprias mãos na minha juventude. Desde já lhe sou grato, valoroso rapaz, quer aceite este encargo ou não.

- Então é só isso que preciso fazer?

- Sim. Se o fizer, deve partir em sete dias, quando começará a chover. Você descerá até o jardim, onde se encontra a árvore e o banco, e onde os meus homens afirmam vê-la.

- Então, em sete dias partirei, e antes que o chão esteja completamente molhado, entregarei ao seu amor o seu presente!

Helêus chorou, e beijou as mãos o cavaleiro com profunda gratidão. - Só não conte a ela que me tornei um homem doente e feio, diferente do que ela conheceu...

Histórias de fantasmas não faziam bem aos ouvidos de ninguém daquelas terras. Por ali, não era superstições ou tolices acreditar em coisas assim. Pois que os espíritos andavam livres e não se ocultavam tanto dos homens. E muitas dessas almas ainda trazia um coração negro cravado em seus espíritos, como uma noite sem estrelas.

E exatamente, como previsto por Helêus, na manhã do sétimo dia, a chuva caiu. Viera junto com os primeiros raios de sol. O dia se tornou sombrio e triste, os animais se escondiam da água fria daquela manhã, e as pessoas evitavam sair de suas casas. O tapete branco de nuvens, que forrava o grande palácio sobre a montanha, ficou escuro e revolto. O cavaleiro trajou-se com uma longa capa com capuz, o qual jogou sobre a cabeça para proteger-lhe da tormenta. Sob olhares curiosos desceu a grande escadaria que levava ao jardim. Chovia forte, e as águas pesaram-lhe nos ombros, a sua visão tornou-se turva, e só enxergava alguns metros a sua frente. A bruma embaçava o caminho que ia descendo, e ao atravessar as nuvens que jaziam sob a montanha, adentrou num ambiente magnífico e fantástico! A água caía feito prata, e o verde intenso das folhas parecia iluminado por uma luz diferente, e o mármore das colunas e das amuradas lembrava a lousa fina. No fim da escada, abria-se uma grande praça, largada pelo tempo e pelos homens, de plantas murchas e ervas daninhas. Um pouco a frente, no meio do complexo arquitetônico, depois da grande e pesada cortina de água, um vulto escuro e inerte: Uma grande árvore, de galhos tortuosos e secos, portadora de uma monstruosa rachadura que lhe descia da copa até as raízes, parecia curvar-se sobre o peso de si própria. Mas ainda insistia em ficar de pé! Ela já fora uma árvore muito bela, digna de figurar no centro de tão linda praça, mas o raio a destroçou naquele dia, como fizera com Helêus... As luzes dos postes ao redor estavam acesas. Apesar de ser manhã, o dia parecia estar no fim de tarde e começo da noite... Não havia nada, nem ninguém ali. Apenas o jovem cavaleiro de pé e a sua boa vontade, observando o banco vazio onde as gotas da chuva se arrebentavam bruscamente após a longa queda. Ele ouvia apenas o batuque incessante sobre a sua capa, e o escorrer da água em seu rosto, feito lágrimas. Se ele chorou ali, naquele momento, assaltado quiçá, por lembranças doloridas, jamais saberei.

Ele ficou ali, esperando de pé, por um tempo relativamente longo, até ter a certeza de que nada iria acontecer, e de que tudo não passava de alucinação das mentes férteis dos que por ali passavam, embalados pelos acontecimentos que outrora amofinaram aquele local. Percebendo então, que não havia mais sentido esperar, ele se retirou, tomando o seu caminho para casa. Mas tão logo se virou e uma voz o chamou de volta:

- Ei, por favor... você!... Serias tu por acaso um mensageiro? - O cavaleiro voltou-se imediatamente em direção ao pequeno banco de pedra cravado no jardim. Diante dele, sentada naquele velho banco quebrado, uma jovem mulher de face pálida e triste o observava. Estava coberta por um vestido branco, e uma espécie de chapéu que lhe cobria a cabeça e só lhe revelava o seu rosto. E não obstante chovesse muito, ela lhe aparecia completamente seca!

- Sim... eu sou... – respondeu o cavaleiro, tirando de sua cabeça o capuz que o protegia da chuva, completamente aturdido.

- Então, isso quer dizer que ele não virá... refiro-me ao meu amor...Eu imaginei... Já o estou esperando faz horas... Mas, não me importo de ficar um pouco mais, se ele tiver de se atrasar... O que ele disse? Se atrasará?! Ou por acaso não virá mais?... – Perguntou aflita.

