UM ROSTO NA ESCURIDÃO - EPÍLOGO

Havia um prenúncio de chuva naquela noite. O dia cinzento, embora firme, ameaçava com essa possibilidade. Mas não chovera. Caía uma finíssima névoa fria que turvava a visão apesar da lua cheia. Eugênia sentia muito frio, e quando ouviu aquele “oi” um frio na espinha cruzou seu corpo norte sul e arrepiou os cabelos. Virou-se para a direita, onde estava aquela pequena planta que balançara.

__ É você? Balbuciou Eugênia, soletrando.

__ Sou eu. E saiu e foi para a estrada.

Súbito disse:

__ Vamos ficar mais aqui, mais às escondidas, pois se alguém nos ver corremos muito risco.

Eugênia deixou sua timidez de lado e foi dizendo logo:

__ Eu nunca mais tive sossego na alma depois que meus olhos cruzaram os seus naquela tarde. Eu não deixei um só dia de pensar em você.

E começou a contar sua trajetória, desde a doença, até o noivado com o Paulo. Conversaram. Cada um contou sua vida e o encanto cresceu. E se marcou novo encontro. Esse primeiro durou quase quatro horas. Eugênia voltou como saiu, pé ante pé, foi ao quarto, mas não dormiu. Passou a noite observando a janela e depois a chuva que começou a cair pouco antes da aurora.

Eugênia desceu as escadas e foi direto pra cozinha. Abraçou Bernarda apertado e respirou profundamente. A escrava virou a cabeça para trás com aquele olhar de o que foi menina? Mas não perguntou, apenas pigarreou um hum hum. Ela no fundo sabia que a menina estava aprontando. Nunca havia notado tão grande e belo sorriso no rosto de sua sinhazinha. Eugênia ficou assentada no banco de madeira ao lado do fogão à lenha, e silente por quase uma hora, enfim desatou a falar:

__ Bernarda, você já teve sonhos?

__ Vixe Maria, mas que conversa estranha - falou balbuciando.

__ Bernarda, você já sentiu que podia ser feliz?

__ Olha menina, falou a mucama com dedo em riste, não sei porque você está assim com essa cara de boba, mas sinhazinha Eugênia, toma juízo menina. Não me diga que está se engraçando com você sabe quem.

__ Que nada Bernarda, estou é deveras muito feliz! Só isso, tive um sonho maravilhoso essa noite e acordei pensando nele.

E a mucama desconfiada, e a sinhazinha com cara de boba. O dia inteiro. Paulo tem vindo todos os dias após o almoço para ver a menina, que com ele, sempre retraída. E observando-a antes de chamar e entrar não pode não perceber que Eugênia mudava de ares quando o via. Parecia ser triste a seu lado.

__ Patrão, gritou o escravo Francisco, vai chover, quer que eu recolha o milho?

E ninguém respondia.

__ Patrão, ô patrão. Patrão... e insistia até que Paulo se deu conta.

__ Hã, o quê Francisco? O milho, chover, sim... Chame os escravos na lavoura e vão guardando tudo.

Paulo já não conseguia a firmeza de sempre com os seus. Paulo continuava com o trabalho da fazenda do senhor seu pai, mas ultimamente andava estranho. Coisas de amor, diziam os escravos e suas irmãs.

Enquanto vinham cantarolando e guardavam o milho naquela cantoria-lamento, Paulo pensava em como Eugênia estava mudada e resolveu observar e ficar na espreita.

Eugênia já ficava numa cadeira próxima à janela da grande sala de estar, no andar de baixo olhando para a rua. Atitude que seu pai estranhava, mas que também não significava nenhum problema. Mas perguntou:

__ Ó Bernarda, que diacho tem essa menina que agora não sai dessa janela?

__ É que de tanto viver fechada meu senhor, agora gosta de sentir o ar que vem das janelas. Vai ver que é isso!

__ Mas não podia ser da janela dos fundos? Ou do quarto dela? Diacho de coisa esquisita é a tal de mulher.

Mas também não deu muita importância.

Passaram-se duas semanas. Eugênia encontrou-se com aqueles olhos castanhos ainda três noites. E voltava sempre mais eufórica, e mais alegre. Bernarda já havia advertido a moça da desconfiança do pai...

__ E decerto Paulo há de estar desconfiado também – falou a mucama em tom de ameaça.

Mas nada mudaria Eugênia

Noite anterior, na estradinha atrás da sua casa Eugênia havia tomado uma decisão.

