TARDE DEMAIS 14 - PREPOTÊNCIA

Gustavo do Carmo

Fazia frio em São Paulo. Não que ela precisasse usar o sobretudo que vestia, mas era preciso manter a elegância. Ou melhor, a prepotência. Atravessou a porta automática de vidro do Hospital Central Diamond. O ar condicionado garantia a manutenção da vestimenta imponente... no Rio de Janeiro, onde acabara de desembarcar e fazia muito calor.

Anastácia precisava manter a prepotência. Ou melhor, a superioridade. A superioridade de vencedora. De quem, em um espaço de apenas um ano, era apenas uma dona-de-casa de Teresópolis, sem ambição, nem esperança de manutenção da estabilidade financeira. Foi indicada por uma professora da pós-graduação e rapidamente se tornou estrela de um programa feminino em São Paulo.

Quando recebeu o convite, abandonou o marido doente que a sustentava (daí o medo de perder tudo) e a filha adolescente. Partiu para São Paulo com o novo namorado, o colega da mesma pós-graduação. Arrumou pra ele o cargo de operador de câmera do estúdio onde era apresentado o programa.

Severino tinha aparência rude e era natural de Belém do Pará, mas morava em Xerém. Por dentro, era um homem educado, inteligente, incrível, maravilhoso e evangélico. Tão evangélico que converteu Anastácia, ex-católica fervorosa, que ia à missa todos os domingos com a filha e o primeiro marido.

Anastácia caminhava em passos rápidos pelos corredores frios do hospital particular. A sola de madeira da sua bota italiana de salto alto batia forte sobre o piso de granito, criando uma melodia seca e ritmada.

O destino da caminhada esnobe de Anastácia era a Unidade de Terapia Intensiva, onde seu ex-colega e ex-amigo Guilherme padecia de câncer na tireóide. Guilherme amava Anastácia e não se separava dela e de Severino nas aulas da pós-graduação. Os dois eram os únicos com quem o doente falava na faculdade. Mas respeitava o casamento e a filha da já senhora de meia-idade, o que Severino não fez. Por isso, escondia o seu amor pela ex-amiga.

Junto a desconfiança que a apresentadora de programa feminino tinha dos sentimentos de Guilherme, ela o achava chato, grudento, pedante e encostado. Por isso, se afastou, com apoio de Severino, que se dizia amigo dele. Fugia quando apareciam os trabalhos em grupo, o que deixou Guilherme bastante estressado e magoado.

Ao fracassar na matéria prática de vídeo, da mesma professora que indicou Anastácia para o programa feminino em São Paulo, e ficar sem grupo na outra cadeira, Guilherme abandonou a pós, mesmo com os falsos apelos de outros colegas e da coordenadora. Só faltavam esses dois módulos. Mesmo assim, Guilherme desistiu.

Depois disso, a loja de auto-peças do seu pai quebrou, o terceiro livro que pagou para publicar não vendeu absolutamente nada e seu nódulo na tireóide evoluiu para um câncer. Enquanto isso, Guilherme escreveu um conto em que criticava os seus ex-amigos e publicou no seu blog.

Anastácia, que jamais lera um conto de Guilherme, leu justamente esse e, constrangida, jurou romper a amizade para sempre.

Por baixo da arrogância, prepotência, orgulho, ar de superioridade e esnobismo, brotou a culpa. Dez anos depois, procurou aliviar a consciência. Ao procurá-lo, descobriu que o câncer de Guilherme agravou-se e ele estava internado na UTI, custeado pela irmã bem-sucedida na estatal de petróleo.

Encerrou sua caminhada prepotente com toques de remorso quando viu porta da antessala da Unidade de Tratamento. Olhando pelo vidro, não reconheceu o ex-amigo em nenhum dos leitos. Viu dois vazios, em outros tinham uma idosa, um idoso, um senhor negro e, no último, alguém com a cabeça enfaixada, todo machucado.

Na recepção, perguntou se havia outro conjunto de UTIs. A atendente, para adiantar o serviço, pediu o nome do paciente. Após um minuto de batuques no teclado do computador do sistema, a moça respondeu.

— Guillherme Augusto Moraes de Carvalho? Ele ficou neste setor, sim! Mas faleceu há um mês.

— Obrigada.

— A irmã dele está sentada ali na frente, pra acompanhar a mãe, que é quem está internada aqui agora.

Virou-se para trás e viu uma mulher com menos rugas do que ela. Também estava bem arrumada, mas com roupas mais leves. Puxou conversa.

— Você que é a irmã do Guilherme?

— Sim, sou. Respondeu a mulher, com ar mais superior do que Anastácia.

— Eu sou Anastácia, colega de pós-graduação do seu irmão.

Ela estendeu a mão para a irmã do ex-amigo, que recusou o cumprimento.

— Eu sei, meu irmão não parava de falar de você. Morreu falando de você e do seu marido, Severino.

— Eu fiquei sabendo que ele teve câncer. Eu sinto muito.

— Quando ele estava vivo você não sentia nada por ele, né? Não precisa sentir agora, que já é tarde demais. Sorriu sarcástica, para depois perguntar. — Agora que você veio procurar ele? Depois de dez anos???

— É porque eu estava muito ocupada com o meu programa em São Paulo. Só agora tive um tempo para procurá-lo. E acabei descobrindo que a doença dele agravou e ele morreu, né? Eu queria pedir perdão por tudo que eu fiz, pela forma fria que eu comecei a tratá-lo e...

— Demorou dez anos para você encontrar um tempo para vir visitar o meu irmão? Dez anos para dar o apoio que ele precisava? Dez anos para perdoá-lo??? A irmã encerrou esta última frase com um grito. E continuou em voz alta, já cutucando o seu dedo sobre a blusa de seda de Anastácia. — Vocês, jornalistas, são arrogantes, mesmo! Prepotentes, esnobes, vagabundos! Agora é tarde! Tarde demais! Não precisa mais pedir perdão porque o meu irmão já está morto! Meu irmão que gostava tanto de você. Tinha tanto carinho por você. Sofreu quando você o rejeitou! Sofreu quando você foi embora pra São Paulo, bem-sucedida e ele fracassado. Sabia que a doença dele piorou por causa disso? Sabia? Agora está morto e enterrado. E a minha mãe está indo se encontrar com ele. Some da minha vida, antes que eu não responda por mim!

— Ok.

Anastácia já não tinha mais a prepotência, a arrogância e a superioridade vencedora da ex-dona de casa que largou a família para ser apresentadora. Despiu-se da elegância do sobretudo que trouxe de São Paulo para o Rio de Janeiro, silenciou a bota italiana, imóvel no piso de granito, e desabou na poltrona macia da recepção do Hospital Central Diamond em um choro incessante de culpa, que demorou dez anos para se manifestar. Tarde demais para ser dissipada.

Gustavo do Carmo
Enviado por Gustavo do Carmo em 16/11/2014
Reeditado em 16/11/2014
Código do texto: T5037204
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.