A câmara

A primeira vez que eu te vi, eu não lembro, pode ter sido em um dia qualquer, em qualquer lugar. O importante é: da minha câmara escura, eu comecei a te observar. No começo sem nenhum interesse particular; até tornarmos-nos amigos: você era como uma criança, alegre, despreocupada e sorridente, e isso chamou minha atenção. E dia após dia, eu comecei a querer você. Nas primeiras semanas eu quis pelo gosto da conquista, para saciar o ego; depois eu quis por desejar teu corpo, cheio de curvas e rebolados, e foi aí que ficamos juntos pela primeira vez. Você, nervosa e agitada, enlaçada pela cintura, me beijava. Tinha gosto de vitória.

No entanto, os lábios que você beijava não eram os meus ao todo. Se por um lado era a minha carne que tocava a tua, havia uma máscara em meu rosto. E apesar de você não saber ainda, você deve ter notado nos momentos que eu deixei ela deslizar um pouco, como naquela vez que eu te segurei um pouco forte demais naquela briga, ou quando eu rasguei tua camisa enquanto estávamos na cama. Culpa sua, que mexia demais comigo.

Um dia então, na minha câmara escura e com as máscaras espalhadas no chão, me peguei pensando no motivo de eu ainda estar contigo. Eu já tinha te conquistado; já tinha beijado os teus lábios e abusado das tuas convidativas curvas. Então, por quê? Me olhei no espelho procurando alguma doença, algum traço de loucura, mas não achei. Joguei o espelho longe, explodindo-o em um milhão de cacos de vidro. Passada a raiva, eu sorri comigo mesmo. Podia ser realmente interessantes estar sentindo-me daquela maneira, eu pensei. Poderia ser realmente interessante - a palavra engasgou na garganta- gostar de alguém.

Estávamos recostados no parapeito daquele primeiro andar, como ficávamos toda sexta-feira de noite, quando eu te peguei com o olhar perdido no meu. Você parecia indagar a si mesma onde tudo aquilo iria parar, ou talvez estivesse imaginando o que eu estaria pensando, não sei. Eu sorri. Ainda assim, você parecia que iria chorar a qualquer instante, e eu tive uma vontade enorme de te abraçar, que foi justamente o que eu fiz. Ficamos calados durantes longos minutos, sentindo somente a troca de calor entre os corpos e o cheiro um do outro. Eu brincava com teu cabelo quando separei meu corpo do teu, ainda conservando-o entre os dedos. Como quem não quer nada, pedi, naquele exato momento, enquanto sorria e olhava profundamente em teu olhar perdido, para você ser minha namorada. Seu olhar mudou mais em um segundo que eu jamais tivera visto antes: hesito, surpresa, indecisão e, por fim, um brilho sem igual. Você pulou em mim quase como uma louca, e entre beijos, disse-me, baixinho e corada, que aceitava.

As coisas eram diferentes agora, nós nos víamos todo o dia e por vezes passávamos o dia inteiro juntos, ou ao menos parte dele. À medida que íamos os conhecendo mais, tendo mais intimidade, eu começava a me perguntar por quanto tempo mais eu poderia manter as máscaras. Quanto tempo até eu ter de mostra-lá a câmara escura? eu me perguntava. E não demorou nem um mês. Foi quando voltávamos daquela festa, o aniversário de um certo alguém. Havíamos passado a noite lá, eu bebendo, como sempre, e você com suas amigas. Não bastasse o álcool, já me fazendo largar as amarras, você ainda inventou de ficar de papo com um cara qualquer lá. Foi demais. Voltamos a viagem inteira calados. Lembro seu estranhamento, você inclusive perguntou o porquê de eu estar daquela maneira, coisa que eu devo ter respondido com uma careta horrível. Quando chegamos no quarto, explodi.

Lembro a cena quase com perfeição, a porta batendo atrás de mim, você com o salto na mão, sentada na cama, olhava para mim. Sua expressão de aborrecimento só fez irritar mais ainda o que se contorcia por trás da máscara. Arranquei a gravata com uma mão só, estragando tanto o tecido delicado quanto machucando o meu pescoço. Mas eu nem me importei. Você, no entanto, parece ter se incomodado e feito exatamente o que eu esperava, perguntado o que estava acontecendo. Era só o que eu estava esperando. Gargalhei com a gargalhada mais retorcida que eu podia. Então sorri. Lembra? Aquele sorriso psicótico. Em seguida joguei tudo na sua cara com um tom e voz que não eram meus, para você. Você caiu em lágrimas, como era comum em nossas brigas. Desta vez eu não cedi. A discussão continuou. Segundos, minutos, horas? Eu não sei quanto tempo durou, mas em um dado momento você se levantou e fez menção de sair.