__ Vamos fugir. Não me importa mais nada. Eu quero ir atrás da nossa felicidade. Meu pai há de entender com o tempo.

__ Mas não temos riquezas se fugirmos. Para onde iremos?

__ Eu tenho. Meu pai guarda as joias de minha mãe e tem ouro guardado em casa. Podemos vender e dá pra comprar uma casa bem longe daqui. Depois a gente avisa para nossos pais não se preocuparem.

__ Eu amo você, eu preciso do calor da sua pele e ardor dos seus beijos. Mas fugir? Eu não sei, a gente precisa pensar melhor. Afinal tem o Paulo, seu noivo, ele pode se enfurecer e vir atrás de nós. Temos que tomar muito cuidado.

Eugênia entendeu que, apesar do amor forte, precisaria se conter um tempo mais. Aquele dia voltou triste. E triste ficou durante o dia contemplando o lago e as torres da matriz. Mas marcaram outro encontro.

Paulo, que sempre ia à casa após o almoço, continuou com essa rotina mas passou a observar a casa em horários diferentes, de forma desapercebida, na taverna da esquina ou no barbeiro de onde se podia ver o casarão. E não notou nada diferente. Um dia, resolver olhar a casa ao anoitecer. Viu apagarem-se as luzes e o sobrado adormecer.

Naquela noite Bernarda acordou com o coração acelerado. Teve sonhos estranhos, abismos, corredeiras violentas e via uma árvore seca. Ficou dia todo angustiada. Observava o senhor trabalhando, Paulo cada dia mais estranho e Eugênia silente. Ela estava cada dia mais com frases curtas. E sem sentido. Naquele dia a menina foi ao lago, sentou-se a seu lado no banco perto do fogão à lenha e sorria ingenuamente. O casamento seria em dois meses e já se estava quase tudo arranjado. Ela pensava em como faria para se livrar de Paulo. Não havia outra solução senão a fuga.

__ Bernarda, você ficaria triste se eu fosse embora daqui?

Iria morar comigo?

__ Quê isso sinhazinha? Que conversa esquisita?

__ Eu vou me casar, vou me mudar, queria que viesse comigo.

__ Ah sinhazinha, sou escrava, não sou dona da minha vontade. Isso quem determina é o senhor vosso pai.

__ Mas e se eu fosse pra outro lugar e levar você comigo? Na minha casa você não seria escrava. Poderia ter sua casa se quisesse e poderia ir onde desse vontade...

E Eugênia falava e sonhava, enquanto a mucama apenas franzia a testa e pensava e pensava e pensava.

Paulo chegou naquele fim de tarde cansado da fazenda. Tirou as botas e relaxou os pés. Pensou: hoje eu vou espiar a Eugênia é de noite, vou ver que horas aquela menina vai dormir. Tem andado com os olhos vermelhos demais, deve estar sem sono. Pensava ele que ela estava ansiosa com a proximidade do casamento. Virou-se para o lado, gritou a irmã e pediu que ela o acordasse antes das vinte horas. Dormiu.

Naquele casarão do fim da rua, com lago ao fundo donde se pode ver as torres da Matriz de Nossa Senhora da Piedade, Eugênia imaginava uma fuga. E pensava nas consequências, no desgosto do pai, na preocupação de Bernarda e no falatório que seria na cidade. Pensava ela que o pai não mais poderia continuar vivendo naquele lugar. Quiçá morreria. Por outro lado ficava imaginando sua vida ao lado de Paulo, mulher oprimida e obediente, silente e nada mais. E ainda mais ficava imaginando como seria sua vida ao lado de quem amava. Eugênia tinha pouco tempo para resolver sua vida. Passavam mil imagens sobre sua vida futura. Eram as inúmeras projeções a que todos nós estamos acostumados. Mas as de Eugênia eram carregadas de emoções fortes. E de vidas perdidas. Muitas. A dela talvez.

Havia combinado a fuga, mas não dera certeza. Paulo cada dia mais desconfiado de seu jeito suspeitava já mesmo do pior. Chegara ao absurdo de pensar que a noiva tinha outro. Absurdo porque impensável para uma jovem que mal saía de casa e sempre acompanhada do pai.

Seguiram-se mais três encontros na estradinha atrás da sua casa. Um dia Paulo chegou a estranhar o acender de luzes no quarto já tempo depois de terem sido apagadas. Mas não vira a menina sair, sempre pelos fundos. Mas desconfiou e ficou à espreita. Era uma terça-feira. Uma semana antes do noivado. Eugênia seguiu o ritual da saída, esperando todos irem dormir, desceu as escadas e foi ao encontro de seu verdadeiro amor.

__ Desculpe-me. Atrasei hoje – disse Eugênia sorridente.

__ Tudo bem, eu sempre chego uma hora antes do previsto. Não quero nunca perder a oportunidade de tocar seu rosto tão suave quanto a noite.

