PAIXÃO, ROCK N´ROLL E DOR ( UM CONTO EM TRÊS PARTES)

Conheci Carlos no nosso primeiro ano de faculdade : eu estava em uma das turmas de Letras, e ele cursava Direito, seu projeto de vida desde o Ensino Médio.

Nos aproximamos quando ele me apresentou André seu primo com quem saí durante um mês, até ele sumir sem deixar explicações. Não fiquei com raiva, porque ganhe um melhor amigo: se antes Carlos era só o primo gente boa de um cara gato que eu paquerava, em poucas semanas ele se tornou uma companhia indispensável.

E com nossas saídas aos fins de semana começaram as insinuações:

- Ah, mas vocês nuuunca?- a sílaba estendida sempre acompanhada por risadinhas.

- Se não aconteceu, Sandrinha, vai acontecer.

Como reagíamos? Simples, brindando as especulações com muita cerveja e tequila. E contrariando todas as previsões de que amizade entre homem e mulher não existe, mantivemos nosso relacionamento após nos formarmos.

Logo que deixei a faculdade consegui um emprego em uma grande rede de escolas de idiomas e Carlos e um grupo de colegas começaram a batalhar um lugar ao sol, abrindo um escritório de advocacia juntos. Nossa vida amorosa? A minha havia começado um lindo capítulo chamado Rodolfo e a de Carlos, bem...

Ele dizia não estar disponível para nenhum relacionamento pois seu foco estava todo na carreira, que apenas começava. Nossos conhecidos, como sempre nos inundavam de perguntas, palpites furados:

-Tá vendo, ele sempre gostou de você!

Mas Carlos e Rodolfo acabaram tornando-se amigos (daqueles que passam o sábado a tarde no futebol) e eu não encontrava o mínimo sinal de que todas aquelas fofocas teriam sentido. Carlos estava longe de ser o tipo submisso e sempre mantinha alguns casos esporádicos, com mulheres que eram apresentadas a nós por uma noite e depois desapareciam.

Numa quarta feira em que Rodolfo estava viajando a trabalho o convidei para comer um hambúrguer . Eu sabia que ele havia passado o fim de semana em São Paulo com os rapazes do escritório. O que eu não imaginava era que ele teria uma novidade que mudaria a nossa vida.

- Conheci alguém.

E para meu espanto, fui extremamente grossa.Sem querer, juro.

- Como assim? Em um fim de semana? Em uma noite?

Ignorando minha atitude explicou: Luciana era amiga de Cleiton, um de seus sócios. Cantora, estava se apresentando no bar onde eles passaram a noite de sábado. Uma conversa, vários sorrisos, algumas coisas em comuns e aconteceu : passaram a noite juntos no apartamento dela. E meu amigo começou a semana apaixonado.

Mostrou-me uma foto: Luciana ao microfone, vestindo uma regata preta de cetim e calças de couro. Cabelos loiros,uma franja ao estilo pin-up , tinha no ombro uma linda rosa tatuada .Durante aqueles nossos sete anos de amizade eu havia conhecido quase todos os seus casos e ela tinha um estilo diferente. Deixei a estranheza de lado:

- Mas e aí, quando vou conhecê-la?

Respondeu que assim que ela abrisse um espaço na agenda da banda para tocar em nossa cidade. Tentei me redimir pela grosseria e me dispus:

- Não precisa, podemos ir para São Paulo! Quero conhecer logo a responsável por toda essa alegria.

Ao relembrar aquela noite sinto raiva por não ter percebido que fui a primeira a ser cegada pelo brilho naquele sorriso que era tão meu, tão amigo, tão conhecido.

*

“Ah, cantoras e suas agendas atribuladas” justificava Carlos toda vez que perguntávamos quando finalmente ele nos apresentaria Luciana.

Em uma semana ela estava no Rio de Janeiro,na próxima em Santa Catarina. Perguntei incontáveis vezes quando ela tocaria de novo no bar onde eles se conheceram. Nossa cidade é perto de São Paulo e eu estava curiosa.

- A banda está ficando famosa. São Paulo não é mais prioridade.