Você estava na minha câmara negra. Você estava me vendo sem máscara. Não importava quão assustada, amedrontada ou machucada você pudesse estar, você não iria sair dali naquele momento. Eu te segurei, te coloquei contra a parede e te disse isso. Seu olhar apavorado me machucou. E com a mesma paixão que eu discutia contigo antes, eu te beijei. Um beijo que você tentou negar no começo, mas ao qual acabou se entregando. E naquele momento eramos um emaranhado de dor, raiva e tesão. Te joguei na cama e arrancamos a roupa um do outro com a voracidade de quem nunca antes havia amado. No entanto, não fui doce e tampouco foi você. Sua pele ficava marcada a cada mordida minha, minhas costas ardiam em lastros deixados por unhas ávidas por pele e meus dedos enroscavam em seu cabelo com uma inexorável pegada de dor e prazer. Você era minha naquela noite e nada nem ninguém poderia tirar a tua carne quente da minha.

Daquele dia em diante as coisas nunca mais foram as mesmas. Você sabia quem eu era. E você tinha duas escolhas, se entregar ou ir embora. Você se entregou, sem amarras. Completamente. E foi aí que as coisas começaram a dar errado, não é? Não que você fosse uma flor, muito longe disso. Por trás daquele sorriso alegre e despreocupado habitavam coisas perversas. Se habitavam! Mas eu era, de longe, muito pior. Controlador, ciumento e selvagem, estas são algumas das palavras que você usou para me descrever, algum tempo depois. Você tinha dito que era minha. Só minha. Como esperar que eu fosse diferente?

Nossa rotina agora era diferente. Quer dizer, não existia uma rotina. Havia dias que poderíamos ter destruído um ao outro só com nossos olhares furiosos e dias em que nada no mundo existia senão a nossa carne faminta por luxuria. Um contrato sem palavras ia sendo forjado entre nós. Assinaturas mudas e apertos de mão inexistentes atestavam o que os dias já diziam. Eramos, cada vez mais, profundamente um do outro. No dia-a-dia submissão e comando se confundiam em um jogo onde as fichas eram a paixão e o medo.

Meses se passaram neste compasso. Travávamos uma luta silenciosa que parecia interminável. Por mais que estivéssemos desgastados, no final do dia, o equilíbrio dos machucados tornava quase saudável nossa relação. Quase saudável porque, nesta altura, já tínhamos perdido muito. Perdido amigos, de ambos os lados, vontades e até mesmo a decência, inúmeras vezes. A indecência fazia parte de nós, para falar a verdade. Qualquer momento, qualquer brecha encontrada, servia para consumarmos nosso desejo. Mas isso você sabe muito bem. Era o nosso equilíbrio, afinal. E o que poderia acabar com ele? O que poderia fazer a balança do domínio pender para um lado?

Foi em meados de dezembro, o mês da mudança. Um outro certo alguém veio a Recife fazer um concerto e você pediu para ir vê-lo. Relutante, mas orgulhoso, eu disse não me importar. Você poderia ir. E foi. Pela primeira vez em meses você estava fora da minha câmara. Fora das minhas garras, do alcance do meu sorriso e do meu beijo, e eu não gostei nem um pouco. Por três dias ficamos sem nos falar. O concerto havia sido na sexta, no sábado eu sai para beber e no domingo te ignorei o dia todo. Não estava especialmente paciente. A briga seria feia, caso você me contasse algo que eu não gostasse. E eu não poderia estar mais certo. Fomos nos ver somente na segunda. Você estava diferente, mas eu fingi nem perceber. Então perguntei sobre o fim de semana e você vacilou. Sua voz falhou bem na hora da minha pergunta, lembra? Pois é, foi dali em diante que você não poderia mais escapar. Te fiz me contar tudo.

Como quem havia cometido um crime, você contou que tinha se sentido balançada por ele, como haviam saído para conversar depois do concerto e um pedaço da paixão reacendeu. Trincando os dentes, eu escutei, calado. E quando todas as tuas palavras cessaram, fiz a única pergunta que eu poderia. -E agora?- Muito se fala sobre relacionamento aberto, sobre aceitar essas coisas, sobre ser normal, etc. Nada daquilo me interessava. Só o fato de você ter sentido esta paixão reviver me partiu. Bateu no meu ego, no meu orgulho. Matou a parte boa do amor, da paixão. Aquela parte que cuida, sabe? Pronto. Ela foi que se quebrou. Terminamos. Foi sua resposta à minha pergunta.

Poderia ter terminado tudo muito bem, se tivéssemos parado por aí. Mas não passou-se uma semana até você encher minha caixa de mensagens. A cada quatro textos, três pediam para voltar e um quarto se desculpava. Mesmo sem sua parte boa, sobrava algo de paixão dentro de mim, e foi por isso que voltamos. Nosso jogo agora estava diferente. Eu não tinha mais medo de te perder, nem vontade de te ver bem. O equilíbrio pendia para o meu lado.

