A CHUVA

Contos Sensuais

Ghiaroni Rios

Era uma sexta-feira, dia de dar cascudo no capeta. Sabe, bater na sua cabeça com o nó dos dedos, insultá-lo. Você chegou molhada, enchuvalhada, por dentro e por fora. Respingada de gotas de chuva. Chuva, bênção dos céus, eu sei! Mas tem esses vírus nojentos, gripe e coisa e tal.

Dar cascudo no capeta é significativo. É mesmo desafiá-lo. É dizer: posso mais que você. Quero o bem, a alegria, o prazer, a vida. Você (capeta), não pode comigo...

Me deu uma vontade (paternal até, quem sabe), de pegar uma toalha macia e secar teus cabelos e espantar aqueles vírus nojentos. Aí então tirar sua roupa molhada, te vestir uma roupa macia de tão velha, te aconchegar no meu peito, e fazer dormir. Ai o meu peito! Quer ser maior que o mundo!

Você dormiria em braços de anjo-da-guarda e a dor pelos amigos paulistas, que te fizeram chegar assim, molhada, enchuvalhada, desamparada, triste, revoltada, sumiria como por encanto.

E eu sentiria um prazer, uma alegria tão terna, uma energia tão suave (te tendo dormindo nos meus braços), que, criança também dormiria feliz. Sabe, uma energia melhor (quem sabe) que a energia do sexo. É, porque a energia do sexo vem de forma forte, violenta, em doses grandes. Já essa energia que se transmite no carinho; na amizade, no afeto, vem em doses homeopáticas, com medidas constantes. Sem a violência da paixão, e por isso mesmo mais suave.

Fácil entender sua dor pelos amigos paulistas. Haviam “caído”. Estavam presos sabe-se lá em qual porão nojento da ditadura, em mãos de peritos carniceiros.

E você desesperada. Já não contém mais o pranto. E só consigo acariciar seu tornozelo, como se nele estivesse sua energia vital. Sei sim, como sei. Um deles, além de amigo, de camarada, de lutador incansável (“há homens que lutam toda a vida”), é seu amor, sua paixão, seu amante. Ah o amor no meio da luta... Oases em deserto de homens.

Você quer ir para a luta armada, para a clandestinidade. Mas se você sofrer, morrer, morro também. Como te dizer agora (acariciando seu tornozelo) que também te amo. Que você é a musa do grupo, unidade?

Que além de toda essa luta política (esquerda/direita volver!), muitas vezes nojenta, é você que nos une.

Coloco tanta paixão no carinho ao tornozelo que você começa a perceber. Estou ardendo de desejo, frenético.

Não, você não vai para a clandestinidade, não deixo! Egoísticamente. Anônima, escondida, feito bicho? Não deixo! Tentaremos qualquer coisa. Um advogado que não se borre diante dos “homi”. Um Sobral Pinto quem sabe. Sequestraremos um embaixador (parece que faço amor com seu tornozelo) e os resgataremos. Farei tudo para libertá-los e ver seu sorriso voltar e encher o mundo. Que me importa se só me fique a maciez de seu tornozelo?

Mas você enlouqueceu. Quer explodir o Departamento de Ordem Política e Social, o famigerado DOPS. Mas e os inocentes? Se é que existem inocentes nesta luta! E se eles não estiverem presos lá? Existem tantos porões nesta maldita ditadura. E eu que morro de medo de ser preso. Não quero deixar que você e seu tornozelo percebam meu medo. Acho que eu não resistiria às torturas. Nasci para viver. Alguém disse: “só se morre por aquilo de que se pode viver”, será que vivo da minha ideologia? E esse medo de pirar sob as torturas, de não ser mais eu, como se eu fosse imprescindível para o mundo. Ah os meus medos!

Mas não posso deixar você perceber meus medos, são tantos. Carrego mais ternura nos dedos que estão no seu tornozelo. E essa angústia de não ter certeza de estarmos certos. E essa luta louca que está tomando proporções violentas, chegando aonde está chegando.

Mas essa energia forte, que faz o mundo, é mais forte. Começamos a fazer amor loucamente, guerrilheiramente. Seu tornozelo agora é todo seu corpo, macio. Você, certamente, fazendo amor de tristeza, de humilhação, de revolta, de desejo mesmo quem sabe, mas sobretudo de dor. E eu, ah eu, fazendo amor de amor!

dedicado a Janice.

ghiaroni rios
Enviado por ghiaroni rios em 09/12/2014
Reeditado em 27/11/2017
Código do texto: T5063576
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.