Rodolfo me pedia para não pressionar, talvez ele quisesse dar mais um tempo até que eu, “sua melhor amiga” ( título que para mim a essa altura já não fazia a mínima diferença)aprovasse o namoro. Carlos viajava toda semana para encontrá-la e nunca podíamos acompanhar. Nós, que sempre o apoiamos em seus tempos de solteiro fomos postos de lado. Enquanto meu namorado tentava lidar com a minha irritação, Carlos mudava cada vez mais. E se distanciava de mim.

- Mas Sandra, é normal. Começo de namoro, você já passou por isso- Até minha mãe estava a par da situação.

Não, eu não havia passado por isso : nunca havia escondido nada daquele que era meu amigo e que em dois meses se tornou um completo estranho. A única coisa que parecia ser verdadeira era o sucesso que Luciana e sua banda estavam alcançando.

Era domingo, eu estava acabando com o último pote de Haagen-Dazs da geladeira do Rodolfo quando ele me chamou na sala:

- Amor, olha quem está na TV.

Reconheci os cabelos platinados, a tatuagem de rosa: Luciana se apresentava com sua banda em um programa de música independente. Me surpreendi com sua voz: forte, rasgante, lembrava minha adolescência ao som de Alanis Morrissete. Liguei para Carlos.

Ele pareceu assustado quando contei que estava assistindo a sua namorada cantar. Parecendo incomodado, apenas me perguntou o que ela estava vestindo.

- Um vestido vermelho, de um ombro só. Lindo, aliás.

- Presente meu, agora preciso desligar. – e me deixou muda segurando o telefone.

Quase perdi o final da apresentação e Luciana com sua boca vermelho mate avisar:

“ Venham nos ver , tocaremos sábado em São José dos Campos”

Quase derrubei o pote de sorvete. Meu cérebro deu um estalo. Gritei:

- Baby, temos programa para o fim de semana.

*

Melhor que esperar Luciana tocar na capital foi saber que seu próximo show seria na cidade onde moramos. Decidi não contar para Carlos que finalmente veria sua diva no palco.

Não o encontrei durante aquela semana : Luciana folgou e eles estavam em uma viagem romântica. Mas no sábado ele me chamou para correr e quando perguntei sobre a viagem abriu um sorriso tão absurdo que por um momento parecia que eles haviam se casado em Paris,

- Incrível, a melhor. Estou cada vez mais apaixonado.

Aí fiz a minha última tentativa:

- Tá com medo de me apresentar e de que eu fale algo ruim a seu respeito?

Gaguejando, só me respondeu:

- Semana que vem a gente combina alguma coisa, prometo.

Não precisava prometer. Eu havia me cansado e partiria para a ação : precisava conhecer Luciana ,saber quem era a mulher que estava causando a situação que me incomodava.De pessoa presente, alegre, leve, Carlos havia se tornado, seco, distante., cheio de segredos E para mim amor estava longe disso. Não queria odiá-la antes de conhecê-la, mas confesso que estava ficando difícil.

Enquanto nos arrumávamos Rodolfo ainda tentou me dissuadir da ideia, mas eu estava com as respostas mais afiadas que meu salto quinze.

- Não adianta, vamos logo.

E fomos. Assim que entramos no bar, Rodolfo ficou pálido: Carlos já estava lá, em um mesa no ponto mais escuro do salão, perto do banheiro. Ao nos ver seu rosto mudou. Parecia traído, uma pessoa que eu nunca havia visto antes. Sua reação só não foi mais estranha que vermos um furacão loiro vindo em nossa direção :Luciana era realmente linda e parecia estar tomada por algum sentimento maligno,um ódio imenso.

- Vocês conhecem esse cara? Ótimo, tirem ele daqui já, ou chamo o segurança.

Carlos tentou se levantar sem falar nada, mas Luciana o agarrou pela manga da camisa. Gritava coisas que para mim soavam desconexas, mas que Rodolfo entendeu perfeitamente:

- Amor, eles não estão juntos.

O nervosismo dela era tão grande que pediu para que Rodolfo segurasse Carlos, que tentava fugir daquela cena estranha.

- Seu amigo é um psicopata! – me entregou um desenho de seu rosto. Reconheci a assinatura: a letra de Carlos.

Começou a me contar coisas nas quais eu poderia levaria uma vida para acreditar:

Ela namorava e sem coragem para se aproximar Carlos começou a mostrar seu interesse de uma forma intimidadora aparecendo em todos os seus shows, mandando presentes caríssimos.