Pendeu tanto que acabou sendo destruído. No final, eu que ditava o que acontecia, como acontecia e se acontecia. Você era escrava de um paixão que eu controlava com maestria. Sob o regime do meu amor você envelheceu cem anos em seis meses. Insegurança era sua nova face, se um dia fora a falta de preocupação com a vida e um olhar perdido vagava no lugar do teu sorriso. Foi aí que eu comecei a conhecer novas garotas. A beleza que me atraiu ainda existia, mas a pessoa por quem eu me apaixonara havia desaparecido, e eu precisava de um pouco de emoção. Conheci várias, tanto na realidade quanto no meio virtual. E conquistei boa parte delas, mas nunca cheguei a consumar o ato. O prazer da conquista era suficiente, não havia motivos para consumar uma traição.

Infelizmente, as coisas começaram a vir à tona, tanto você começara a perceber em que jogo havia caído quanto as histórias das minhas garotas iam sendo reveladas. Muitas delas me odiaram ao descobrir no que haviam caído e você, ainda mais, odiou cada uma delas. Odiou até a mim. Você quis terminar, eu sei. Em cada vez que você esperneou como uma criança, que me ameaçou, que soluçou até ficar rouca, eu sei que você tentou terminar. Só não conseguiu. A paixão era a droga que você tinha consumido todos aqueles meses. Foi inocência sua achar que poderia se livrar dela. Até eu ainda estava intoxicado.

Para preparar o palco para o trágico final que viria, ainda faltava um elemento entrar em cena. A traição. Se havia algo que ainda prezava por nós dentro de mim, foi aí que ele foi diluído em meio ao ódio e rancor. Você decidiu que estava cheia de nós, e em uma viagem á praia, me traiu com um cara qualquer, o qual ficou perdidamente apaixonado. Tendo me traído no domingo, após me ignorar por cinco dias, você me terminou comigo na segunda, ao me contar sobre a traição, lembra? Ah, se eu fiquei irado. E eu contei para todos os meus amigos quem era você de verdade e o que havia feito. Que vergonha. Isto tudo para, uma semana depois, te encontrar aos prantos pedindo para voltarmos. E eu aceitei, mas só para te fazer pagar. Eu já nem ligava mais.

Foram, então, daí em diante, finais de semana de festa e bebedeira. Eu, claro, estando sozinho e você em casa. Chorar havia se tornado constante na sua vida. Uns dez quilos mais magra e vivendo de uma dieta baseada em calmantes, eu acreditei que faltava um pouco para eu ter a minha "vingança". A ultima parte foi trazer minhas garotas realmente à vida, estando com elas até próximo a você. Transformando suas amigas e até sua prima em parte delas. Foi o ultimo ato da minha peça. Se meus dias eram miseráveis pela raiva, os seus seriam pela dor, a mesma que eu senti, só que singela e amplificada. Ah, não nos esqueçamos das constantes suspeitas de gravidez, que só pioravam a coisa toda. Imagino que elas tenham tido um papel crucial no que estaria por vir.

Por fim, naquela tarde que discutimos na tua casa, você explodiu. Mesmo sabendo que partilhava da culpa, mesmo submetendo-se a mim, algo dentro de você criou vida. No momento que eu estava partindo, após mais um término, você me interpelou na porta. Para a minha surpresa, com uma faca na mão. Não sendo isto suficiente, ainda tentou crava-lá em mim! Felizmente, anos de artes marciais me ajudaram. Te desarmei com facilidade, mas aí, aí já era tarde. A fúria já havia acordado dentro de mim. E foi com certa facilidade que eu te arremessei da porta da sala em direção ao sofá, onde você continuou, meio mole, após atingi-lo. Eu dirigi-me para lá e no meio do acesso encontrei-me com as duas mãos em um aperto asfixiante envolta do teu pescoço. Tão animalesco foi o aperto, que por duas semanas as marcas persistiram. Eu terminei assustado com minha própria selvageria e parti. Viemos a nos reconciliar depois, mas fora demais para mim. Quando você viajou, foi o tempo necessário para eu terminar de me desintoxicar de amar-te, tenha sido da maneira que for.

Quando você colocou os pés de novo em recife, eu pus um fim. Um ponto final em nossa história, mesmo que ela tenha continuado, ainda, em enxertos extra-textuais. Eu soube que você aumentou mais ainda a dose de calmantes em sua dieta e que achou um outro rapaz, bem, deste outro rapaz eu até sei bastante coisa, mas da sua boca mesmo.

E é por isto que você não deve adentrar na câmara escura de ninguém, meu bem. E caso este engano seja cometido, deve-se fugir o mais rápido possível daquele lugar. E daquela pessoa. Afinal, se coisas boas fossem mantidas lá dentro, as luzes não estariam sempre apagadas.