- Sim ele virá... quero dizer... ele gostaria de vir... – respondeu.

- Então por que não veio? Diga-me?! O que o impede? – disse ela, levantando-se - O que pode estar acontecendo? Por acaso ele não me ama mais?! Saberia me dizer, jovem mensageiro?!

- Sim ele a ama, senhorita!... porém, o que o impede de vir não tem relação com os sentimentos dele por você.

- Como podes saber, se és apenas um simples mensageiro?

- Até mesmo os simples mensageiros conhecem o amor, minha senhora... E os olhos de um homem, contam muito sobre ele...

- E o que vê nos olhos dele? – perguntou a aparição.

- Um grande amor por ti. – respondeu-lhe.

Ela pareceu sorrir:

- Que mensagem traz pra mim, nobre portador?

- Eu não lhe trago uma mensagem, trago-lhe um presente, o qual ele muito recomendou.

- Um presente?!

- Sim. Ele mesmo o fez, com as próprias mãos – disse-lhe o cavaleiro, entregando-lhe a pequena caixa.

Ela a trouxe com carinho junto ao peito. E quando a abriu, um singelo anel dourado revelou-se, guardião hábil de uma diminuta pedra azul, cuidadosamente lapidada. Era um anel de noivado, feito com as próprias mãos, e coisas feitas a mão naquele reino, tinham um valor que não se poderia medir.

A jovem suspirou profundamente... ela colocou o anel com carinho no dedo, e sorriu:

- Lembro-me de quando encontramos esta pedra... no riacho... lá embaixo. Agora é a pedra mais preciosa do mundo, para mim.

A chuva cessou instantaneamente! O sorriso dela abriu o tempo, e com o sol, revelou-se a sua verdadeira beleza. Agora, trajava um épico vestido azul claro, onde repousavam gotas de orvalho, e os seus cabelos amarelos, presos em cima por um belo arco prateado, desceu longo até quase ao chão. A jovem aproximou-se do cavaleiro, com toda a beleza espiritual que ela trazia, tão palpável e sólida quanto se viva estivesse. Pegou então na sua mão, e beijou-o no rosto, radiante e grata.

- Obrigada, jovem mensageiro! O que trouxestes até mim hoje, não tem preço! Espero que um dia, eu possa pagá-lo pelo que fez por mim, e pelo meu doce príncipe... Diga a Helêus que o amo, e que esperarei por ele, como ele esperou por mim. E diga também a ele, que não se lamentes mais, pois nosso amor foi apenas adiado. Ele era tão grande, que não cabia neste mundo... Assim como o amor que tu também carregas, não coube...

A jovem caminhou em direção ao desfiladeiro da montanha, mas o chão não lhe fez falta. Caminhando no ar, flutuando em sua glória, acenou uma última vez para o cavaleiro, e disse-lhe uma última coisa:

- Não se preocupe, menino, há muito mais luz de onde essa veio. É onde os que nos amam esperam por nós. Diga a Helêus, que embora o seu corpo esteja velho, a sua alma não envelheceu. E foi isso que eu sempre amei nele, a sua alma.

Ela desapareceu então. E no ar, por uns breves momentos, ficou o fraco brilho azul do anel que ela levou no dedo.

O cavaleiro então respirou fundo, como se ele mesmo tirasse um grande peso de sobre os ombros. O sol brilhava e os pássaros cantavam como há sessenta anos, e o guerreiro tirou de si a pesada capa de chuva que o cobria. Hoje, ele cumpriu a mais nobre, bela e épica missão de toda a sua vida, e ele não precisou desembainhar a sua espada e nem atravessar as sendas do mundo para fazer isso. Só precisou de coragem e de compaixão...

Deixou-se perder o olhar na imensidão do horizonte a frente de si, como se quisesse vislumbrar os portões do infinito, brevemente.

Sorriu, penalizando a si mesmo, e voltou-se para as escadas, o caminho o esperava. Viu sobre o banco um pequeno ramalhete de flores deixadas pelo espírito. Eram rosas, da mais linda espécie! O vento espalhou o seu perfume no ambiente, e o cavaleiro lembrou-se do seu amor de outrora, levada também pelas maquinações do destino. O nome dela era Rosalinda.

Foi a última vez que o vi chorar.

London
Enviado por London em 23/12/2014
Reeditado em 08/01/2015
Código do texto: T5078643
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