Opostos que se atraem

Domingo de outono  jogada na cama macia ouvindo a chuva caindo forte,  o corpo totalmente relaxado e um tédio que não sabia explicar. Nem o perfume  gostoso do edredom preferido trouxeram alento, o silencio começou a incomodar até tornar-se insuportável.

Traçou planos de  assistir um filme e comer alguma coisa gostosa em um shopping.  Mas o que ela realmente procurava  era acalmar o  vazio que as vezes aparecia do nada e fazia seu mundo tranqüilo virar de cabeça pra baixo. Nestas horas era preciso  sentir-se cercada de gente, ouvir vozes, ver as cores nas vitrines, ser parte do comum novamente. Gostava muito das cores  em objetos e  pessoas mas não em si.  Seria  uma visitinha rápida a normalidade, com hora certa para ir embora assim que se fartasse da mesmice.
No espelho imenso do banheiro público, retocou o batom e o reflexo pareceu bom. Nem feia nem bonita, nem alta nem baixa, nem magra nem gorda, de repente descobriu-se uma mulher quase invisível de tão comum. Não fosse o hábito de vestir-se de couro preto  em qualquer hora ou circunstância poderia passar quase anônima pelas multidões. Mas isto e o detalhe da maquiagem pesada definitivamente não a tornavam  nada discreta.

Moveu o  hashi com perfeição e mergulhou o pedacinho de salmão no shoyo,  cuidadosamente sorveu a carne delicada, saboreando a delicadeza do alimento, provou o atum, namorado, polvo e camarão. Depois uma excitação louca percorreu sua espinha e a fez suspirar de puro deleite:  sashimis faziam sua libido ir as alturas.
Marina sorriu  e olhou ao redor mas nem uma única pessoa pareceu interessante, só gente comum e interessada em seus smarts e tablets. De repente era a única desconectada naquela praça de alimentação imensa, crianças, casais, grupos de amigos, gente sozinha de todas as idades, cor e sexo tinham em comum a internet e o desinteresse  em  trocas reais. Suspirou fundo e pediu outra cerveja japonesa.

Antonio estava hipnotizado por aquela  mulher fetiche  que lambia os palitinhos que ele sempre esquecia o nome . Mulher esquisita branca demais, cabelo preto e longo  demais,  estranha demais, exótica e hipnotizante. O tipo que ele era obcecado  e quase nunca eram vistas em  locais familiares, o arrojo da mulher de vestido de couro  franjado e botas de cano alto em pleno verão  estavam tirando seu fôlego. No minuto seguinte  estava parado diante de Marina com cara de palerma,  pedindo para sentar-se  com a desculpa que estava tudo ocupado. O som de sua voz grave e rouca sussurrou  um palavrão horrível como resposta. Antonio saiu cambaleando de puro nervosismo e excitação. Aquela voz era perfeita, os  olhos da mulher  injetados de raiva o deixaram tonto de emoção. Havia se apaixonado a primeira vista, como nos filmes em preto e branco  que vivia  assistindo.

Um estranho  interrompeu  a refeição perfeita e  isto era um ultraje, um completo desrespeito que a deixou muito irritada e impaciente. Um homem   mal ajambrado, que ainda usava camisa de seda  enxovalhada  e calças jeans surradas boca de sino  numa mistura desconcertante, fora de moda e do tempo havia tido a coragem de atravessar o salão imenso abarrotado de gente faminta e curiosa  só para vir pedir para sentar-se ao lado dela.
Marina em um segundo vislumbrou o quanto ele era bonito de uma forma doentia, um tom pálido e louro desbotado, altíssimo  e magro com imensos olhos azuis clarinho. Parecia estrangeiro  de tão deslocado. Marina seguiu o impulso e  foi atrás dele  num salto. Tocou aquela figura  que mais parecia um manequim andante e  ele pareceu esperar por isso porque não disse nada, apenas a seguiu e sentou-se  na cadeira a sua frente.

Não se falaram enquanto ela comia  mas Antonio  apenas fingia não acompanhar cada mordida, estalar de língua , lambidas no  cantinho do lábio inferior.  Então a comida terminou e o chá  permaneceu  intocado enquanto eles  se olharam como se estudassem suas almas, ele era jovem e tímido  e ela gostou disso, ela era muito mal humorada e grosseira e ele achou intrigante. O cheiro de suas peles se misturaram  com a proximidade, ele aspirou aquele perfume de jasmim e fechou os olhos. Marina sorriu pela primeira vez.
Saíram juntos e logo adiante estavam de mãos dadas. Não foram ao cinema nem ao café, sumiram na tarde  e na fantasia. Eram artistas e a atração nunca falhou, ele trabalhava em um velho circo decadente como atirador de facas, tradição familiar de priscas eras. Tudo tinha começado em Budapeste e acabado no  Brasil, com direito a ajudante  de palco ex  passista vestindo biquíni de paetês dourado e plumas  na cabeça.

Marina tinha uma profissão  diferente  mas  fez questão de explicar  sem o menor pudor, pela primeira vez  sentiu  uma ponta de orgulho ao revelar-se uma  dominatrix. Antonio fez uma careta de quem não entendeu muito bem e não  quis se aprofundar com medo de parecer inexperiente.  Ele apenas gostava de obedecer e Marina de mandar e esta combinação era o que bastava para o casal. E sentiam-se felizes vivendo a vida do jeito deles , cada qual correndo riscos e brincando com o medo e com a dor dos outros.

 
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 24/11/2014
Reeditado em 25/11/2014
Código do texto: T5046470
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