__ Eu decidi. Meu casamento será no sábado da outra semana. Meu pai já está com toda a festança programada. Vamos fugir na quarta-feira anterior. Será um dia de festa em minha casa. O senhor meu pai vai dar um jantar e todos festejarão. Assim que dormirem, nós vamos.

__ Mas você tem certeza? Pensou nas consequências todas?

__ Já chega. Sei de tudo, não posso mais pensar. Tomei minha decisão. Sei que vou ferir muita gente, mas não posso continuar me ferindo a cada dia.

Após um silêncio de morte, um suspirar profundo...

__ Então. Está combinado.

Dia e hora marcada. Destino selado. Expectativa. Dois dias seria o prazo. Tudo pronto.

Eugênia estava silente. Bernarda estranhava.

__ Sinhazinha, não tem nada pra contar não?

__ Não Bernarda. Tudo vai ser como tem que ser.

O Pai notou que a jovem entristecia e estava mergulhada em pensamentos. Paulo continuava observando a casa e estranhava que as luzes se acendiam horas depois que todos iam dormir. Estranhava o silêncio de Eugênia. Resolveu vigiar a noite toda.

Era uma quinta-feira. Eugênia tentou não chamar a atenção nem ficar diferente naquele dia. Almoçou na presença do pai e do noivo. Compartilhou sonhos com a escrava e contemplou o lago, de onde se podia ver as torres da Matriz da Piedade. À tardinha, após o jantar sentou-se no banco da cozinha.

__ Bernarda, quando eu me casar vai sentir minha falta? Porque eu sim, vou sentir muita saudade.

__ Vou sinhazinha, mas vou te ver sempre. O senhor seu pai permitindo irei lhe ver. E, além disso, poderá vir aqui.

__ Sim.

__ Mas porque está triste minha menina? Quer colo da mãe preta?

Eugênia nem esperou a mucama terminar e sentou-se, sendo longamente acariciada em seus cabelos. Lágrimas poucas rolaram do rosto da noiva. E sobrou um pensamento abafado no peito de Bernarda, que suspirava ao olhar o rosto da menina.

Apagaram-se as luzes do casarão. Paulo observava. A noite estava enevoada. E como havia prometido, continuou esperando. Aproximou-se. Percebeu quando já, entre um gole e outro de aguardente uma fraca luz acendeu-se no quarto da menina. Viu vultos por entre as janelas. Esfregou os olhos e olhou novamente, percebendo movimentação no quarto.

O coração de Eugênia estava palpitante. Havia colocado dois vestidos e as jóias em uma bolsa, juntamente com outros poucos objetos e descia as escadas. Antes olhou para o fundo da cozinha, onde dormia Bernarda. Quis abraçá-la. Pé ante pé saiu pela porta dos fundos. Paulo rodeava a casa e parecia não crer no que via. Via sua menina sair de casa, altas horas da noite e passar por uma abertura no muro e encaminhar-se para a estradinha. Era ela. Ele tinha certeza apesar do nevoeiro que cobria aquela noite.

Seguiu a noiva e estava enfurecido de ódio. Imagina o que poderia ser, tinha certeza. Sua noiva tinha um amante. Como pode? Tão meiga, tão tímida... mas apesar do álcool já fazer efeito delirante, ele a seguiu friamente.

__ Oi – disse como de costume ao chegar à estrada. Está aí?

__ Sim, já faz duas horas que lhe espero.

Paulo estava cego de raiva. Sem ser percebido, há poucos metros de distância ouviu os sussurros de amor. Esperou atônito. Foi quando viu, em estado de êxtase, um abraço seguido de um longo beijo. Tentou reconhecer, mas não via nada além de um rosto na escuridão em meio ao orvalho. Sacou sua arma e deu um tiro direção de quem beijava sua noiva. Ouviu-se um longo grito de horror. Paulo gritou:

__ Toma o que merece seu safado! E soltou um grito que acordou toda a vizinhança. Aos poucos chegaram o pai de Eugênia, a quem ele foi narrando o acontecido. A mucama, mãos à cabeça gritava por Nossa Senhora e pelo nome da menina.

__ Onde está minha filha?

__ Correu. Beijava à noite cheia de névoa e correu. Eu mesmo vi um vulto que balançava os cabelos correr fazenda adentro.

Ainda conversavam quando a mucama se derramou em lágrimas e gritos de desespero, ao contemplar no meio da estrada, sem vida, o corpo da sinhazinha que havia criado como filha.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 18/12/2014
Código do texto: T5074275
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