Tentei pôr panos quentes:

- Mas você é uma artista, tem admiradores, é natural.

-Claro que não é! Principalmente se o "admirador" (fez as aspas com as mãos de unhas compridas e coloridas de azul) começa a te perseguir, a criar uma vida com você- abriu seus e-mails pelo celular. Se eu tivesse algum problema do coração, teria enfartado:

A caixa de entrada estava abarrotada de mensagens. Ele tinha criado uma realidade particular: a chamava de meu amor, dizia que ela estava linda com as roupas que ele havia dado, falava de uma viagem que iriam fazer em seu aniversário de namoro.

Lembrei do vestido vermelho no programa de TV, de seus sumiços aos fins de semana. Senti frio,tive medo.Luciana tremia, não sabia se podia confiar em mim, mas era claro que ela e Carlos precisavam de ajuda.

- Por favor, fala com ele. Me disseram para denunciar, mas o Cleiton é meu amigo e me prometeu fazer algo. Tô esperando até agora

Dei-lhe um abraço sincero e tentei acalmá-la. Mas o grito de Rodolfo tirou de mim qualquer possibilidade de uma atitude sensata.

- SANDRA, PELO AMOR DE DEUS!

Ele chorava, olhando para o meio da rua e um grupo de pessoas parecia não acreditar no que estava vendo. Era a cena que eu levarei mais que uma vida para esquecer:

O corpo de Carlos caído no asfalto , um carro parado , o motorista gritando ao telefone que tinha feito uma besteira. Era surreal ,pavoroso. E eu não entendi nada.

- Ele me pediu para pegar uma cerveja e disse que esperaria aqui fora. Só ouvi o carro, os gritos, o barulho. Meu Deus!- a voz do meu amor me soava irreconhecível.

A dor parecia quebrar meus ossos, minhas forças deixaram meu corpo. Luciana juntou-se a mim, os olhos vazios,sem saber o que dizer:

- Isso foi culpa minha.

Eu não conseguia culpá-la. Não sentia raiva. Eu só me castiguei desde o primeiro momento.

“ Carlos, você deveria ter falado comigo.”

E até hoje, três anos depois me vejo em um mar de interrogações : por que me escondeu? Por que tanto medo de se mostrar verdadeiramente para Luciana?Por que se jogar em frente a um carro? Do que ele teve vergonha?

Logo depois descobrimos fotos e rascunhos de cartas para Luciana por todo o seu quarto, em caixas, envelopes. Sua mãe disse que não queria me mostrar, teve medo de que Carlos fosse visto como um homem fraco, sem moral mas eu só consigo lembrar do meu amigo forte,cheio de surpresas,franco que ao se ver em uma situação nova e de uma intensidade que ele sempre tão controlador não conhecia, ficou com medo, sozinho, acuado.Aquela segurança que eu admirava e até invejava um pouco se foi e eu estou há tempo demais sem saber como lidar com a solidão que sua morte me causou.

Nunca mais soube de Luciana ou de sua banda. Ela esteve no funeral e ainda se sentia culpada pela atitude de Carlos naquela noite. Foi uma passagem rápida com um abraço e um pedido de desculpas. Não discuti, pois eu mesma ainda me sinto responsável de alguma forma.

Falo com ele em minhas orações, talvez esperando alguma explicação divina para seu suicídio, para o trauma que insiste em me deixar. Quando me pego nesses momentos tento pensar em seu rosto e achar conforto naquela voz que me acompanhou por tantos anos.As memórias não se apagam, luto para que elas não me abandonem

E eu, a rockeira conhecida que adorava canções sobre sentimentos intensos ao viver o próprio final trágico fui obrigada a crescer, a ver as pessoas de outra forma, a lidar com a perda inesperada para não enlouquecer.

Porque agora ninguém mais cantará Something ao telefone com uma voz horrorosa para me fazer (ele torturava a minha canção favorita, mas era impagável) ou dançará aquela coreografia imbecil quando eu ouvir Love Hurts. O que me era música agora é silêncio que dói.

Será que um dia alguém escreverá uma canção que me ajudará a lidar com tanta saudade?

D.SConsiglio

Débora Consiglio
Enviado por Débora Consiglio em 13/12/2014
Reeditado em 13/12/2014
Código do texto: T5067739
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